domingo, setembro 09, 2018

VERDADES INVENTADAS E ELEIÇÕES 2018


A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. 
(Michel Foucault, Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.12-13)

Me lembro como se fosse hoje, mas era o domingo de 26 de outubro, dia de votação no segundo turno das eleições de 2014, Dilma X Aécio. Eu estava saindo de casa para votar e me deparei com meu falecido pai já retornando da urna, era cedo ainda, ele parecia revoltado, peguntei o que havia acontecido e ele esbravejou: Mataram o doleiro está nos jornais! Referindo-se a Alberto Youssef, estopim da Operação Lava Jato. Eu respondi que infelizmente o fato de estar nos jornais não torna algo em fato.... é, foi mais uma verdade inventada pela grande imprensa. A população brasileira acordou com essa notícia que fez com que muitos mudassem seus votos naquele dia, como meu pai mudou, somente no final da tarde desmentiram. 

O fake news não nasceu na época da internet, ele tem a idade do homem. A história da domesticação do homem, da submissão dos povos a governos, do estabelecimento dos impérios é permeada por uma incontável produção de verdades inventadas. Desde a carta de Constantino, documento falso que a igreja utilizou para se dizer proprietária do Império Romano Ocidental, ao discurso do papa Urbano II em 1095 sobre a "ameaça" dos infiéis muçulmano a terra santa, que resultou nas cruzadas. Ao longo dos séculos, das grandes navegações ao neocolonialismo, para invadir um território habitado ou mesmo ocupar um continente inteiro (como a África), a produção de verdades inventadas foi o elemento fundamental, aquilo que permitia, autorizava, justificava. As verdades inventadas produzia os inimigos, caracterizava sua condição de selvageria, crueldade. Muitas verdades foram inventadas para se estabelecer os controle populacional, para manter as força de trabalho produzindo, para justificar a escravidão. 

A história das guerras é também uma história de fake news. os Estados Nacionais contaram com o apoio jornalístico e publicitário para produzir verdades inventadas, cito aqui apenas a foto de Joseph Rosenthal, ganhadora do Pulitzer, reproduzida por todo o Ocidente, Rosenthal registrou a vitória dos soldados estadunidenses na ilha japonesa de Iwo Jima em 1945. A foto de soldados hasteando a bandeira dos EUA no topo da ilha tornou-se um dos maiores fakes da história, os soldados que percorreram  o país, identificados como os heróis que hastearam a bandeira em Iwo Jima e ajudaram na propaganda para arrecadar fundos para a guerra, não eram os mesmos da foto, um dos verdadeiros hasteadores morreu sem reivindicar sua condição de hasteador. 



No Brasil, o fake news chegou junto com a colonização, do império a constituição da república toda sorte de verdades foram inventadas visando a garantia do poder pelas oligarquias locais. Nos primeiros anos de república as disputas pelo poder entre grupos políticos que levaram a uma sucessão de golpes que só foram possíveis graças as verdades inventadas. Getúlio que usou o assassinato de João Pessoa tomar o poder (após perder as eleições) em 1930, anos depois foi vítima de uma enorme quantidade de acusações, dentre elas a do atentado contra a vida de Lacerda em 1954. A imprensa nacional durante décadas foi a grande produtora de verdades inventadas, prestando um enorme serviço aos militares nos anos de chumbo, contribuindo para a invenção da categoria criminosa do "sujeito subversivo". 

