O texto abaixo foi produzido para o evento: Memórias de Tamoios em Cabo Frio.
“Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”.[1]
Jonatas C. de Carvalho.
Quando recebi o convite para falar nesta noite, ao ouvi das professoras o que elas pretendiam com o projeto, duas ideias me ocorreram. A primeira foi imediata, consistia em descobrir como eu faria para relatar uma história que antecede a própria fundação da cidade de Cabo Frio em apenas 15 minutos. Em geral nós historiadores não cultivamos a habilidade da síntese, ao contrário preferimos a minuciosidade. Logo, espero superar este desfio. A outra ideia que me ocorreu é que ao invés de falar propriamente da história do desenvolvimento socioeconômico da região e das contribuições das diversas sociedades que por aqui passaram (sabendo que tais contribuições vocês poderão testemunhar na exposição ao fim desta solenidade), pensei que minha fala contribuiria mais se eu me detivesse sobre o próprio título deste projeto: Memórias de Tamoios. O que exatamente isso quer dizer? Acho importante pensarmos nisso, por que precisamos construir a memória de um lugar em específico?
Começarei então com uma questão aparentemente mais obvia, mas que permitirá uma introdução reflexiva: o que é memória? Se consultarmos nossos dicionários encontraremos mais ou menos a seguinte definição: memória é a capacidade de adquirir (aquisição), armazenar (consolidação) e recuperar (evocar) informações que foram registradas pelo cérebro ao longo da vida de uma pessoa. É o que chamamos de memória biológica. Algumas pessoas ao longo de suas trajetórias, preocupadas com o esquecimento (um tipo de vírus capaz de esconder e às vezes deletar de nossas lembranças tais memórias), resolveram escrever sobre estas de modo a garantir a perpetuação dos acontecimentos testemunhados, conhecemos tais empreendimentos como “Livro de Memórias”. São inúmeros os exemplos, mas cito aqui apenas um que é “Memórias de um Sargento de Milícias” de Manuel Antônio de Almeida, cuja obra nos revela a chegada de famílias portuguesas no Rio de Janeiro do século XIX. Uma memória que nos permite compreender as mudanças sociais no Brasil com a chegada dos imigrantes.
Como os homens desenvolveram a memória? A condição humana de recordar encantou tanto aos gregos que estes colocaram em seu panteão uma deusa: Mnemósine, que era filha de Urano e Gaia. Mas os gregos não estão sozinhos neste interesse, muitos povos cultivaram as artes da memória. Historiadores também procuraram desvendar a memória. No livro “O passado, a memória, o esquecimento” Paolo Rossi, historiador italiano, dedicou um capítulo sobre pessoas com um potencial além do normal de armazenar informações, um tipo de habilidade popularmente conhecida por “memória fotográfica”. A psicopatologia chama de transtorno de hipermnésia, aquelas pessoas que conseguem lembrar-se de todos os momentos de suas vidas desde a infância. Algumas delas enlouqueceram, é verdade, outras criaram métodos de lidar com sua memória; chama-se mnemotécnica. Rossi cita Pietro, um indivíduo que viveu nos anos 400 D.C. e que com vinte anos sabia de cor todo o código de direito civil, e conseguia repetir palavra por palavra de todas as aulas de todos os professores que ouviu durante sua passagem na universidade de Pádua. Por mais tentador que isso possa parecer, esquecer é um recurso fundamental para nossa saúde emocional e física, logo o ato de guardar na memória uma determinada lembrança, implica em esquecer outras tantas.
