domingo, março 24, 2024

ENFIM INTEGRADOS!

O dia começou com cabeleireiro às 7h, maquiagem e tranças… tudo muito simples, nossos pequenos hábitos vivendo no centrão de Sampa, agora se contrastava com a paisagem de progresso em um bairro de privilegiados na zona sul. O que era para ser uma troca de alianças frente a um juiz de paz e depois uma churrascaria, virou um pequeno evento, nas palavras da minha marida: rústico e sofisticado. Aos poucos chegaram os familiares, os dela, uma parte vieram de Cruz Alta e Porto Alegre, os meus, do Rio de Janeiro. Tirando os filhos/filhas/filhes, irmãos/irmãs, cunhados e a mãe dela, apenas mais dois casais de amigos estavam presentes, um meu e outro dela. 

O cuidado com que minha irmã e meu cunhado prepararam o espaço, para receber no máximo umas vinte pessoas, é absolutamente indescritível e neuroticamente perfeito. Adentramos o salão de festas, fomos recepcionados com “Eu e a Brisa”, de Johnny Alf, ao som do piano, tocado pela minha sogra e do violão, tocado pelo irmão de minha marida.  Um corredor nos guiava em direção a um banner, devidamente iluminado, onde se podia ler um poema escrito ao modo gaúcho, intitulado “Mas Bah tchê, que baita casório!!”, de autoria de dois amigos da minha sogra e encomendado por ela, para nós. Após muita choradeira enquanto líamos o poema, o povo em nossa volta aplaudia e celebrava. Só mais tarde me dei conta que um verso do poema se conectava aos votos que escrevi para ocasião. Segue o trecho: 

E a vida, assim, vem à tona
quando se forma a família
é qual o amor do Jonatas
pelo amor de Maria Ercília!

Em meus votos, citei a noção de “integração”, que encontrei em Pablo Neruda, 

Depois de tudo te amarei
como se fosse sempre antes
como se de tanto esperar
sem que te visse nem chegasses
estivesses eternamente
respirando perto de mim.

Perto de mim com teus hábitos,
teu colorido e tua risada
como estão juntos os países
nas lições escolares
e duas comarcas se confundem
e há um rio perto de um rio
e crescem juntos dois vulcões.

O que eu não esperava era ver com os meus olhos, naquela mesma tarde o poema se concretizando nas interações entre nossos familiares. Pessoas tão diferentes e distintas, a maioria nunca havia se visto antes, foi o primeiro contato. Observei nossos filhos(es), noras e genros interagindo, rindo, compartilhando. Felipe e Gi, absolutamente extasiades com meu neto, João Vicente, vi meus cunhados interagindo sobre música, minhas irmãs e sobrinha trocando conversas com minha Marida, minha sogra, “coisa mais querida”, praticamente era uma atração à parte, porém completamente inserida à festa. Nossos amigos e amigas, circulavam entre nossos familiares, eu vi uma nova família se formando, um elo, criando por mim e minha marida, gente estranha, de lugares geograficamente opostos, integrando-se. Essa maravilhosa imagem me nutriu ainda mais de esperança, em tempos de cancelamentos, ódio, preconceito, integrar pessoas é por si uma ato de resistência. Espero que este tenha sido o início de uma relação de grandes amizades, camaradagens e parcerias.  

Obs.:

Quanto aos votos dela para mim, bem, eles foram escritos em letra vermelha sobre uma folha de caderno que já tinha sido dobrada e desdobrada várias vezes (sem que ela tenha arrancado aquela parte que fica presa ao espiral), mas nem isto foi suficiente para deter a emoção e as lágrimas enquanto ela pronunciava as palavras mais doces e engraçadas que já me disseram. Ela mencionou uma vida a dois, baseada em cumplicidade, honestidade, responsabilidade e claro, amor. Embora o amor tenha sido mencionado por último no seu texto, é ele que me atravessa antes de todo o resto, quando olho nos olhos dela, quando ela abre aquele sorriso. AMO VOCÊ MARIDA!!  


quarta-feira, janeiro 17, 2024

O DISCURSO MISSIONEIRO EM SÃO MIGUEL DAS MISSÕES E O NÃO-LUGAR DOS GUARANIS.

