Na
segunda-feira (28/03), enquanto seguia para o trabalho, me deparei com uma
enxurrada de postagens que se dividiam entre o tapa na cara em Chris Rock, o ex
policial militar blogueiro, o BBB e o Putin. Não que os casos citados não
mereçam alguma atenção (tirando o BBB que eu particularmente não vejo qualquer
sentido), mas impressiona a dimensão que tomam nas redes, a ponto de
monopolizar o debate, deixando de lado questões muito mais sérias. No domingo,
o frenesi tinha sido a censura ao Lollapalloza.
Na mesma segunda-feira, à tarde, duas demissões reverberaram nas redes: a do
ministro da educação e do presidente (general) da Petrobrás, casos também dignos
de análises. O que não vem fazendo parte das indignações, em especial dos que
se dizem à esquerda, ou ligados ao campo progressista? O desmonte estrutural do
Estado brasileiro. Tirando, claro, algumas análises estruturais de um ou outro,
a grande maioria das manifestações são polêmicas pontuais, um prato feito para
uma cortina de fumaça.
Eu
realmente acredito ser possível problematizar a sociedade por meio de recortes,
casos específicos podem muito bem nos levar a análises mais amplas e complexas.
Penso em exemplos como "O queijo e os vermes" de Carlo Ginzburg
(1976), em que o pesquisador parte de uma história particular, um processo
movido pela Inquisição contra um pobre moleiro (Menocchio), para problematizar
uma prática macro: o Tribunal do Santo Ofício. Assim, se pode perfeitamente
partir de um caso particular de racismo para ampliar o debate sobre racismo
estrutural; do mesmo jeito, um caso de trabalho forçado pode ser usado como a
ponta do iceberg para uma discussão sobre sistemas de servidão no Brasil. Mas o
que se vê na massa de postagens nas redes são superficialidades. O debate sobre
eleições e as articulações políticas são um ótimo exemplo. Uma olhada nas redes
nos faz pensar que as instituições estão funcionando, que o jogo democrático
anda a todo vapor e que a tentativa de burlar tal processo é fruto dos
devaneios de um candidato que tem apreço pela ditadura.
Falta-nos
a capacidade analítica de comunicar que estamos em um Estado de golpe, que não
se trata de uma democracia frágil, mas de um teatro de sombras e de horrores. A
democracia brasileira sempre foi (deliberadamente) debilitada, em especial para
os menos favorecidos, todavia, o que vemos desde 2016, após o impeachment
(golpe), é um espetáculo macabro com atuações mórbidas. O Messias não é, nunca
foi e nunca será o protagonista, mas se engana, igualmente, quem acha que ele
seja apenas um bufão. Falta-nos acompanhar mais de perto o desmonte deliberado
do Estado, em especial, a entrega descarada e desmedida de nossa potência mais
vital: a terra. Uma terra preciosa em toda sorte de recursos, no solo, mais
ainda, no subsolo.
Nossa
soberania, dependente desde sempre, agora assaltada, acha-se em ruínas. O Império (Negri
& Hardt), essa força descentralizadora e desterritorializadora incorpora
tudo dentro de suas fronteiras abertas. Para isso, as soberanias dos
Estados-Nação são demolidas pouco a pouco, ora por golpes de estado
(militar-civil), ora corroendo ou implodindo os sistemas políticos e jurídicos.
É assim que perdemos nossos reservas de petróleo, cujos lucros magníficos da Petrobrás
vão majoritariamente para acionistas estrangeiros, é assim que nossas reservas
de minérios, monopolizadas pela Vale do Rio Doce (que vem cometendo
barbaridades contra cidades inteiras nesse Brasil afora), hoje estão nas mãos
de grupos como o Capital Group (EUA).
Nossas reservas de água (vejam, estamos falando de um elemento natural tão
essencial a vida que jamais deveria ser privatizado) estão sendo entregues a
consórcios (leia-se máfias, cartéis), que têm o poder de decidir quem e quando
terá sua caixa d'água abastecida. Assim,
alguns possuem cisternas e piscinas, enquanto outros uma caixinha de fibra
sobre um telhado de amianto.
Nesta
mesma semana, enquanto eu passava os olhos nas histórias do tapa na cara - longas
postagens sobre quem tem razão, quem não tem -, li um pesquisador que chamava
atenção para a privatização acelerada do sistema de saneamento brasileiro. Esse
é um tema que merece ser debatido e explorado nas redes e nas ruas, mas não
foi. O novo marco regulatório sobre saneamento básico (lei 14.026/2020) colocou
o Brasil na contramão do mundo, estamos fazendo aquilo que muitas cidades se
arrependeram de fazer, ao todo mais de 300 cidades reestatizaram seus sistemas
de saneamento, Paris é um exemplo recente.