Se as redes sociais não inventaram o fake news, contribuíram significativamente para sua popularização em tempo real. Talvez o dado novo que aqui se percebe, é que até então se pensava que a produção de verdades inventadas era resultado da ganância dos poderosos, hoje descobrimos que um indivíduo qualquer em um lugar qualquer é capaz de usar seu celular como arma de propaganda enganosa e encontrará eco nas redes sociais de milhares de outros indivíduos que replicarão tal informação. O direito a opinião, outrora reservada apenas aos "ilustrados", tornou-se práticas dos "comuns". muito embora não anula o que Pierre Bourdieu disse em "Tempos Modernos" publicado em 1973: "A opinião pública não existe". (Link no final da página) 

A rede social possibilitou-nos a sensação estarmos integrados ao mundo, isto pode ser notado de várias formas, quando uma doméstica, moradora da Rocinha, vê que sua patroa do Leblon compartilhou sua publicação sobre culinária ou o motorista de caminhão que recebe mensagens do patrão via aplicativo, enobrecendo o trabalho e o mérito no grupo  da empresa. Por outro lado, o ambiente virtual revelou-nos também uma série manifestações que ultrapassam o limite da opinião, subvertendo preconceitos de toda ordem como forma de opinião, como é ocorre nos discursos de ódio. O ódio, ou o discurso de ódio, também não é uma invenção das redes sociais. Nossa espécie, por sinal, é a única capaz de cultivar ódio. Nossa história com o ódio e a violência é de longa data, temos o 4º trânsito mais violento do mundo, somos líder mundial em violência rural, nossa violência urbana possui taxas de violência acima de países em guerra e recentemente alcançamos o status da 3º maior população carcerária do mundo. Para piorar, matamos mais gays e policiais que qualquer outro pais. Toda essa violência reflete nas opiniões na rede social, é possível que em breve estejamos também liderando mundialmente nesse quesito.

O ódio disseminado tal como está, revela uma sociedade esquizofrênica, um prato cheio para os eruditos da psicologia social, milhões de perfis reais (e falsos) fomentando diariamente "opiniões" odiosas sobre tudo. Mas não apenas isso, o ódio é fabricado, plantado por meio da produção das verdades inventadas, isso também não é novo, mas ganha dimensão desmedida pela velocidade que tais verdades se proliferam. Se de fato existe opinião pública (algo que Churchill discordava, para ele o que havia é opinião publicada), esta encontra-se hoje esfacelada pela pós verdade, onde o "fato" é menos relevante, influencia menos que as crenças individuais. 

Tomando como exemplo a situação brasileira recente, a rede social, utilizada cada vez mais como um espaço de disputa para a produção de verdades inventadas cujo discurso de ódio é destilado no âmbito extremo da direita e da esquerda na desqualificação do outro pela simples diferença de ideias e, por conseguinte, na construção de um inimigo que deve ser compelido, quem sabe, até  extirpado da sociedade. Isso pode ser percebido em eventos drásticos recentes, na execução de Marielle Franco, poucas horas depois de tomar os noticiários, já havia publicações na rede ligando a vereadora a Marcinho VP, condenado a 36 anos por tráfico de drogas. atacaram sua sexualidade, atacaram sua cor de pele. Outro caso recente, foi o incêndio no museu nacional, algumas horas depois acusações surgiram na rede social acusando a UFRJ de ter recebido 21 milhões do BNDES para reformas e que tal dinheiro desapareceu, outro dizia que o governo gastara 60 milhões com a Lei Rouanet, ambas inventadas. No outro lado da polarização, dezenas de montagens circularam na internet mostrando a facada a Jair Bolsonaro como fraude, claro, ocorreram também montagens associando o atentado ao PT. O que é surpreendente nisso tudo é que a polícia sequer havia tido tempo de interrogar o suposto agressor, diversas versões já circulavam pela rede. 

A possibilidade de criar um "fato" novo (breaking news), tendo as mãos um smartphone que permite editar imagens, propicia a um indivíduo que sequer tenha qualquer ideologia política ocupar-se de produzir verdades inventadas de todas as formas apenas por diversão. Os partidos perderam o controle sobre a manipulação das informações, o que não quer dizer que pararam de manipulá-las, a grande imprensa idem, a justiça, sobretudo a eleitoral está perdida sobre como punir os produtores de verdades inventadas. Nessas eleições poderemos bater todos os recordes de fake news e você que compartilha sem medo as informações que lhe chegam, é mais uma peça manipulável nesse jogo de verdades inventadas. 

Jonatas Carvalho.