Eu
passei praticamente todo o 2020 em casa. Confinado, adotei as medidas de
segurança recomendadas e passei ileso por esse ano que parece ter saído de um
filme de distopia.
Sou
professor, assim como algumas outras categorias, pudemos usufruir do trabalho
remoto e das aulas online. Sempre tive a consciência de que isso era um
privilégio, acompanhei de perto os temores e os riscos daqueles que precisavam
ir às ruas porque foram considerados "essenciais". Naquele momento,
quando tudo ainda era muito novo para todos nós, a população temeu o vírus.
Estávamos trilhando um caminho positivo, mas o caminho começou a ser bloqueado quinze
dias depois, tomamos outra direção. O bloqueio foi feito pelo líder
máximo da nação, cujo protagonismo ao longo da pandemia (que ainda se alastra
por aqui), certamente será incomparável na história.
Os que conseguiram ficar em
casa, sabem que também não foi tarefa fácil, ao longo do ano nos demos conta
que o "home office" era mais desgastante do que imaginávamos. Claro,
muitas empresas precisaram se reinventar, isso exigiu mais dos trabalhadores. No campo da educação as mudanças
foram enormes, professores e alunos tentando se submeter ao universo da vida
on-line. Mas para os professores foi ainda mais penoso, um arsenal de
ferramentas e softwares eram disponibilizados, gravar aulas, dar aulas on-line,
preparar provas em "modelo forms", "google classroom",
"loom', "obs stúdio",... todas as aulas precisaram se converter
em slides. Eu sentava às 7h na cadeira em frente ao computador e saía às 21h.
Mas não posso reclamar, acompanhei a saga de muitos amigos e amigas de
profissão, sobretudo, as professoras, essa mulheres incríveis que são mães e
esposas, muitas sem um escritório em casa davam suas aulas em espaços pouco favoráveis, expondo a intimidade de sua casa aos alunos e alunas. Não posso
sequer imaginar como foi para essas mulheres o ano de 2020.
Ao final de julho havíamos
"atingido o pico de mortes diárias". No dia 29 de julho foram
registradas 1.554 mortes, ao todo eram 90 mil mortos. O presidente, que no dia
22 de março dissera que não passaríamos de 800 mortes, no final de julho fazia
pouco caso da parceria entre o Instituto Butantan e a farmacêutica chinesa Sinovac.
O fato é que começamos e ver a curva achatar, entre final de julho e início de
novembro caímos bem, mas ai veio às eleições. Os políticos colocaram seus cabos
eleitorais nas ruas, não sei quantas mortes foram necessárias para preencher os
acentos nas câmaras legislativas municipais e as cadeiras almofadadas de
prefeitos neste país. Depois vieram as festas de final de ano, no dia 30 de
dezembro tivemos 1.224 mortes.
Bom, creio que não preciso
recordar a ninguém o que vem ocorrendo em 2021. A verdade é que mesmo com um
quadro bem pior do que nossa pior média no ano anterior, a vida parecia ter
realmente voltado ao normal, shopping centers abertos, praias lotadas, ruas
tumultuadas, trens, ônibus e metrôs abarrotados, as escolas voltaram com as
aulas presenciais. Eu que passei 2020 ileso, contraí o vírus no início de
março, justamente quando em quase todo o país os leitos de UTIs esgotavam-se.
Felizmente, não precisei recorrer a um.
É difícil descrever o que se
passa na cabeça de quem contrai o vírus em um cenário como o que temos por aqui. O economista no IPEA, Marcos
Hecksher, publicou uma pesquisa dizendo que no Brasil as chances de morrer
por Covid é três vezes maior que na grande maioria dos países. No dia 3 de
março, quando meus primeiros sintomas surgiram, havíamos atingindo a marca de 1.840 mortos. Você começa a pensar
quais serão suas chances de sair dessa vivo. Hoje em dia todos nós conhecemos
alguém que se foi pelo vírus, eu perdi parentes e amigos, vi gente muito mais nova que eu ser intubada, o que me torna
diferente deles? À medida que os sintomas vão se tornando mais agudos, um turbilhão
de pensamentos agonizantes paira sobre nós, é impossível não pensar. Qualquer
respiração mal dada é motivo de desespero. Mesmo que se eu tivesse grana para recorrer a um hospital como o Sírio Libanês (que no meu imaginário só atende grandes empresários e políticos), eu teria uma fila de espera.
