“Aprender uma língua é, então, inserir-se em um mundo. Quando morre esta língua, fecha-se uma janela, uma possibilidade de mundo” (Johann & Fensterseifer)¹
Há mais ou menos um mês, acompanhei uma conversa interessante sobre “Parasita” (2019), filme dirigido por Bong Joo-ho. Era uma discussão (online) de viés psicanalítico de um grupo de estudos que minha companheira Ercília (a quem chamo de marida²) faz parte, e eu usufruí da conversa como um ouvinte oculto. Por se tratar de um grupo de estudantes de psicanálise, a conversa girou em torno dos aspectos mais simbólicos do filme. Eu, que já tinha assistido ao filme em 2019, assisti novamente ao lado da minha marida, que o via pela primeira vez. É interessante quando vemos um filme, direcionados por uma linha de discussão, podemos dizer, quando somos sugestionados.
Fiz novas reflexões sobre como a obra trata o abismo sócio-cultural que promove a “distinção” (Bourdieu), entre determinados grupos (ou classes) sociais. Um abismo que é construído justamente para este fim: distinguir seres humanos de outros seres humanos. Os bairros de luxo com suas mansões, suas avenidas impecáveis e largas, muito verde, os supersedãs pretos conduzidos por motoristas uniformizados, desfilando pelo asfalto sem buracos, muita iluminação e câmeras. O pouco de transporte público que por ali circula, o faz para trazer e levar os(as) serviçais que irão: limpar, lavar, passar, arrumar, cozinhar e levar os cãezinhos (que valem um ano de seus salários) para passear.
Esses ambientes fantásticos (de fantasia mesmo), porém concretos, permitem que seus habitantes vivam em uma espécie de paraíso na terra, também os tornam completamente alienados do resto da cidade em que vivem e propiciam uma visão absolutamente deturpada da vida social nos bairros comuns, em especial das áreas mais pobres como as periferias, favelas, vielas, becos e morros. Esse abismo é magnificamente retratado em “Parasita”, os dois mundos são estranhos um ao outro, separados por uma “escadaria” (outro comentário que ouvi no encontro) quase sem fim, em que o pobre para se dirigir ao bairro dos ricos precisa subir, subir, subir… e, para retornar a sua casa necessita descer, descer, descer… a distância entre esses dois mundos, medida pela altura, deixa claro quem está em cima e quem está embaixo na escala social.
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René Magrite - A condição Humana, 1933 |
Ao longo da discussão, foi a alusão às “janelas de Parasita”, observação de uma colega do grupo de quem eu só ouvi a voz, que mais me chamou a atenção. Fiquei semanas pensando nessa imagem. Quem já assistiu ao filme, não tem como não se lembrar da imensa janela na sala dos Park (família dos ricos), que dava para um gramado impecavelmente verde com dezenas de árvores devidamente podadas ao fundo. Em contraste, a pequena janela do porão dos Kim (família pobre), situada no fim de um beco, só se podia ver os beberrões da rua se aproximarem para ali urinar. Enquanto os Park contemplavam através de sua imensa janela a chuva torrencial que caía sobre seu gramado esplêndido, pela janela dos Kim, a água barrenta da chuva, entrava, inundando toda a casa.
As janelas já foram objeto de representações simbólicas em romances, filmes ou mesmo como elemento de reflexão filosófica.³ Quando pensamos em janela como metáfora a frase mais popular é: “os olhos são a janela da alma”. Uma busca rápida na internet, esta afirmativa é atribuída a Leonardo da Vinci, mas também a Edgar Allan Poe ou mesmo ao imperador romano Cícero.4 A fonte da frase não importa aqui, o que nos interessa é se a metáfora dos “olhos como janela da alma”, pode ser aplicada em “Parasita”.
Primeiramente, creio que devemos refletir sobre o significado da expressão, “os olhos como janela da alma”, a meu ver, tal expressão pode ser pensada a partir de dois sentidos:
Primeiro, esses olhos não são olhos que miram o exterior, mas que revelam o interior não expressado pela língua. Assim, os olhos revelam o que está dentro, aquilo que a fala oculta, omite ou mesmo falseia, os olhos seriam uma janela através da qual se pode ver a verdade que procuramos esconder com a boca ou com o silêncio. Essa interpretação, no entanto, nos leva a outra questão: que a alma que se revela através dos olhos de alguém, só se revela ao ser confrontada com outro olhar.