Eu escrevi aqui, há dias atrás, sobre minha perplexidade na recém estada no Rio Grande do Sul, diante das palavras e expressões dos gaúchos e gaúchas. Foi uma crónica anedótica, um retrato caricaturado, que não tinha qualquer intenção de reduzir os nossos compatriotas das bandas de baixo do país, que é um povo acolhedor, amável e alegre.

Mas ocultei, propositalmente, suas contradições (que também são nossas), o conservadorismo, o reacionarismo, o preconceito de gênero e o racismo, também são dignos de nota daquela região. Não vou me estender aqui, há uma significativa produção textual sobre isso nos centros de produção acadêmicas e de pesquisa por lá. Este texto, é apenas uma reflexão sobre minhas impressões no evento “SOM E LUZ” em São Miguel das Missões.

Chegamos às ruínas de São Miguel Arcanjo no final da tarde, tivemos pouco tempo para contemplá-las à luz do dia, mas uma das primeiras coisas que notei foram duas nativas guaranis, uma senhora e uma moça, recolhendo seus objetos que se achavam sobre um pano estendido ao chão. As ruínas são magníficas, uma impactante obra de genialidade dos arquitetos inacianos e, claro, dos guaranis. Para os interessados no site do IPHAN há maiores detalhes.

Mas foi o conteúdo do espetáculo SOM E LUZ, sem dúvida belíssimo e de enorme qualidade técnica, que mais me impactou. Em especial o roteiro, interpretado por vozes de famosos atores e atrizes nacionais, escrito por um descendente de italianos de Caxias do Sul, Henrique Grazziotin Gazzana, formado em medicina e letras. A ideia do roteiro, sem dúvida é criativa, as ruínas e a terra narram os acontecimentos. Um texto que condena a ganância dos colonos e dos impérios espanhol e português, que engrandece o Guarani, mas acima de tudo é um louvor aos jesuítas. De acordo com o texto, os inacianos ajudaram a enriquecer ainda mais a cultura guarani, sem corrompê-los. Como se a cristianização dos povos indígenas por si só, não fosse uma corrupção. O discurso missioneiro do texto, isenta a Cia de Jesus, ignora que a riqueza produzida pelos inacianos foi gerada pela exploração do trabalho dos povos originários das Américas. Os inacianos são apresentados como as salvaguardas do bom selvagem, como se o projeto jesuítico não almejasse mais nada.

Foto do autor.
Se escrevo isto, não o faço com ausência de fontes, como historiador pesquisei por seis anos as fazendas jesuíticas do Rio de Janeiro, em especial, a Fazenda Campos Novos, sobre a qual escrevi diversos artigos. A Cia de Jesus, tornou-se uma potência mundial, uma empresa moderna, envolvida em toda ordem de exploração, um braço fundamental do projeto colonizador. É claro, que havia inacianos bem intencionados, que de fato se envolveram com os nativos, mas isso não elimina o etnocentrismo.

O roteiro do espetáculo SOM E LUZ, escrito em 1978, reflete esse etnocentrismo, que se traduz ainda hoje na exclusão dos Guaranis, se não a exclusão total, pelo menos o seu papel secundário. Ao olhar o entorno do projeto de São Miguel das Missões, não vemos o nativo em nenhum espaço de poder, as lojas de artesanato ao redor, são de gente branca, os profissionais que atuam no projeto, são gente branca, aos guaranis, sobrou, o pano no chão com sua peças artesanais.



sábado, janeiro 13, 2024

UMA CRÔNICA GAÚCHA - PARA ALÉM DO BAH E O TCHÊ.

Sou um fluminense que vive em São Paulo com uma gaúcha. Nossos primeiros diálogos foram preenchidos de muitas risadas, geralmente, de minha parte, surpreendido por  termos que só tem no Sul. 

Monumento à Cuia - Cruz Alta
Bahhh, eu não devia me surpreender tanto néé, já que morei no Sul e transitei por váaarias cidaaades gaúchas, mas isso faz muito tempo gurizada. 


Ao chegarmos em Porto Alegre fui direto na locadora de automóveis, enquanto concluía o contrato, o homem do outro lado do balcão me perguntou: — E a gerentee não vai pilotar também? Eu só entendi quando ele olhou para o lado, então percebi que a gerente deveria ser a minha marida. 


