quinta-feira, outubro 13, 2022

DISSONÂNCIAS COGNITIVAS E A PRODUÇÃO DA (PÓS)VERDADE.

 

É quase óbvio supor que as pessoas constroem suas bases ideológicas lingado-as a um determinado conjunto de racionalidades que lhes dão sentido existencial. Escrevo “quase óbvio”, porque realmente isso nos parece evidente, mas não é tão simples assim. Nós humanos, justamente porque necessitamos dar sentidos e significados ao que fazemos, uma diferença que, ao que parece, nos singulariza ante as outras espécies vivas, acabamos por nos envolver em toda sorte de explicação existencial/espiritual. A coerência, elemento da racionalidade, não é exatamente nossa grande característica, somos muito mais que elaborações racionais. Não é por outra razão que estranhamos quando o outro se sente absolutamente confortável diante de ideais que para nós não fazem sentido.

João Cezar de Castro Rocha, professor de literatura comparada (UERJ), autor de “Guerra Cultural e Retórica do ódio: Crônicas de um Brasil Pós-político” (2021), recentemente escreveu um artigo em que trabalha com duas categorias conceituais na intenção de explicar o que se convencionou chamar de “bolsonarismo”. As categorias são: Dissonância Cognitiva Coletiva e Midioesfera Extremista. Castro Rocha retirou a noção de Dissonância Cognitiva do psicólogo social Leon Festinger, autor de “A theory of cognitive dissonance”(1957). Para resumir, em 1954, Leon infiltrou-se em uma seita estadunidense denominada The Brotherhood of the Seven Rays (A irmandade dos sete raios), sua líder, Dorothy Martin, profetizara que no dia 21 de dezembro daquele ano, um dilúvio destruiria o mundo, mas seus membros seriam salvos por um disco voador que viria de um planeta chamado Clarion.

Quando o dia chegou e o mundo não inundou, muito menos surgiu um disco voador para o resgate, o que você imagina que aqueles fiéis fizeram? Se você pensou em algo como dar uma surra na Dorothy ou abandoná-la por lá sozinha, você se enganou. Festinger detalhou essa experiência em "When Propechy Fails" (Quando falha a profecia - 1956). Os fiéis encontraram uma alternativa para lidar com a dupla frustração, cuja conclusão foi: o dilúvio não ocorrera, justamente porque, a força da fé de seus membros conseguiu evitar o que o pior acontecesse. A paz voltou a reinar na Irmandade dos sete raios. Se você achou essa solução sem pé nem cabeça, coisa de maluco, eu vos digo, isso é mais comum que imaginamos. Tal reação não é privilégio de seitas religiosas/espiritualistas, estamos no campo das convicções humanas. Nietzsche, lá no século XIX, já nos alertara sobre esse tema ao dizer que as convicções são mais perigosas para a humanidade que a mentira, porque o mentiroso sabe que está mentindo, mas o convicto tem a certeza de que detém a verdade. Creio que não necessito listar aqui toda a violência produzida ao longo da história humana, em defesa de certas verdades.


Francisco Goya - El Aquelarre (1798)
A dissonância cognitiva é entendida como um desconforto psicológico, de acordo com Festinger, esse desconforto se torna o elemento motivador que faz com que o indivíduo busque meios para reduzi-lo, de modo que consiga restituir a harmonia cognitiva. Para reduzir a dissonância, o sujeito evitará a todo custo informações que poderiam potencializá-la, desta forma, procurará informações confluentes com seu conjunto de crenças.

Todos somos em alguma medida afetados por dissonâncias cognitivas, há um jeito moderado de lidar com isso, basta você não ser alguém com fortes convicções. Pessoas abertas a conhecer novas interpretações da vida, outros sentidos e significados para suas questões, no geral, ajustam sua cognição. O convicto, porém, é um apaixonado. Para o grande educador e psicanalista, Rubem Alves, o convicto, apesar de ter dois ouvidos e uma única boca, ele é incapaz de ouvir, só quer falar, apenas a sua verdade interessa. A questão que se levanta é: onde e como tal verdade é produzida? Ela estaria em algum lugar reservado e somente uns poucos iluminados seriam capazes de alcançá-la? Ela, a verdade, possui característica sagrada, reveladora, única e imutável? Foucault nos lembra em “A verdade e as formas jurídicas”(1973), que a verdade é desse mundo.

Voltando ao artigo de João Cezar de Castro Rocha, a noção de dissonância cognitiva de Festinger, é associada ao conceito de “coletivo”. O objetivo é produzir uma ferramenta analítica que possa abarcar um grupo maior; estamos falando de milhões de brasileiros. O outro conceito, “Midioesfera extremista”, é introduzido para complementar a análise. Se o sujeito procura reduzir o desconforto da dissonância cognitiva evitando informações que confrontam suas crenças e valores, portanto, intensificam o desconforto, logo deduz-se que ele buscará informações que lhe traga conforto. O “bolsonarismo”, de acordo com Castro Rocha, é alimentado cotidianamente por uma “Midioesfera” própria, capaz de aplacar a dissonância cognitiva que resulta da exposição das contradições (falha da profecia), que circulam em outras esferas midiáticas. Não é por outro motivo que a grande mídia passou a ser demonizada, acusada de estar associado as ideologias “comunistas” ou “globalistas”. Os dois principais veículos da “Midioesfera extremista” seriam o whatsapp e o telegram.

