sexta-feira, março 10, 2023

A PSICANÁLISE EM ANÁLISE.

— Quer dizer que a senhora nasceu em meio aos círculos vienenses de classes abastadas, circulou pelas camadas sociais elevadas da Europa, na Suíça, por exemplo, e tornou-se queridinha das elites francesas? A senhora já emprestou seus ouvidos a um pobre?

— Para sua informação, eu não nasci em meios abastados como acreditas, meu mentor, era filho de um comerciante modesto na Morávia. O rapaz teve uma vida muito difícil, apenas na maturidade conseguiu algum conforto.

— Mas seus outros dois mentores, eram oriundos de classes elevadas, não?

— Se refere a Jung e Lacan?

— Sim.

— Eram. Mas acho que tal associação não é relevante. Quantos saberes nasceram em meio às classes dominantes? O que dizer da medicina? Da própria filosofia grega, restrita apenas aos cidadãos atenienses, por exemplo.

— Claro, mas a medicina se popularizou, assim como a filosofia. Mas me parece que a senhora ainda se encontra distante das classes menos favorecidas.

— Mas você julga que este é um problema meu? Não seria uma condição imposta por outros discursos? Não esqueçamos que estamos lidando com relações de saber-poder em que eu sou colocada numa condição de inferioridade, de não ciência, por vezes, até de impostora.

— Não seria o caso então de se fazer ser ouvida? Comprovar sua condição científica e seu valor no mundo?

— Caminhei bastante, já dei alguns passos importantes, mas não se alcança tal condição apenas pelo caminho do debate científico-metodológico, outra vez mais repito, estamos diante de relações de saber-poder, logo, trata-se também de política.

— Mas seus acusadores são pontuais quanto às suas desqualificações.

— Ah sim, eu os conheço bem, assim como suas acusações. Alguns da psicologia alegam que estou ultrapassada, não sou apropriada para lidar com o mundo moderno, mundo este em que se exige soluções mais rápidas para tudo. Outros dizem que sou pretensiosa ao estabelecer categorias que seriam universalizantes, que desconsidero as sociabilidades múltiplas e a diversidade cultural.


— Mas não há verdade nessas acusações?

— Evidente que não. Saberes e conhecimentos são vivos, se transformam com a nas sociedades. Afirmar que sou ultrapassada, ou inapta porque o mundo mudou, é ignorar que os psicanalistas de hoje não são os mesmos do passado, eles ou elas são deste tempo. Você vai ao médico achando que vai encontrar um Hipócrates? Vai a um advogado esperando encontrar um código de Hamurabi? Por que achas então que vais deparar com o Freud no consultório de um ou uma psicanalista? Eu tenho um passado, ele me orienta, mas não me determina, estou por décadas em constante relação com todas as mudanças e transformações sociais. Meus diálogos com a antropologia, sociologia, pedagogia, psiquiatria e muitos outros campos de saber são profícuos, quanto a psicologia, há milhares de profissionais da área que me abraçaram.

— O que dizer aos que alegam, como certos setores da neurologia, que a senhora é insuficiente? Em especial em casos de esquizofrenia, comprovadamente uma doença de caráter neurológico.

— Eu gostaria de saber quem é suficiente? Eu nunca me iludi com a suficiência meu filho. Desconheço um saber que se pretende suficiente, se há algum, não é saber. Já se foi o tempo em que as sociedades foram analisadas por meio de métodos retirados das ciências naturais. Sabemos há muito tempo das complexidades humanas e sociais, eu, certamente, não ignoro isso. Tenho um papel na sociedade, um importante, mas nunca absoluto, nunca esgotado em mim, ao contrário.

— Bem, se me permite então voltar à segunda pergunta que fiz no início de nossa conversa, quanto aos pobres, a senhora não está muito restrita às camadas médias e altas? A senhora já se aproximou dos pobres?

— Ora, ora, realmente espero que sua pergunta seja apenas ignorância. Vejo que você nunca ouviu falar do Instituto Psicanalítico de Berlim. Criado em 1920, com alguns objetivos específicos, nossa preocupação primeira foi auxiliar os pobres rapazes que sobreviveram àquela guerra devastadora, mas voltaram com neuroses horríveis. Quando eu digo nós, me refiro, para além do meu primeiro mentor, outros grandes colaboradores, como Max Eitingon, Ernest Jones, Karl Abraham, Sàndor Ferenczi e Ernest Simmel. No relatório elaborado pelo Max, após dez anos de trabalho, Freud, escreveu um prefácio que irá, creio eu, responder sua questão, lerei uma parte:

As páginas que seguem descrevem a organização e as realizações do Instituto Psicanalítico de Berlim, ao qual cabem três funções importantes no interior do movimento psicanalítico: tornar acessível nossa terapia à massa de seres humanos que não sofrem menos de suas neuroses que os ricos, mas que não estão em condições de pagar pelo seu tratamento. (Freud, 1930).