A noite, o cunhado e sua companheira nos receberam com muito carinho em um apartamento aconchegante no centro de POA, depois de uma churrascada e muita cerveja, foi o momento da música, meu cunhado é especializado nos ritmos regionais, como o vanerão, a milonga, a chacarera e a rancheira. Foi tudo tri, mar eu, já à meia guampa achei que era hora de abrir a barba.

  

Na manhã seguinte enrolamos o poncho e com o pé no estribo, ganhamos na estrada para Cruz Alta, quase cinco horas de viagem, não fomos de vereda,  fizemos algumas paradas para bolear a perna. A estrada cinzenta cortava cidades e mais cidades verdes de soja. 

 

Ao chegar em Cruz Alta, finalmente conheci minha sogra pessoalmente, Dona Beti. Eu precisava ter esse encontro, temia que ela achasse que eu estava a escanteando, mas a verdade é que Dona Beti é mulher de agalhas, de fazer o costado, não é mulher de lagartear, com ela é tiro dado e bugio deitado, ainda assim, ela não perdeu tempo e tratou logo de lamber a cria. 


Assistir minha marida e minha sogra conversando foi de cair os butiás do bolso, uma quantidade incrível de palavras e expressões que só um gaudério compreenderia, mas eu, fiquei mesmo é faceiro que nem guri de calça nova. 

 

As duas não são lá muito dadas a lamber as esporas, gostavam mesmo é de meter a catana sem dar changui, mãe e filha, tão diferentes, tão semelhantes…às vezes uma acusava a outra de estar louqueando. Minha marida não nega as semelhanças, embora fique abichornada com algumas, mas sabem como dizem né? Filha de tigre sai pintada.

  

A casa de Dona Beti é uma espécie de centro de memórias que remontam o Brasil colonial, império e as primeiras décadas da república. A  farroupilha, a guerra civil de 1923 e a “revolução de 1930” ainda estão bem presentes na memória local. Fora isso, Cruz Alta é a cidade de Érico Veríssimo, cheia  de casarios do início do século XX, aqui, o Tempo e o Vento, passam lentamente. 


Mas se vocês pensam que essa viagem foi pura erva-caúna, capaz! Aqui não tem essa de embarrar o pastel, tratamos de campear toda a região. Nosso primeiro destino, São Miguel das Missões, eu e minha marida conhecemos as ruínas de São Miguel Arcanjo, terra Guarani (no próximo texto eu comentarei minhas impressões). Trata-se de uma cidade com um pouco mais de sete mil habitantes, ainda assim me perdi, abordei três guris que caminhavam pela rua, com latas de cervejas nas mãos, perguntei: 

— Vocês sabem como faço para ir pro centro da cidade?  

— Segue em frente até a rotatória, daí! Eu retruquei:

— Até a rotatória e depois? A resposta veio com risos por parte dos guris: 

— A rotatória é o centro, daí! 


No dia seguinte estivemos em Boa Vista do Cadeado e Ijuí. A primeira pequininha, menos de três mil habitantes, com meia hora de carro a gente percorreu o lugar, um cenário de interior. A segunda, maior até que Cruz Alta, mas com poucos pontos turísticos, visitamos um parque natural e comemos em uma churrascaria gaúcha. De volta a Cruz Alta, comi uma Marta Rocha que é marca de estância velha por essas bandas.  


No mais, em quatro paletadas eu já estava dobrando o cotovelo, porque carioca é assim mesmo, como dizem os gaúchos, nós aguentamos o tirão e não somos muito de juntar o torresmo. Agora tá na hora de encerrar essa conversa, pois os mosquitos estão me charqueando e os cupinchas então me esperando para aquela mateada. 


Bahhhh!! 


sexta-feira, dezembro 29, 2023

SOBRE O "LAR"

 Foram doze dias com eles, meus filhos, o genro e a nora, visitei meus poucos amigos, passei a noite de natal com minha irmã mais velha na casa da minha sobrinha e seu marido. 


Amo estar com meus filhos, é sempre especial. Sempre me pego pensando no quanto é incrível ver aqueles indefesos serezinhos que peguei no colo, hoje tão autônomos, que tocam suas vidas, tomam decisões sérias, sejam elas profissionais ou pessoais. 


