Em "Memórias de um ajudante de Farmácia", o cronista revela seus aprendizados com seu primo "Costinha", prático de farmácia a quem o ajudante demonstrava admiração pela capacidade de manipulação das químicas. A leitura desta crônica me levou a Thomas De Quincey, que em "Confissões de um comedor de ópio"(1856), relata a primeira vez que lhe "abriram o paraíso dos comedores de ópio", chegando a duvidar se o farmacêutico que lhe atendera era mesmo um homem, preferindo manter em sua mente "a visão beatífica de um farmacêutico imortal", enviado a terra para aquele encontro.
Rubem Braga descreve as incríveis soluções e elixires mais vendidos em sua época e revela-nos a existência de um tipo de bíblia dos farmacêuticos: o Formulário Chernoviz. O jovem ajudante ficou impressionado com as mais de mil e quinhentas páginas do livro que continha os mistérios sagrados das mais variadas plantas e sais. O Formulário Chernoviz era na verdade um tipo de guia médico, mas seu autor, um polonês formado em medicina na França, Pedro Luiz Napoleão Chernoviz (1812-1881), também publicou um "Dicionário de Medicina Popular" (GUIMARÃES, 2005). Na prática, ambos eram chamados de "o Chernoviz" e eram plenamente utilizados por farmacêuticos ao longo do período imperial e início da república.
A produção de "Guias Médicos" já era uma prática presente no Brasil desde o período colonial. Me lembro de ter encontrado na documentação do inventário da Fazenda Campos Novos (1775), em Cabo Frio, uma descrição detalhada dos itens da botica dos jesuítas naquele lugar. Dentre os quais achavam-se, por exemplo:
Hum vidrinho de óleo de copaíba com pouca quantidadeHum vidro de óleo de ouvidos
Dous ditos de óleo de amêndoas
Hum dito de óleo rozado
Hum dito de mel rozado
Hum dito de agoa para olhos
Huma lata de triaga brazileira
Huma lata de trementina
A listagem acima é apenas uma parte dos itens descritos na documentação, caso você seja desses indivíduos curiosos (o que significa que é dos meus), basta clicar no "botica dos jesuítas" acima que o hiperlink te levará para a descrição completa. Mas não foi somente a botica que a documentação nos revelou, encontramos também uma livraria na Fazenda, sobre ela, o professor Nireu Cavalcante (2009) escreveu,
foram listados 66 títulos diferentes, entre os quais seis eram proibidos. Do total listado nove eram manuscritos versando sobre “Medicina”, “Modo para assistir aos doentes e aos agonizantes”, “Modo para aparelhar pano ou madeira para pintura”. (Grifo meu).
A médica e pesquisadora, Maria Regina Cotrim Guimarães (2005), já citada acima, revela em seu artigo que esses manuais de medicina estavam presentem por aqui desde o século XVI, o que a documentação da Fazenda Campos Novos parece confirmar. Alguns exemplos são: o "Tratado único das bexigas e sarampo", do médico Romão Mosia Reinhipo (1683) e o "Erário mineral", de Luís Gomes Ferreira (1735), um dos primeiros de grande circulação no Brasil. Um desses manuais que me chamou a atenção foi o produzido pelo doutor Jean-Baptista Alban Imbert, refiro-me ao "Manual do fazendeiro ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros" (1834). Uma obra que surgira da preocupação com os "ilustríssimos fazendeiros de obterem socorros inteligentes da medicina" no cotidiano com os escravos. (RODRIGUES, 2010). Mas o Chernoviz tornou-se a grande referência das "artes médicas". Rubem Braga cita em suas memórias que o livro sagrado na farmácia que trabalhara era uma edição de 1892, tratava-se de 15ª edição na verdade.
Um artigo publicado em 2017, escrito a quatro mãos, dois estudantes de medicina, uma médica e um estudante de farmácia, analisou as indicações terapêuticas da cocaína no Formulário Chernoviz, 17ª edição, de 1904. A obra utilizada no artigo, pertencera a uma família de mulheres que manipulavam medicamentos na farmácia "Oswaldo Cruz", na cidade do Barro, no Ceará, no início do século XX. Segundo os autores, a ausência de médicos na cidade, que fica a 524 km da Capital, incentiva a prática da manipulação dos remédios e algumas práticas cirúrgicas, como a de fimose e partos.
Trago o exemplo da cocaína aqui, por se tratar do meu atual objeto de pesquisa, mas há uma infinidade de outras possibilidades que podem se converter em xaropes, vinhos, extratos, tinturas, conservas, emplastos, emulsões, bálsamos, unguentos e óleos. Rubem Braga, por sua vez, escrevera, que só pelo fato de ter se livrado de preparar os óleos de rícino e de fígado de bacalhau, já considerara ter tido uma infância feliz. Voltando a cocaína, o Formulário Chernoviz lista 8 aplicações terapêuticas:
Moléstias dos olhos;Moléstias da laringe e da faringe;
Moléstias da vagina e dos órgãos genitais;
A Noite - 1931 |