O instituto foi um projeto da Associação Internacional de Psicanálise, no fundo, um grande sonho meu, que, com a solidariedade de meus colaboradores, conseguimos realizar. Se me permite, quero trazer aqui um testemunho do que ocorreu naquele lugar.

— Claro, por favor, a vontade.

— Lerei um depoimento de Simmel:

Era um empreendimento ousado, em tempos de colapso econômico, um instituto que devia tentar tornar o tratamento psicanalítico acessível àqueles mesmos que viam sua neurose ser reforçada por causa da miséria econômica ou que eram ainda mais expostos, suscetíveis ao empobrecimento material por causa de suas inibições neuróticas. Dada a extensão da catástrofe social do período pós-guerra, a capacidade do Instituto Psicanalítico de Berlim só poderia ser insignificante; no entanto, hoje, suas possibilidades de impacto, de incidência social, excedem amplamente o tratamento de um indivíduo. As 117 análises atualmente em curso são o centro, o eixo de uma penetração psicanalítica que se espalha de maneira contínua, precisamente na camada social desfavorecida. De fato, a psicanálise pode liberar o indivíduo de sua atitude irracional em relação à realidade, causada por seus complexos; ela o torna novamente capaz de atividades normais e tem, portanto, efeitos de saúde mental inclusive sobre aqueles que o rodeiam (Simmel, 1930).

— Creio que deixei claro, que as preocupações com os menos favorecidos, sempre estiveram presentes na minha história. Há muitos outros exemplos que eu poderia dar aqui, mas penso que esse é suficiente.

— Mas e hoje? A senhora pode dizer que é acessível aos mais pobres?

— Escute meu filho, Freud dizia que as "neuroses ameaçam a saúde pública não menos que a tuberculose." Imagino que você saiba o que a tuberculose já representou em termos de saúde pública? Pois bem, mas isso foi superado, ela não é mais uma ameaça, porém, as neuroses nunca deram trégua. Acreditas que temos mais ou menos neurose no mundo hoje do que no tempo de Freud?

— Creio que mais.

— Pois é. Hoje, já posso ser considerada uma senhora, mas uma característica que me marcou desde a juventude, é que sempre fui oposição ao discurso dominante da medicina em enxergar o paciente como um sujeito passivo, alienado sem quaisquer condições de referenciar a si mesmo. É contra esse discurso, ainda não totalmente superado, que eu sigo lutando. É provável que por isso sigo barrada na saúde pública por aqui no Brasil, o que não significa que eu esteja totalmente de fora, tenho contribuído por diversos caminhos, mas não há um cargo funcional no SUS para psicanalista, embora haja muitos psicanalistas concursados por outras funções e atuando em equipes multidisciplinares.

— A senhora tem esperança de que isso mude?

— Não sei se esperança é o termo mais adequado, como nos ensinou Spinoza, a esperança é um afeto que está sempre acompanhada do temor. Eu apenas lido com isso, desenvolvo minha própria ataraxia, sem que isso se torne uma acomodação, ao contrário. Procuro ocupar outros espaços que considero muito importantes, mais que isso, fundamentais. Há muito tempo contribuo para o debate sobre forjar subjetividades descolonizadas, seja no campo das questões raciais, das múltiplas orientações sexuais ou de gênero. Dedico-me à construção de um Eu autônomo, desalienado, reflexivo e capaz de deliberar sobre si. Meu objeto, nunca foi o sujeito (cartesiano ou transcendental), mas o indivíduo em seus processos de individuação.

Jonatas Carvalho.




Referências:

NUNES, Macla. A Policlínica de Berlim: utopia freudiana?. Trivium, Rio de Janeiro , v. 12, n. spe, p. 50-56, set. 2020 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-48912020000200007&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 07 mar. 2023.

FONSECA, Valéria Wanda da Silva. A psicanálise tem os meios paratratar os pobres?. Estud. psicanal., Belo Horizonte , n. 34, p. 133-142, dez. 2010 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372010000200020&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 07 mar. 2023.

Prefácio ao Relatório sobre a Policlínica Psicanalítica de Berlim (março de 1920 a junho de 1922), de Marx Eitingon. In: ______. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

Introdução à Psicanálise e as Neuroses de guerra (1919) In: ______. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

Thamy Ayouch. A psicanálise : um projeto de autonomia ?. Cadernos Ser e Fazer, 2005, pp.55-70.

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