Eu li em algum lugar nesta semana que o lar, não é apenas onde nos sentimos acolhidos, mas é o lugar em que encerramos nossas fugas, gosto dessa definição, mas gosto mesmo é da  definição romana (de onde herdamos a palavra lar), em que “lar” é onde se acende o fogo para cozinhar e para se aquecer  (a palavra lareira vem daí). 


Amo estar com meus filhos. Hoje, vivendo em outro Estado, só consigo fazer isso em momentos de férias e feriados prolongados. Mas após alguns dias, a vontade de voltar ao meu lar é gigante, sim, sou muito bem tratado pelos meus filhos, mas não tem nada que se compare ao nosso cantinho. 


O lugar de cozinhar e se aquecer, e, por isso mesmo, o lugar de compartilhar a comida e o calor com outrem, alimentando e sendo alimentado, aquecendo-se mutuamente, isto é uma dádiva. No meu caso, sou um privilegiado que com tão pouco tempo em São Paulo, posso dizer que estou com um lar em pleno desenvolvimento. 


Sim, desenvolvimento, porque lar é sempre uma construção, não uma coisa estática, mas algo vivo e em movimento (o alimento e o calor precisam ser renovados). Lar não é ausência de conflito, mas é, sobretudo, espaço de conciliação. É uma puta de uma satisfação, sentir aquela palpitação, quando estamos retornando ao lugar em que nos sentimos absolutamente à vontade, onde podemos ser nós mesmos. 


Lar é reciprocidade, ternura, mas também é revolução. Pois só é possível desenvolver um lar quando nos desprendemos de nós. Claro, isso aqui não é um texto de “faça você também como eu”, não tenho qualquer intenção de ser coach sobre nada. Trata-se de uma reflexão, minha, apenas minha, que não se roga de ser verdadeira sobre nada. 


Meus filhos estão desenvolvendo seus lares, e já se depararam com muitos obstáculos, isso porque, um lar não é projeto que se realiza só, ele é coletivo, envolve todos que  o habitam, se isso, por uma lado, pode ser mais trabalhoso, por outro, certamente, o tornará muito mais complexo, dinâmico e sólido. 


Retornarei ao meu lar hoje, quero encher de beijos e carinho minha marida, desfrutar da sua companhia que tanto me apraz, agrada, contenta, deleita, satisfaz, delicia, aprecia, alegra, regala, anima, encanta, diverte, sorri, compraz, enleva, regozija, letifica, distrai, entretém… LAR.


Obs: Meus sentimentos de pezar aos povos e grupos sociais que tiveram seus lares destruídos pela violência da ganância de alguns.   


sábado, dezembro 23, 2023

A LIMPEZA ÉTNICA, PROGRAMADA, ANUNCIADA E ASSISTIDA EM TEMPO REAL.

 

"A recente abstenção dos EUA e a aprovação de uma resolução da ONU contrária ao prosseguimento dos assentamentos judaicos em áreas palestinas não interferirá no projeto do Estado de Israel. Donald Trump que condenou a abstenção dos EUA, retomará relações com Netanyahu, os anos que se seguirão serão ainda mais terríveis para os palestinos." CARVALHO, 26/12/2016. 


Já se passaram sete anos desde que escrevi, aqui mesmo neste blog: "A NOIVA É BELA, MAS É CASADA COM OUTRO HOMEM." (clique para ler), uma análise da situação dos palestinos com os crescentes assentamentos judaicos na região da Cisjordânia. Como vocês podem ler no recorte acima, na ocasião, eu terminei o texto com uma sentença: "os anos que se seguirão serão ainda mais terríveis para os palestinos." Evidente que não se trata de profecia, aliás, nós historiadores somos compelidos a não produzir prognósticos. Eu, pessoalmente, me empenho em não cair nessas armadilhas de tentar determinar, a partir do presente, o que poderia ser o futuro. Bem, se o que escrevi em 2016 não é um prognóstico, então é o que? Eu poderia teorizar aqui a partir da Marc Bloch, sobre a incompreensão do presente e a ignorância do passado, ou mesmo sobre a repetição histórica como tragédia e depois como farsa (Marx). Nada disso é necessário, trata-se apenas de olhar o tempo histórico, os acontecimentos desde os primeiros crimes sionistas no final do XIX e início do XX, acobertados pela potência imperialista da época, a Inglaterra, até os crimes de guerra cometidos pelo Estado de Israel, acobertados pelo novo poder imperialista: os EUA, logo: é a própria história dos imperialismos.  