Mas voltemos à primeira questão, o que queremos dizer com Memórias de Tamoios? Como um ente desprovido de um cérebro pode reclamar uma memória pra si? Vocês poderão me dizer que o sentido da real da frase seria “Memórias sobre Tamoios”, esta seria constituída pelas memórias dos que aqui viveram e vivem, lembranças repassadas oralmente pelos antepassados e registros dessas recordações. Isto, porém geraria alguns contratempos, pois as pessoas têm diferentes lembranças sobre o mesmo lugar, o que resultaria em contrainformações, vejamos um exemplo: Alguém poderia dizer que o primeiro médico de Tamoios fora o Dr. Joaquim, outro irá replicar que muito antes do Dr. Joaquim, o Dr. Antônio já atendia em sua casa na rua L, mais alguém contestará que a casa do Dr. Antônio na verdade era na rua G e que o Sr. Sebastião, embora não fosse médico e sim farmacêutico já tratava das pessoas aqui muito antes de haver médicos. Assim temos alguns impasses.
E é ai que entra a História, esta não pode ser confundida com a memória. O historiador utiliza diversos métodos para desvendar o passado, um deles é confrontar a memória com outras fontes reunindo o maior número de fatos possíveis para confirmar um acontecimento. Por exemplo, a memória dos tempos da escravidão nesta região ainda está bem viva. Muitos aqui já ouviram falar sobre escravidão, até mesmo os mais jovens, há monumentos vivos entre nós para nos ajudar a lembrar deste tempo, os quilombolas que nos cercam são exemplos desses monumentos vivos. Mas quando localizamos um documento, como foi o caso do inventário feito pela coroa portuguesa da Fazenda Campos Novos na ocasião de sua venda ao Sr. Manoel Pereira Gonçalves em 1778, cujas informações presentes, encontra-se o registro do número de senzalas que ali havia (320/59), o nome e a média de idade de cada escravo e escrava com seus devidos valores ao lado. Tal registro, confrontado ou associado a memória da escravidão na região nos permite uma aproximação mais detalhada deste passado.
A memória humana é seletiva por autopreservação, isto é registramos tudo que vemos, mas só armazenamos o que nos marca, aquilo que fez algum sentido, as lembranças inesquecíveis. Querer apagar a memória da escravidão de uma comunidade remanescente de escravos é como querer que você apague as lembranças de um ente querido que já partiu. Algumas lembranças, entretanto, são bloqueadas inconscientemente em nossa memória por terem sido traumáticas, assim passamos às vezes a vida toda sem trazê-las à tona, mas dependendo do quanto traumático foi tal lembrança, mesmo bloqueando-as elas podem nos atrapalhar. Poucas coisas são piores que um trauma psíquico, uma delas é o que chamamos de trauma social. Talvez tenha sido esse o motivo que levou Rui Barbosa em maio de 1891, quando era Ministro da Fazenda mandar fazer uma grande fogueira com os arquivos da escravidão. O romancista estadunidense negro, James Baldwin escreveu no início dos anos de 1960: “Enquanto nos recusarmos a aceitar o nosso passado, em lugar nenhum, em nenhum continente, teremos um futuro diante de nós (...). Tenha consciência de suas origens: se conhecer suas origens, ai não haverá limites que você não possa superar!”[2]
Se as memórias das pessoas são confrontantes, como decidir quais memórias devemos registar sobre determinado lugar. Eu e alguns colegas estamos elaborando o Projeto Executivo de Restauro da Fazenda Campos Novos, o que envolve decidir o que manter da sua estrutura atual e o que não manter, visando deixá-la o mais próximo da arquitetura jesuítica. A Fazenda é um quadrilátero, um solar com um pátio interno, no início do século XX um de seus proprietários resolveu construir neste pátio uma cisterna aparente, captando água dos quatro telhados que a cercava. Estávamos decididos a derrubá-la, por não ser “original”, e talvez ainda devamos retirá-la. Entretanto, recentemente recebi uma visita de uma senhora de uns setenta anos, acompanhada de seu filho e seus netos. A senhora disse que havia trabalhado nas terras da Fazenda nos anos de 1960 e que queria mostrar o lugar à família, num dado momento ela lembrou da existência da cisterna e eu a levei até o local. A senhora com a voz embargada nos revelou que caminhava toda manhã com um balde de barro sobre a cabeça por quilômetros para buscar água ali, pois era o local mais próximo com água potável na redondeza. O modo como àquela senhora se emocionou deixou claro o quanto a cisterna teve importância para ela, mas como a memória de uma pessoa deve servir de justificativa e tornar-se relevante ao ponto de determinar se se deve ou não destruir um bem, ou um monumento? Aquela senhora nos revelou que o proprietário da Fazenda permitia a cada colono retirar um balde de água por dia da cisterna, e que tinha que ser pela manhã, então toda manhã uma fila, que em geral era de mulheres, era formada para retirar sua cota diária de água potável. Este fato muda o valor da memória, pois não se trata de uma memória individual, mas coletiva. Há muitos exemplos de memória coletiva, alguns são bem clássicos, a escravidão, já citada aqui é um deles, o holocausto é outro, há memórias das grandes guerras e muitas outras. Aqui no Brasil criou-se as “Memórias dos anos de chumbo” uma referência ao período dos governos de exceção, este tipo de memória coletiva, são mais fáceis de determinar, pois há um evento em comum que atinge um grupo específico de pessoas.