Os professores que até então
estavam em sua grande maioria seguros, agora passam a fazer parte das
estatísticas. Eu fiquei pensando, porque minha categoria deveria ser poupada
enquanto tantas outras já estão no risco desde o início? E você acaba se
sentindo culpado ao se permitir pensar demais. As alegações para o retorno as
aulas presenciais são plausíveis até certo ponto. Sabemos que a grande maioria
dos alunos e alunas desse país não teve condições de estudar, que os governos
estaduais e municipais pouco fizeram por estes. Sabemos que só uma parcela
menor, os da rede privada tiveram acesso ao ensino remoto de fato. Sabemos o
quão caótico tem sido para os pais que precisam trabalhar e não podem deixar
seus filhos em casa, muitos não sabem o que fazer. Sabemos o quanto isso afeta
a vida emocional desses jovens. Mas é só isso? O retorno às aulas na rede
privada tem algo a mais, tem a ver com a saúde financeira dessas escolas, o
impacto na economia afetou as escolas privadas, a inadimplência escolar
aumentou significativamente. As escolas empregam centenas de funcionários não apenas professores. Mas a grande questão é quantos professores (e outros funcionários) deverão
morrer para que a economia escolar volte a se equilibrar? O que acontece se um aluno morrer por ter contraído o vírus no interior do espaço escolar? Efeito colateral?
As escolas privadas têm falhado
nos protocolos de segurança, salas ultrapassando os limites de acomodação,
algumas escolas não oferecem salas apropriadas aos professores. Nós estamos
dando aulas de máscara, tendo que forçar nossa garganta, ao final do dia
estamos sem voz. Você arriscando sua vida no transporte público e o guri que
foi trazido de carro pelo pai, dorme sem culpa na sua aula. Valerá o
sacrifício?
Muitos
alunos, porém, seguem circulando livremente por ai, aumentando as chances de se
tornarem transmissores potenciais do vírus. As novas cepas (variantes) tem provocado
internações de uma população mais jovem nos hospitais. Vale a pena o
risco? Estamos diante de um dilema que parecia ter sido encerrado ao final
da 2ª Guerra Mundial: morrer em nome de uma causa seja ela qual for. Depois de
tantas mortes, decidimos que é a vida que justifica a causa, não o contrário.
Não querer dar minha vida pra salvar a economia é um direito conquistado.
Claro, com isso não quero dizer: fecha tudo! Sei bem o que isso significa, mas
como disse Miguel
Nicolelis, ou fechamos agora, por um tempo, ou não daremos conta de
enterrar nossos mortos.
Somente uma ação coordenada nos
tirará dessa situação, mas já fomos eleitos o pior país na gestão
da pandemia. A compra de vacinas por parte do Ministério da Saúde é um
drama a parte. Sem vacina, sem leitos de UTIs, sem isolamento social, somos um
grande rebanho em pleno processo de contaminação. Mas nada disso é casual, não
faltam evidências de que este sempre foi o propósito. Pesquisadores se
dedicaram a analisar os decretos, projetos de lei, normativas e tudo mais que
foi produzido ao longo da pandemia, são mais de três mil documentos. O
resultado? O
governo federal fez o que pode para impedir que tivéssemos qualquer sucesso em
vencer o vírus.
Nesse projeto de
"necropolítica", a letalidade
do vírus é potencialmente maior entre os mais pobres. O mito do
"tratamento precoce" se alastrou junto com o vírus criando uma falsa
rede de proteção. O velho "gabinete do ódio" se converteu em um
escritório criminoso de propagação de desinformação. Até o final de março
chegaremos a 300 mil mortes. Aqueles que contraíram o vírus como eu e
sobreviverem, sabem que a máxima que diz "o que não me mata, me
fortalece" é frágil, diante de tantos corpos acumulados.
Jonatas Carlos de Carvalho
Professor na Educação Básica e Pesquisador associado ao INCT-InEAC/UFF