quarta-feira, julho 15, 2015

Crônicas cancerígenas III

Ontem ele derramou o mingau de aveia no sofá da sala, foi uma bagunça generalizada. Eu estava lhe dando na boca de colher em colher bem devagar, mas seu constrangimento era nítido, então me pediu que o deixasse comer sozinho. Depois do “desastre”, ainda mais constrangido por não conseguir comer sem ajuda me pediu desculpas. Eu lhe disse que estava tudo bem, a primeira preocupação era se ele havia se queimado, mas não, então não havia com o que se preocupar. Coloquei-o no outro sofá e limpei tudo. O olhar culpado dele me partia a alma. Fiz outro mingau e lhe servi brincando e rindo para que ele se sentisse mais leve. 

Frequentemente eu leio e escuto que nós filhos nos tornamos pais de nossos pais, algumas reflexões otimistas dizem que “eles voltam a ser crianças”, e como tal necessitam de cuidados especiais. Mas não há verdade nisso. Há uma enorme diferença entre a velhice e a infância. Quando alimentamos uma criança sabemos que ela em breve estará fazendo suas refeições por conta própria, saberá tomar banho sozinha, ir ao banheiro sem ajuda, ou seja, alcançará a independência. É muito diferente alimentar um idoso, sobretudo quando este fora acometido por um câncer, pois quando ele não puder mais comer com as próprias mãos, sabemos que nunca mais voltará a fazê-lo. Quando não puder mais tomar banho sozinho, não puder limpar a própria bunda, quando não se aguentar sobre as duas pernas... sabemos que não haverá retorno em nenhum dos casos. A diferença reside no fato de que os processos são contrários, estamos falando dos extremos polos da linha da vida, primeiro a evolução e o desenvolvimento, por fim, a degradação da matéria que chamamos de corpo humano. 

O mingau derramado me trouxe uma série de memórias sobre as bobagens que fiz quando criança, refiro-me aqui aquelas bobagens que se comente por imperícia, ingenuidade, curiosidade, essas que as crianças fazem constantemente. E busquei nos meus arquivos neurais momentos assim, quando seu olhar dócil após ter visto a merda pronta, me inocentava. É claro que meus arquivos não são tão organizados, por isso me lembrei do dia em que ele me deu uma surra de leve (mas naquele dia doeu muito), por eu ter rasgado uma folha da bíblia novinha do meu tio Acyr que almoçava conosco em um domingo.

Eu me lembrei das vezes que alimentei meus filhos, das vezes em que os levei ao banheiro, que lhes dei banho e não, não há quaisquer semelhanças. Claro que é um aprendizado cuidar, claro que faço tudo com absoluto boa vontade, mas a sensação que eu tinha ao alimentar meus filhos era de pura alegria, hoje é dor. 

Como aplacar a dor? A dor física fora dizimada pela morfina, mas e a dor moral? E a vergonha de ver seu filho lhe vendo nu, limpando seu vômito? Como minimizar os efeitos da sensação de impotência, quando até pouco tempo se era plenamente ativo? Como não querer atender ao desejo de não querer mais estar neste mundo? Se o câncer tivesse um sinônimo apropriado, deveria ser “a morte que não se deseja pra ninguém”. 



Jonatas Carvalho.