Segundo, o modo como direcionamos nosso olhar, aquilo que, com nossos olhos dedicamos tempo e qualidade, é esse olhar dedicado que revelaria nossa alma. Ao escolhermos olhar para um lado em vez de outro, revelamos nossas sensibilidades, nosso interior.
Uma vez esclarecidas as duas possibilidades de pensar esta metáfora (pode haver outras), creio que podemos agora buscar saber qual desses dois sentidos nos é mais apropriado para pensar as janelas de “Parasita”? Acredito que ambos. No primeiro sentido, não são poucos os exemplos, olhares que revelam angústia, nojo, desejos, medo, preconceitos, raiva… não pronunciados(as) pela língua. Não me dedicarei aqui a discutir esse sentido, isto porque é o segundo sentido que mais me interessa pensar. Por qual razão? Porque as janelas de “Parasita”, o modo como elas aparecem nas cenas do filme, são sempre do interior para o exterior, isto é, sempre que olhamos através das janelas de “Parasita”, o fazemos do lado de dentro.
A partir daqui, nossa metáfora da janela poderá se associar a outras metáforas ou alegorias. Se estamos tratando desse olhar que está dentro, a observar o mundo por uma janela, devemos pensar esta janela como uma possibilidade, mas também como uma perspectiva, ou seja, se por um lado a janela é uma “abertura” (que nos permite ter contato com o mundo exterior), por outro, ela também é “limite” (pois olhamos apenas o que o enquadramento da janela nos permite ver).
Aqui, talvez, possamos conectar a janela como metáfora com a alegoria da caverna de Platão, a janela assim viraria a parede da caverna, onde se vê aquilo que é projetado pela luz da fogueira que está atrás. As imagens que vislumbramos pelos sentidos, tomadas como realidade, não passam de réplicas imperfeitas do real, como nos alertou Platão. Mas creio que para fazermos essa comparação com um pouco mais de fidelidade a metáfora das “janelas de Parasita”, precisaremos alterar um pouco a alegoria de Platão, uma vez que nesta, as pessoas se amontoam diante de uma mesma parede, de uma única caverna e compartilham as mesmas impressões sobre o real. Não seria o caso de pensarmos em outras cavernas com outras pessoas, com outras paredes e com impressões distintas do real? O que me leva a pensar que, em algumas situações, se pode moldar a paisagem exterior conforme a idealizamos, mas que as idealizações são heterogêneas.
Se pela janela dos Park se pode ver um gramado absolutamente verde, árvores em harmonia, tudo simetricamente perfeito, é porque havia antes, uma ideia de perfeição paisagística combinada a uma ideia de arquitetura igualmente magnífica, que puderam ser concretizadas. Desta forma pode-se moldar o real ao nosso ideal? Pode-se, desde que haja condições sociais e econômicas para tal. Porque, no caso dos Kim, fica difícil imaginar que alguém idealizou aquela paisagem. Quem idealizaria um real como aquele? Quem, havendo liberdade de escolha, decide morar nos porões de um beco fétido? E se os homens da alegoria de Platão não tivessem alternativas se não, a de tomar como real aquelas imagens projetadas na parede da caverna? Ou, ainda, e se as imagens tomadas como real em nossas janelas não fossem aquelas que nós idealizamos, mas que nos foram impostas?
Se em Platão, as imagens projetadas na parede da caverna são imposições da percepção enganosa e, portanto, a razão é o único caminho para chegarmos a uma verdade última, isto é, deixar a caverna e enxergamos o real como ele é. Em “Parasita”, temos duas janelas que projetam realidades incomensuráveis. Hoje sabemos que não existe uma realidade última e originária, sabemos também que as duas realidades retratadas em “Parasita” são construções sociais. Mas se são construções sociais, as imagens que são projetadas por meio de nossas janelas podem incidir sobre quem nós somos? Reformulando, somos de alguma forma definidos a partir da paisagem que se apresenta a nós pelas aberturas que dispomos?
