quarta-feira, janeiro 17, 2024

O DISCURSO MISSIONEIRO EM SÃO MIGUEL DAS MISSÕES E O NÃO-LUGAR DOS GUARANIS.

Eu escrevi aqui, há dias atrás, sobre minha perplexidade na recém estada no Rio Grande do Sul, diante das palavras e expressões dos gaúchos e gaúchas. Foi uma crónica anedótica, um retrato caricaturado, que não tinha qualquer intenção de reduzir os nossos compatriotas das bandas de baixo do país, que é um povo acolhedor, amável e alegre.

Mas ocultei, propositalmente, suas contradições (que também são nossas), o conservadorismo, o reacionarismo, o preconceito de gênero e o racismo, também são dignos de nota daquela região. Não vou me estender aqui, há uma significativa produção textual sobre isso nos centros de produção acadêmicas e de pesquisa por lá. Este texto, é apenas uma reflexão sobre minhas impressões no evento “SOM E LUZ” em São Miguel das Missões.

Chegamos às ruínas de São Miguel Arcanjo no final da tarde, tivemos pouco tempo para contemplá-las à luz do dia, mas uma das primeiras coisas que notei foram duas nativas guaranis, uma senhora e uma moça, recolhendo seus objetos que se achavam sobre um pano estendido ao chão. As ruínas são magníficas, uma impactante obra de genialidade dos arquitetos inacianos e, claro, dos guaranis. Para os interessados no site do IPHAN há maiores detalhes.

Mas foi o conteúdo do espetáculo SOM E LUZ, sem dúvida belíssimo e de enorme qualidade técnica, que mais me impactou. Em especial o roteiro, interpretado por vozes de famosos atores e atrizes nacionais, escrito por um descendente de italianos de Caxias do Sul, Henrique Grazziotin Gazzana, formado em medicina e letras. A ideia do roteiro, sem dúvida é criativa, as ruínas e a terra narram os acontecimentos. Um texto que condena a ganância dos colonos e dos impérios espanhol e português, que engrandece o Guarani, mas acima de tudo é um louvor aos jesuítas. De acordo com o texto, os inacianos ajudaram a enriquecer ainda mais a cultura guarani, sem corrompê-los. Como se a cristianização dos povos indígenas por si só, não fosse uma corrupção. O discurso missioneiro do texto, isenta a Cia de Jesus, ignora que a riqueza produzida pelos inacianos foi gerada pela exploração do trabalho dos povos originários das Américas. Os inacianos são apresentados como as salvaguardas do bom selvagem, como se o projeto jesuítico não almejasse mais nada.

Foto do autor.
Se escrevo isto, não o faço com ausência de fontes, como historiador pesquisei por seis anos as fazendas jesuíticas do Rio de Janeiro, em especial, a Fazenda Campos Novos, sobre a qual escrevi diversos artigos. A Cia de Jesus, tornou-se uma potência mundial, uma empresa moderna, envolvida em toda ordem de exploração, um braço fundamental do projeto colonizador. É claro, que havia inacianos bem intencionados, que de fato se envolveram com os nativos, mas isso não elimina o etnocentrismo.

O roteiro do espetáculo SOM E LUZ, escrito em 1978, reflete esse etnocentrismo, que se traduz ainda hoje na exclusão dos Guaranis, se não a exclusão total, pelo menos o seu papel secundário. Ao olhar o entorno do projeto de São Miguel das Missões, não vemos o nativo em nenhum espaço de poder, as lojas de artesanato ao redor, são de gente branca, os profissionais que atuam no projeto, são gente branca, aos guaranis, sobrou, o pano no chão com sua peças artesanais.



Um comentário:

Anônimo disse...

Pela primeira vez me deparo com uma crítica ao projeto jesuítico, falando sobre a exploração dos indígenas, pela Companhia dos religiosos, e sobre a falta dos guaranis nos espaços de poder das ruínas que sobraram, nessas Reduções indígenas!!