O
investimento na valorização do capital humano, dotado do espírito empreendedor
e criativo, é noticiado como soluções para a "crise do emprego", mas,
na prática, produzem condições de trabalho cada vez mais precarizadas,
terceirizadas e informalizadas. Toda forma de resistência a esses modelos de
exploração, toda manifestação e reivindicação por direitos desses trabalhadores
explorados são desarticulados com apoio de setores empresariais e da grande
imprensa. Em muitos casos, os trabalhadores e trabalhadoras que lideram a
resistência são criminalizados. A justiça trabalhista, que já foi algo que nos
deu alguma segurança, tornou-se inacessível; muito em breve será apenas uma
memória da luta trabalhista. As reformas trabalhistas que prometiam soluções,
jamais, sequer, chegaram a ter qualquer êxito. Pelo contrário, nunca tivemos
tanta desocupação e vulnerabilidade de emprego. O que vemos? Aumento do
trabalho análogo a escravidão, tanto no campo, quanto na cidade. Vemos, ainda,
a desvalorização de categorias essenciais à vida da cidade, vemos as migalhas
de reajustes do piso salarial, de garis, motoristas, professores e tantos
outros.
Enquanto
as estruturas do Estado brasileiro são esfaceladas, o teatro de sombras segue
rolando, firmemente. Se tomo aqui emprestado o conceito de "teatro de
sombras" de José Murilo de Carvalho é por duas razões: porque ele o utilizou
justamente para analisar a política no Brasil e, também, porque, embora haja
diferenças significativas, uma vez que ele analisa o Brasil do Segundo Império,
há certamente uma herança cultural. O historiador, cuja tese de 1980 foi uma análise
da elite política imperial intitulada: “A construção da ordem", ao final
da mesma década produziu a obra "Teatro de sombras", em que
problematiza a política imperial. Influenciado pela antropologia simbólica,
José Murilo escreve sobre a relação entre o teatro e a política:
O ritual, o simbolismo são partes integrantes de
qualquer sistema de poder, assim como o é o carisma. Mas a política é
teatro também por razões que têm a ver com os mecanismos modernos do exercício
do poder. A representação política tem em si elementos que podem ser comparados
a representação teatral. Ambas as representações se exercem em palcos montados,
por meio de atores que têm papéis conhecidos e reconhecidos. Há regras de
atuação, há enredo e, principalmente, há ficções. (p.420).
Murilo
de Carvalho faz, em seguida, um alerta: a primeira grande ficção é a própria
ideia de representação. O autor salienta que é necessária uma boa dose de
faz-de-conta para admitir, acreditar que alguém possa falar autenticamente em
nome de milhares. Talvez seja o caso de pensar aqui na última "Ordem do
dia", em que representantes das forças armadas, produziram mais uma peça
de ficção (falando em nome das "famílias brasileiras", das igrejas,
dos empresários, da imprensa e outras instituições), em que o Brasil teria
vivido, a partir de 31 de março de 1964, um "período de estabilização,
segurança e amadurecimento político." É assim que o teatro de sombras do
período ditatorial funcionou, e para esses representantes a democracia foi
fortalecida nesse período, mas sabemos que, na prática, foi uma tragédia
sanguinária.
No
contexto atual, as sombras neoliberais são ainda mais nebulosas e esparsas, uma
combinação que nos impede, ou atrapalha, de entender melhor o clima
político/econômico. Não obstante, num olhar mais recuado, pode-se perceber que
o palco sobre o qual os atores de hoje representam vem sendo montado há anos, e
que teve, como um primeiro grande ato, uma ficção chamada "jornadas de
junho", em 2013. De lá pra cá, uma sucessão de novas farsas e tragédias
ganham o teatro sombrio no palco Brasil: o impeachment em 2016
(com Supremo com tudo), o "teatro de vampiro" (Temer), "a
facada" em 2018, para ficar em alguns apenas. Fora esses grandes
espetáculos, o dia-a-dia no país tem sido alimentado por pequenas cenas
(sombras), atuações com scripts elaborados para tão somente movimentar
(distrair) a massa crítica, enquanto os verdadeiros diretores e roteiristas
seguem com o planejado.
Jonatas Carvalho.