Esta é uma história que as gerações futuras, olharão e se perguntarão: como normalizamos isso? Como fazemos hoje quando pensamos na escravização das sociedades africanas por quatro séculos, ficamos aterrorizados com os argumentos pró-escravização no século XIX.  Em um futuro não muito distante, nossos sucessores olharão as fontes... jornalistas, historiadores, sociólogos e outros, se depararão com a obviedade: tratava-se de uma limpeza étnica, até então, sem precedentes na história. Mas se era tão óbvio, até para nós do presente, por que permitimos? A resposta não é simples, mas escolherei aqui uma abordagem: trata-se de uma das mais bem sucedidas tecnologias de poder dos últimos tempos, que a filósofa e psicanalista Suely Rolnik chamou de “antropofagia neoliberal”; um instrumento de produzir subjetividades absolutamente voltadas para si, cujo maior efeito é nos manter tão egoisticamente mergulhados nas nossas questões, que somos incapazes de nos articular em função do outro. No máximo, nos engajamos via redes sociais, fazemos vaquinhas, ações que pouco modificam a realidade, mas que ajudam a diminuir a culpa que sentimos. Como zumbis, devoramos apenas o que serve ao nosso ego consumista.  

Os motivos dessa limpeza étnica eu já abordei aqui (uma perspectiva) em OS SENHORES DO CÁLCULO, DA GUERRA E DA FOME, já quanto aos requintes de crueldade com que o Estado de Israel elimina os palestinos, nos lembra os colonialismos dos grandes Impérios como a Grã-Bretanha na Índia ou o Congo sob o domínio de Leopoldo II. O deslocamento de massas populacionais, a destruição de bairros inteiros, até mesmo cidades. O que é pior, a destruição de unidades hospitalares, impedindo que os feridos sejam tratados, o bloqueio de luz, de água e comida. Mas o bárbaro é o outro. Quando escrevi "O SENHOR DA GUERRA NÃO GOSTA DE CRIANÇAS" (10/11), Gaza, já sofria com os bombardeios por parte de Israel por um pouco mais de 30 dias, a contabilidade, na ocasião, era de 4 mil crianças mortas. Desde então, passados 42 dias, mais 3,7 mil crianças morreram, ao todo são quase 8 mil crianças. Em que uma criança palestina é diferente de uma criança israelense? Como o massacre e o extermínio de um povo não resulta em total paralisação do mundo?  

Foto: Monitor do Oriente. 

Se a limpeza étnica dos palestinos foi programada e anunciada, ela também foi combinada com os conglomerados de comunicação (co-partícipes-financiados dos conglomerados das guerras), a ocultação de informações se converte na ocultação do massacre e de um mar de cadáveres. A adoção do título Israel X Hamas, para “cobrir” jornalisticamente o que vem ocorrendo na Palestina, tem por objetivo desinformar, por meio de um viés puramente favorável ao projeto colonial sionista. O caso do Congo, também pode ser um grande exemplo, o que sabemos sobre o que ocorre por lá? Quem são os grupos privados a financiar a “República Democrática de Congo” que está promovendo o maior deslocamento humano do século XXI? Estamos falando de mais de 6 milhões de deslocamentos internos e 1 milhão de refugiados. São informações que sequer aparecem nas notas dos jornais. Por quê?  

