O projeto do parque fluvial do Piabanha prevê o desassoreamento de seis quilômetros do Rio Santo Antônio (que corta Itaipava). Este terá suas margens reflorestadas, serão construídas ciclovias e uma praça na área de confluência com o rio Piabanha. O discurso oficial se parece com aqueles das reformas autoritárias executadas no Rio de Janeiro desde Pereira Passos (1902-1906). No caso atual o que está em voga é o discurso da ecologia associado à segurança, os representantes do Estado alegam que o parque não só trará melhorias estéticas, como também resolverá o problema das enchentes evitando possíveis tragédias como as que ocorreram em 2008 e 2011. Na época de Pereira Passo, o discurso não era tão diferente, o progresso (assim como a ecologia nos dias de hoje), justificava as interferências que levaram a expulsão das populações pobres do centro do Rio de Janeiro. Entre os anos de 1920 e 1922, Carlos Sampaio, prefeito da cidade do Rio de Janeiro demoliu o morro do castelo, removendo os pobres que ali habitavam para os subúrbios sem qualquer estrutura. Nas décadas de 40 e 50 diversas intervenções do Estado (demolição do morro Santo Antônio, abertura da Avenida Presidente Vargas, Avenida Brasil, criação da Radial Oeste) provocaram mais deslocamentos das populações de classe baixa, o ápice, foi a remoção de mais de 70 mil pessoas que viviam nas “favelas” da praia do pinto (Leblon), catacumba (Rodrigo de Freitas) e Macedo Sobrinho (Botafogo) que foram transferidas para a Cidade de Deus, Cidade Alta e Agua Branca, periferias que não contavam na época com serviços de iluminação, água canalizada e saneamento básico.
É assim que tem sido desde então. Todas as obras sobre a égide do progresso tiveram como pano de fundo a “higienização” das áreas contempladas por meio da remoção das populações mais vulneráveis. Os representantes do Estado sabem que tais projetos recebem apoio da maioria de seus cidadãos devido ao argumento do “bem maior”. Não é atoa que associações como a “Novamossanta”, uma associação que se reúne nos condomínios do bairro Santa Mônica em Itaipava apoiam e fomentam este tipo de ação. Para seus associados trata-se de um projeto justo, que irá melhorar a qualidade de suas vidas. Os condôminos poderão sair de suas lindas casas, ocupadas nos finais de semana, de bicicleta apreciando a bela paisagem que se estabelecerá com a remoção dos “casebres” que antes comprometiam visualmente o trajeto das ruas. Estes nobres defensores da natureza, bastiões da ordem pública não estão preocupados para onde irá a população que habita a “área vermelha”, mesmo sabendo que muitos dos que ali vivem são seus empregados; caseiros, jardineiros, zeladores e domésticas. Pouca importa para eles se o valor pago pelo Estado nos imóveis desapropriados é injusto, o fato destas populações não conseguir adquirir outras casas com a indenização do Estado, ou o fato de centenas de famílias viverem por anos de “aluguel social” (que muitos acham uma insensatez do Estado), até que uma casa popular lhes seja entregues, aos seus olhos, é apenas efeito colateral.
Outra alegação que justifica o projeto está nas “edificações irregulares”, o “desrespeito” a legislação que determina que toda edificação deverá obedecer à distância de 30 metros dos rios. Tal argumento desconsidera edificações legalizadas, com seus devidos impostos em dia, portanto, autorizadas pela Prefeitura Municipal de Petrópolis. Desconsidera ainda as centenas de propriedades e condomínios (um exemplo é o condomínio Itaipava Country Club, cujas casas nesta situação não serão atingidas pela política de remoção) que foram constituídos com desmatamentos e à margem desses mesmos e canais. As construções irregulares são resultado da falência das políticas de habitação dos Estados e Municípios. As comunidades que se constituíram nas encostas de morros ou margens de rios, no caso de Petrópolis são muitas, sofrem com o estigma de “invasores”, são os “bodes expiatórios” das tragédias anunciadas, que permite aos governantes se isentarem da responsabilidade de elaborar políticas públicas que garantam moradia para todos os seus cidadãos.
Políticas como esta que está ocorrendo com os moradores da Estrada das Arcas, Gentil, Madame Machado, Benfica e Cuiabá, visam remover estas moradias que “enfeiam” a paisagem, estas são impedimentos para o avanço da especulação imobiliária e, por conseguinte da valorização patrimonial da região. O parque teria neste sentido, um duplo objetivo, primeiro transformar a paisagem retirando dela o “feio” e o “desordenado”, segundo elevar o status habitacional da região de modo que apenas as classes mais abastadas tenham condições de adquirir terrenos e propriedades na mesma.
Após o exposto, cabe uma reflexão sobre a palavra "desapropriação". Os dicionários definem assim: procedimento pelo qual o Poder Público, fundado na necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente, despoja alguém de certo bem, móvel ou imóvel, adquirindo-o para si em caráter originário, mediante justa e prévia indenização. Tal definição suscita outros questionamentos: o que é "interesse público"? A quem cabe decidir pelo "interesse social"? Quem define a "justa indenização"? A história das desapropriações no Brasil, sobretudo, as praticadas pelo Estado do Rio de Janeiro, é uma história de injustiça, de imposição da força e de intolerância. Hoje sob o argumento da preparação da Cidade para a Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016), milhares de pessoas estão sendo removidas de seus lares, alguns casos (como na construção da transoeste) as remoções se deram sem a “prévia e justa indenização”, como manda a lei.[1] O “interesse público” no caso da construção do Parque Fluvial do Piabanha segue a mesma ordem do discurso, embora a Secretária do Inea alegue que o órgão está “negociando” com os moradores.
Não me espantarei se em breve máquinas surgirem acompanhadas de oficiais de justiça com ordem de demolir as casas dos “intransigentes” por recusar a “generosa oferta” de Estado, mas realmente espero que isso não ocorra. Se ocorrer, será mais um ato insano de um Estado ausente, que quando se faz presente é para oprimir e discriminar aqueles que mais necessitam de sua assistência.
Jonatas C. de Carvalho.
É historiador e pesquisador associado ao LEDDES – Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
[1]Alana Gandra: Repórter da Agência Brasil.
Rio de Janeiro – Boletim divulgado hoje (26) em Genebra, na Suíça, pela relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Moradia Adequada, a urbanista brasileira Raquel Rolnik, alerta o governo brasileiro sobre casos de violações dos direitos humanos na remoção de comunidades em função das obras para a Copa de 2014 e, no caso do Rio de Janeiro, também para as Olimpíadas de 2016. Veja a matéria completa aqui: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-04-26/onu-denuncia-violacao-de-direitos-humanos-na-remocao-de-familias-para-obras-da-copa-do-mundo-de-2014
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