Sei que estou me estendendo, talvez, um pouco repetitivo, mas antes de responder às questões acima, preciso voltar um pouco, porque há mais uma questão fundamental que devemos refletir antes, refiro-me sobre os olhos serem “as janelas da alma”. Quanto às janelas como metáfora creio que já exploramos essa questão de modo satisfatório, mas o que devemos pensar sobre a “alma”? Creio que devo esclarecer aqui que não sou um essencialista, portanto, interpreto essa categoria “alma”, como nossas subjetividades. Caso contrário, quem vier a ler essas reflexões, um pouco prolixas eu sei, poderá pensar que eu creio em algum tipo de sujeito universal, cuja essência humana perdura continuamente no tempo e espaço. Dito isto, por “alma”, entendo aquilo que nos individualiza, este indivíduo (indivisível, uno), só pode se constituir com tal por meio das interações, isto é, só existe subjetividade pela intersubjetividade. Neste sentido, o conhecimento não é propriedade de uma consciência individual, mas processo intersubjetivo mediado pela linguagem (Johann & Fensterseifer). É por isso que Gianni Vattimo (2003) escreveu que não existe realidade objetiva em parte alguma; “não há ninguém que veja a verdade sem ser com os olhos, e os olhos são sempre de alguém. Se quero arrancar os olhos para ver as coisas como realmente são, não vejo mais nada.”
Voltando às questões que deixei em suspenso, se somos definidos pela paisagem que se apresenta a nós como realidade? Penso que não. Mas se ela (a paisagem) não nos molda, tem condições de produzir habitus (novamente Bourdieu), isto é, estruturas estruturadas socialmente e por isso, estruturantes. A própria paisagem é parte da estrutura estruturada, ela é elemento intersubjetivo entre a sociedade e o indivíduo, nela, estão fundidas às condições objetivas e subjetivas.
Se você chegou até aqui, sinto se irá se decepcionar, se Nietzsche não pretendeu erigir novos ídolos, imagine se eu ousaria a tanto, por isso não trago aqui qualquer revelação nova, desde o início destas linhas deixei claro que pretendo apenas refletir sobre essa noção de “janela da alma” a partir de “Parasita”. Nem por isso vou deixar aqui de dar um passo adiante, no sentido de chegar a algum lugar com essa reflexão. Um lugar que enxerguei com “meus olhos”, um lugar que enxerguei hoje, mas que amanhã poderei ver de outra forma. Em “Parasita”, vemos duas janelas que projetam realidades antagônicas, uma mostra uma realidade harmoniosa e ordenada, a outra mostra uma realidade caótica e hostil. Pela janela dos Park, a realidade de pessoas como os Kim é fruto da falta de vontade de mudar a própria realidade, falta-lhes mais esforço, mais mérito, falta propósito. Por isso, ao contemplar seu paraíso particular por meio de sua imensa janela, o Sr. Park, se sente orgulhoso, pois fez por merecer.
É esta a realidade produzida pelas classes dominantes, a de que as desigualdades brutais são resultados do esforço, do empreendedorismo, isto é, do desempenho individual de alguns, e claro, da ausência destes elementos em outros. Projetam-se imagens por todos os veículos de mídia e comunicação reforçando esta paisagem: do trabalho e do esforço como caminho para uma realidade melhor. Esta, é a janela da “alma do capitalismo”.
Jônatas Carvalho.
Notas:
¹ Johann, M. R., & Fensterseifer, P. E. (2020). LINGUAGEM E CONHECIMENTO: “JANELA” COMO METÁFORA DA CONDIÇÃO HUMANA. Revista Ilustração, 1(2), 69–78. https://doi.org/10.46550/ilustracao.v1i2.19
² Por que Marido e Mulher? Por que não Marido e Marida? Acompanhem o link e descubram o que o roteirista Yann Rodrigues tem a dizer sobre isso: https://alemdoroteiro.com/2015/08/30/marido-e-mulher/#:~:text=Para%20come%C3%A7ar%2C%20%E2%80%9Cmarido%E2%80%9D%20vem,%2C%20especificamente%2C%20o%20homem%20casado.
³ Já que estamos no campo do cinema, vou citar aqui dois filmes em que a janela é tomada como metáfora: Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock - 1954) e Janela Secreta (David Koepp - 2004).
4 De acordo com Marco Azamorra em “Meu olho, minha alma” a frase correta é “os olhos são a janela da alma e o espelho do mundo” e foi escrita por Leonardo da Vinci.