Os conglomerados das guerras investem milhões em armas, parte desses investimentos são provenientes de recursos públicos (isto é, dinheiro público) como vem ocorrendo nos EUA, cujo congresso aprova milhões “destinados à Ucrânia”, mas 90% do valor liberado vai para as empresas estadunidenses. Outro fator interessante é que, por um lado, os conglomerados das guerras financiam a destruição de outros povos, tomam o território e controlam a geração de riqueza natural-mineral, por outro, os sobreviventes deslocados, os campos de refugiados, são mantidos precariamente com ajuda dos governos e organismos multilaterais (mais dinheiro público), que estão a serviço destes mesmos conglomerados. Ao fim, os lucros são repartidos entre os conglomerados, já a destruição e os custos dela, são compartilhados entre os Estados-Nação e a sociedade civil, como Cruz Vermelha, Médicos sem Fronteira… 

Voltemos mais uma vez à questão: por que não há uma grande comoção social sobre o que ocorre na Palestina? Os conglomerados que financiam e lucram com as guerras, não contam apenas com as grandes redes de comunicação do mundo, contam, também, com as redes de entretenimento, como Hollywood e, claro, as Big Techs. Mas não apenas isto, eles financiam ainda a indústria de fomento em ciência, pesquisa e tecnologia. Vladimir Safatle, nos chamou a atenção para o silêncio dos intelectuais diante do que vem ocorrendo na Palestina. Após a emergência e fortalecimento do debate anticolonial e decolonial no Brasil, como se justifica o silêncio de grandes intelectuais brasileiros diante de um caso absolutamente clássico de colonialismo? A resposta? O poder econômico que os conglomerados sionistas possuem é capaz de inviabilizar tanto a carreira artística, quanto a acadêmica de quem ousar utilizar sua imagem famosa para criticar o massacre dos palestinos. Poucos corajosos se atreveram, alguns já estão pagando o preço. 

QUE A RESISTÊNCIA do povo PALESTINO nos encoraje a lutar contra toda forma de colonialismo, sionismo ou imperialismo. Estejam eles ocorrendo na Palestina, no Congo, ou mesmo em Maceió, Rio de Janeiro, São Paulo…. 

Jonatas Carvalho 

Historiador/Professor. 


domingo, dezembro 10, 2023

O PODER DA FALA E DA ESCUTA.

Na manhã deste domingo, eu e minha marida caminhávamos pela Augusta, então surgiu um homem atrás de nós, ele esbravejava, uma situação que vemos com alguma frequência quando se caminha pelo centro, mas então ele quebrou algo de vidro, não vimos exatamente o que era, mas ficamos alertas, ele xingava muito.

Preocupado eu propus que virássemos à esquina, na esperança de que ele seguisse em frente, mas ele virou também e em seguida nos abordou. Era nitidamente alguém em situação de rua, estava alterado, falou algo sobre pagar um prato de comida. Eu calmamente disse-lhe que que estávamos caminhando e não tínhamos nada conosco, então ele me interrompeu e disse:

— Calma, eu não tô pedindo nada ao Sr, estou explicando. E seguiu andando ao nosso lado.
— Eu entrei no bar ali em cima, perguntei se alguém podia me pagar um almoço, o garçom, que não era dono nem nada, me esculachou e me deu uma porrada na cara. O Sr. acha isso certo?
— Eu não acho não. Respondi.
— Ele falou que eu era um merda… falou mais algumas coisas das quais eu não lembro exatamente. Eu o interrompi.
— Desculpe, mas qual é o seu nome?
— É Odair.
— Odair, eu realmente sinto muito que você tenha passado por isso. Ele acenou e continuou:
— Eu não sou ladrão não, já roubei, mas nunca roubei pobre. Hoje eu odeio ladrão. Tenho quatro filhos esperando que eu leve algo pra eles comerem. O cara não sabe quem eu sou e acha que pode me dar um soco na cara porque eu tô pedindo comida?
Concordei com ele, e o interrompi novamente.
— Eu lamento muito por você Odair, desculpe não poder lhe ajudar.
— Tá tudo certo Sr. bom dia pra vocês.
— Espero que o restante do seu dia seja melhor.
— Obrigado. Odair seguiu seu caminho.

Minha marida, Ercília, estudante de psicanálise, assistiu a tudo calada, então fez uma observação fascinante.
— Como a escuta é terapêutica, né? Veja como ele, depois de falar sobre sua dor, agora segue seu caminho mais tranquilo, não está mais esbravejando e gesticulando como antes. É claro que ele ainda está ferido, mas já está mais calmo. Só porque alguém se dispôs a escutá-lo.

