quinta-feira, janeiro 16, 2025

DITADURAS E RESISTÊNCIAS LATINOAMERICANAS: MEMÓRIA, HISTÓRIA E ARTE.

Eu e minha marida assistimos "Ainda estou aqui", alguns dias antes de Fernanda Torres ser premiada. Faz poucos dias que escrevi aqui um texto refletindo sobre os papéis do 6 e o 8 de janeiro, respectivamente nos EUA e no Brasil. O fato é que os eventos históricos, independente dos atores sociais envolvidos, tornam-se espaços de lutas pela memória que acabará prevalecendo (mesmo que não prevaleça eternamente, ocasionalmente memórias são resignificadas). É assim que surgem os heróis e vilões nacionais (é assim que alguns heróis são convertidos em vilões e vice-versa). Estes são construídos discursivamente, neste sentido, a memória é produzida pelas relações de poder, logo, aqueles que detêm o poder econômico-político, cujas forças controlam os meios de comunicação e produção de conhecimento, tendem a determinar que memórias devem ser memoradas e de que forma elas devem ser memoradas.. É aí que entra a história, o ofício da pesquisa histórica (também sociológica, geográfica, antropológica, arqueológicas entre outras), sua busca pelas fontes documentais, materiais e orais, podem re-significar certas memórias.

Cito um exemplo bem recente e prático, a Folha(SP) publicou em novembro de 2024, uma matéria sobre a retirada de luminárias japonesas no "beco dos aflitos" no bairro da Liberdade. Por tratar-se de um bairro amplamente conhecido como “bairro japonês” — se você "der um google", vai ver que a maioria absoluta das informações sobre o bairro estão ligadas a cultura japonesa, o mesmo ocorre com os bairros Bela Vista e Mooca em relação aos italianos — não faltaram críticas, chegaram a falar em tentativa de apagamento da memória japonesa, um "jornalista" do Gazeta do Povo, falou em discurso da militância do movimento negro. Quando na verdade, e aí a documentação é fundamental, o bairro da Liberdade, não tem esse nome a toa, mas por ser historicamente um bairro negro. A Capela do Aflitos, inaugurada no século XVIII, assim como o cemitério dos Aflitos e o Largos do Enforcados (também conhecido como morro da forca, onde se construiu a igreja de Santa Cruz das Almas dos Enforcados), são alguns exemplos da presença negra na liberdade é anterior a japonesa.O que ocorreu foi uma sobreposição de memória, isto é, a construção de uma memória sobre outra, como escreveu o historiador Paolo Rossi, em Memória e Esquecimento (2010), não esquecemos por apagamento puro e simples, ao contrário, esquecemos por sobreposição, isto é, não é por ausências que ocorrem os apagamentos, mas sim as presenças e novas simbioses.
               Painel: Memorial da Resistência

Não é diferente com nossa história sobre o regime ditatorial, as tentativas de negar duas décadas de supressão de direitos, censura, repressão, sequestros, torturas e assassinatos é uma produção discursiva que procura se sobrepor a memória da ditadura, instaurando novas presenças que ignoram fontes históricas ou as deturpam. Entretanto, tais tentativas são suportadas por um arcabouço frágil, um pequeno gigante de pés de barro, que não aguenta uma hora de debate sem se repetir.


Eu e minha marida estivemos na semana passada na Pina Estação, onde, em caráter permanente foi montado o Memorial da Resistência, um lugar com uma farta documentação sobre os espaços de tortura construídos no Brasil ao longo dos anos da ditadura. É emocionante (pesado) visitar as celas onde nossos presos políticos viveram (ou morreram) grandes sessões de terror. Mas não para por aí, há outra exposição no mesmo espaço, porém itinerantes, chamada Uma Vertigem Visionária — Brasil: Nunca Mais, com curadoria do pesquisador e professor Diego Matos; novamente, uma farta documentação. O Brasil: Nunca Mais, produziu e sistematizou cópias de mais de 1 milhão de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal Militar (STM), revelando a extensão da repressão política do Brasil no período. A documentação foi toda digitalizada e está disponível no site https://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. E se os os duvidosos não ficarem satisfeitos, — digo duvidosos, porque os negacionistas se recusam a enxergar, estão convencidos, e, como escreveu Nietzsche, o convicto é mais perigoso que o mentiroso, pois o primeiro tem a certeza de que está com a verdade, — temos mais uma exposição, tão impactante quantos as outras, trata-se de Memória argentina para o mundo: o Centro Clandestino ESMA. O ESMA (antiga Escola de Mecânica da Marinha), onde atualmente funciona o Museu Sítio de Memória, era um Centro Clandestino de Detenção, Tortura e Extermínio, em Buenos Aires (AR). Dos 30 mil presos e desaparecidos da Ditadura Argentina, entre os anos de 1976 e 1983, cerca de 5 mil foram enviados para a ESMA, o que fez do espaço o maior centro de tortura do país. A documentação apresentada na exposição é impressionante, particularmente, ainda mais tocante são os depoimentos das mulheres por lá presas e torturadas. Ao todo, se colocarmos os documentos em linha, são 5 quilômetros em papéis que revelam a desumanização e a barbárie por parte da ditadura argentina.