Mas como definir as memórias de uma cidade, de um distrito ou de uma comunidade ao longo da história? Este questionamento nos leva irremediavelmente a outro, que é: que memória queremos construir de nós mesmos? Que memória devemos fazer perpetuar para gerações seguinte? Estas duas questões carregam em si uma afirmação dada, aquilo que hoje conhecemos como memória social de um povo é uma construção deliberada. Quando o Brasil tornou-se uma república viu-se a necessidade de criar heróis republicanos, já que o império havia construído monumentos suficientes para lembrar ao povo que este tinha um imperador que lhes assistia. Hoje, entretanto, não há mais razões para ocultarmos nosso passado, não há necessidade de esconder que esta área onde estamos pisando um dia foi um palco de guerra onde os interesses coloniais de portugueses e franceses fizeram com que milhares de indígenas tupis fossem dizimados, na chamada “Confederação Tamoio”. Não há por que negar que a costa litorânea dessa região tenha servido de desembarque de negros trazidos ilegalmente da África.
O passado deve ser lembrado não apenas para que no presente não venhamos repetir os erros de nossos ancestrais, mas para acima de tudo possamos reconhecer seus acertos. Michel Foucault, filósofo francês escreveu que tão importante quanto saber o que somos é saber com viemos a nos tornar o que somos. Isto só é possível olhando para trás, não para julgar, mas para valorizarmos aqueles que contribuíram para a formação deste lugar magnífico que hoje chamamos de Tamoios. Homens e mulheres ilustres e anônimos, pessoas de várias etnias, que labutaram a terra, que construíram uma vila, um lugarejo e que hoje é uma cidade. Cabe a nós lembrar todas estas contribuições, mantê-las vivas entre os nossos, mas acima de tudo usar estas memórias com motivação para continuar a transformar nossa cidade num lugar ainda melhor. A memória é um farol que quando olhamos para trás podemos saber de onde partimos em nossa jornada, mas também serve como um norteador que nos permite direcionar para onde queremos ir. Construir a memória de uma cidade, de um local é construir faróis que irão demarcar nossa trajetória. Assim as gerações futuras poderão contemplar os passos dados por seus pais, avós, bisavós e assim por diante. Saberão que seus antepassados pensaram em um amanhã melhor, e lhes deixaram um rastro iluminado por memórias que poderão orgulhar-se daqueles que aqui chegaram antes e com suor e dor, mas também com esperança construíram dignamente o futuro. Desta forma, este projeto será uma grande contribuição para que o provérbio judaico não se concretize entre os nossos, quando afirma que o “homem pode esquecer em dois anos aqui que levou vinte para aprender.” Que as gerações seguintes tenham sempre na memória as lutas que travamos hoje para que tivessem um lugar melhor ao sol que nós.
[1] George Santayana, pseudônimo de Jorge Agustín Nicolás Ruiz de Santayana y Borrás, um filósofo, poeta e ensaísta espanhol que fez fama escrevendo em inglês.
[2] Baldwin, 1962, p.112, 116-7.