Eu concordei. Discutimos um pouco se o “poder terapêutico” se achava na escuta ou na fala, concluímos que era a combinação de ambos, ou seja, o falante precisa sentir que quem o escuta lhe escuta com atenção. Mesmo não sendo uma escuta treinada, preparada, às vezes, o simples fato pararmos para ouvir alguém, já produz efeitos terapêuticos naquele que fala, e, em muitos casos, naquele que ouve também.

Nós, inicialmente, vimos o Odair como mais um dos milhares de indivíduos em situação de rua, pensávamos que ele estava alterado devido ao álcool ou outra substância, mas era um ser humano (como todos os outros que vivem em condições semelhantes e ele), passando por um enorme sofrimento, e se não bastasse toda a dor que é viver nessas condições, ele ainda tem que lidar com a violenta desumanização cotidiana.

Escrevo esta história horas depois do ocorrido, passamos o dia na casa da filha da minha marida, comemos, bebemos, como em um domingo qualquer, mas não consegui tirar Odair da cabeça.

Odair me fez lembrar do tempo em que eu vivi na rua, muitas vezes eu sofri essa desumanização, só consegui sair dessa situação de rua com ajuda. Eu lamento mesmo é por essas pessoas que insistem em desumanizar os outros, pobres de espírito e péssimos seres humanos. Já os Odairs da vida, estes, têm muito a nos ensinar.

domingo, novembro 12, 2023

OS SENHORES DO CÁLCULO, DA GUERRA E DA FOME

Joe Biden, anunciou recentemente que enviaria 100 milhões de dólares de "ajuda humanitária" para Gaza, mas veja você, os congressistas dos EUA aprovaram o envio de 14 bilhões para "ajuda militar" ao governo de Israel. Consegue perceber a disparidade?  

Outro dia eu ouvi em algum lugar, algo mais ou menos assim: o dinheiro que alegam faltar para acabar com a fome no mundo, aparece de sobra para financiar as guerras e conflitos militares no mundo. Não é muito louco? Para qualquer ser humano com o mínimo de civilidade deveria ser, mas não para os senhores da guerra. Como poderão enriquecer com armas sem as guerras?  

Nos últimos 25 anos, os gastos militares no mundo mais que dobraram, só no ano de 2022, foram mais de 2,2 trilhões investidos com "defesa". Por outro lado, para acabar com a fome no mundo, seriam necessários, de acordo com a Food Policy, 50 bilhões por ano até 2030, o que daria perto dos 500 bilhões.  Esse é o valor que a Ucrânia recebeu de "ajuda militar"... só os EUA já "doaram" mais de 70 bilhões.  A Rússia, por sua vez, já gastou mais de 100 bilhões para financiar a "operação militar" na Ucrânia. 

No Oriente Médio, os gastos militares também subiram muito, Israel investiu 23,4 bilhões em defesa no ano de 2022, a Arábia Saudita, 55,6 bilhões, Irã, 24,6 bilhões...

Detalhe de Guerra e Paz - Portinari - 1956

Não quero me estender sobre os gastos militares, mas demonstrar que o argumento da falta de dinheiro, é ridículo e descabido, só os EUA colocou, no último ano, 800 bilhões em "defesa."  - Ah mas como não investir em defesa? Você está sendo ingênuo! Alguém, supostamente não ingênuo diria. Eu, responderia, que ingenuidade é achar que "defesa" é uma palavra apropriada para o que temos aqui, esse é o jogo da retórica perversa dos senhores da guerra, todos os jornais do mundo adotam em seus noticiários e boletins: "os gastos com defesa subiram mais um ano".....blá, blá, blá.....retórica. 

Estamos falando de verdadeiros massacres e genocídios, são mais de 230 mil mortes no ano passado, esse ano tende a aumentar, fora os 110 milhões  de pessoas vivendo na condição de refugiados.  Eu escrevi acima sobre os 2,2 trilhões certo? Essa é a soma dos investimentos dos países no último ano com gastos militares, mas os gastos com as guerras são outra coisa, estamos falando de mais de 20 conflitos armados no mundo, toda a consequência gerada por esses conflitos, geram um gasto de 17 trilhões ao ano...e se o mundo gasta toda essa grana, significa que ela vai parar em alguns bolsos, não? Quem será que lucra com tudo isso? Adivinha?