Apesar de me parecer uma análise altamente perspicaz, ela não aprofunda uma questão essencial, que é a da identificação desses indivíduos com tais ideais. Isto é, o que faz alguém definir quais ideias fazem mais ou menos sentido? Quais elementos internos estão por trás da escolha por um ideal? O que motiva alguém abraçar uma causa? Eu iniciei esse texto desfazendo a crença na racionalidade, porque se fosse algo puramente racional, possivelmente teríamos mais homogeneidade no pensar. Aqui eu entro com outra importante contribuição, a de Mauro Lasi, doutor em Serviço Social (UFRJ). Menciono aqui um ensaio escrito por Lasi em 2018, intitulado “A psicologia de massas do fascismo ontem e hoje: por que as massas caminham sob a direção de seus algozes?” Lasi percorre as teses sobre a origem do fascismo, escritas por Wilhelm Reich (1897-1957), psicólogo e psicanalista, que quando jovem fora assistente de Freud. Reich estudou o fascismo, mas não somente isso, ele foi perseguido por sua ascendência judaica. Em 1933 publicou “A psicologia das massas do fascismo”, obra em que procurou justamente tentar explicar como a classe trabalhadora, oprimida e explorada, aderiu o nacionalismo fascista em vez de promover a revolução. Os marxistas de então imaginavam que a crise que se instalara na Europa entre 1923 e 1933, inevitavelmente conduziria as classes trabalhadores aos ideais de esquerda, mas Reich defendia que não existe necessariamente uma relação entre crise econômica e ideologia. Segundo ele, o próprio Marx não compreendia que as condições materiais determinassem a consciência de classe.

O fascismo, segundo Reich, no caso da sociedade alemã, teria se beneficiado da formação educacional burguesa calcada em dois pilares: um arranjo familiar baseado na repressão aos impulsos sexuais; e o caráter da “classe média baixa”. O resultado dessa combinação é “o conservadorismo, o medo a liberdade, em resumo, a mentalidade reacionária”. Para não me estender muito por aqui, para Reich “o fascismo, na sua forma mais pura, é o somatório de todas as reações irracionais do caráter do homem médio”. Ou seja, estamos falando de uma sociedade que recorre ao chamamento da ordem, porque no processo de interiorização das relações sociais fomos marcados por uma moral castradora (Nietzsche).

O fascismo dialoga como esse apelo a ordem moral, os milhões de eleitores de Bolsonaro, não são “bolsonaristas”, mas se identificam com o slogan “Deus, Pátria, Família e Liberdade”, porque esses temas estão intimamente ligados ao recalque das pulsões humanas. Não é por outra razão, que os “escândalos” de origem sexual, ao lado da corrupção, são os que mais derrubam a popularidade politica.

Há um último ponto que quero trazer, porque a noção de Dissonância Cognitiva Coletiva, desenvolvida para ser aplicada a um grupo considerado extremista, pode fazer com que achemos que, se não nos encaixamos em polos extremos estamos livres de sofrermos o mal-estar da dissonância cognitiva. Minha questão é a seguinte: Se você é um cidadão ou cidadã, que vive no Brasil, EUA, ou qualquer país da Europa, você consome um conjunto de informações que eu chamarei aqui de “Midioesfera Ocidental”, me apropriando aqui de um dos conceitos de Castro Rocha. Isso significa que se você é alguém que acorda com o telejornal, assina os formatos online de sites de notícias, daquilo que chamamos de grande impressa, você é alimentado cotidianamente com “informações jornalísticas” que expressam o mundo do ponto de vista ocidental. Essa imprensa oficial ocidental massifica ideias e noções em nossas mentes até que estas sejam naturalizadas. Para ficar em um exemplo, quando se trata de conflitos internacionais, envolvendo ocidente e oriente, tudo que nos chega aqui é pensado a partir de Bruxelas, o que podemos chamar de modo OTAN de comunicar, essa comunicação é replicada por todos os veículos e mídias ocidentais.

Essa “imprensa internacional”, são condutoras das verdades geopolíticas como quer o Ocidente, assim indivíduos como Osama Bin Laden e Saddan Hussein nos parecem sujeitos altamente perigosos e países como Irã, Coreia do Norte e China representam risco ao “mundo democrático”. Temos como exemplo atual a Rússia. As sanções aplicadas ao país recebe notícias favoráveis na “imprensa internacional”, não foi diferente com àquelas impostas a Cuba, Venezuela e Nicarágua. Sempre que nos deparamos com visões opostas a “Midioesfera Ocidental”, nossa dissonância cognitiva se manifesta, o que fazemos para resgatar a harmonia? O que, em geral, fazemos quando a “profecia falha.” Como quando se descobriu que o relatório de armas químicas que justificou a invasão ao Iraque em 2003 era falso? Fazemos o que fizeram os membros da “Irmandade dos Sete Raios”, encontramos novas formas de justificar nossas crenças. Mas o fazemos buscando nas informações de a “imprensa internacional” nos fornece, a “Midioesfera Ocidental” está ai para isso, harmonizar nossa consciência, garantindo que estamos do lado certo da história.

Jonatas Carvalho

Um comentário:

Anônimo disse...

Ótimo texto, professor!