Estes espaços seguem sob a mira furiosa daqueles que querem destruir tais memórias, no exato momento em que escrevo este texto, não por coincidência, o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, em péssimas condições de preservação, foi fechado pelo governador Cláudio Castro. O ex-diretor do Arquivo, Victor Travancas, exonerado após denunciar as más condições gerais do arquivo, alertou sobre o comprometimento da conservação da documentação, incluindo uma vasta documentação do período da ditadura no Brasil. Algo semelhante ocorre com a ESMA, o atual presidente Javier Milei, segundo a Folha (SP), pretende enxugar a política de memória na Argentina, quando na verdade o que se pretende é tornar tal espaço cada vez mais inacessível ao público.

O historiador Rodolfo Costa Machado, da PUC-SP, investigou os “arquivos do terror” do Paraguai, tais arquivos foram revelados pelo advogado e ativista Martín Almada, preso político da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989). A mulher de Almada, morreu de infarto em prisão domiciliar, porque os militares ligavam pra ela e a obrigavam a escutar as sessões de tortura do marido. Rodolfo Machado, fez parte da Comissão da Verdade no Brasil, seu grupo de trabalho investigou a documentação sobre a participação do grande empresariado, são muitas, dentre elas podemos citar a Volkswagen, Paranapanema, Folha de São Paulo, Fiat, Aracruz e muitas outras. Mas foi René Armand Dreifuss, em sua robusta obra, “1964: A Conquista do Estado” (1981), que revelou a participação do capital estangeiro nos golpes militares pela América Latina, especialmente, a participação da “ADELA”, acrônimo para Atlantic Community Development Group for Latin America, grupo multibilionário formado em 1962, encabeçado pelo vice-presidente do grupo Rockfeller, reunia cerca de 240 empresas industriais e bancos. No Brasil, os interesses econômicos do “ADELA” estavam representados em think tanks como o Ipes [Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais], o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), ambos ligados à Escola Superior de Guerra (ESG). Mais recentemente, outro historiador, Pedro Henrique Campos, em sua tese “Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar”, demonstra como as conhecidas Queiroz Galvão, Camargo Correa, Andrade Gutierrez e Odebrecht, só tornaram-se grandes conglomerados devido ao apoio aos generais. Outras empresas, por não se alinharem aos generais, como a Panair, a TV Excelsior, os jornais Correio da Manhã e Última Hora, ao contrário, foram fortemente perseguidas até serem entregues aos grupos que apoiavam a ditadura. As empresas investigadas, violaram todas as formas de direitos, perseguiram trabalhadores, torturavam dentro de seus estabelecimentos e fizeram uso do trabalho escravo, como foi o caso da fazenda da Volkswagen no Pará e a Paranapanema, que utilizou mão de obra indígena na construção da Transamazônica. A Volkswagen assinou, em 2020, um acordo na ordem de 36 milhões junto ao Ministério Público de São Paulo. Trata-se do primeiro caso de reparação empresarial em razão da prática de crime de violação de direitos humanos.

A produção acadêmica-científica sobre o período das ditaduras na América Latina cresce anualmente, aos poucos novas documentações vão sendo reveladas. Rodolfo Costa Machado, em sua tese de doutorado (2017-2022), se debruçou nos arquivos dos EUA, especialmente sobre a operação Condor. Ainda há muita documentação escondida, protegida e desaparecida, no entanto, o que está disponível para investigação já soma uma quantidade significativa e inconteste dos absurdos cometidos sob alegação enganosa de combater o comunismo. Mesmo que o governo Lula III, se recuse a dar prosseguimento aos processos iniciados pela CNV, preferindo uma forma de “conciliação por cima”, beneficiando as elites militares e civis, não falta disposição em outras esferas da sociedade para seguir em frente e esclarecer este passado obscurecido. Por exemplo, o Relatório da Comissão da Verdade Indígena, segundo o qual, mais de 8 mil indígenas foram mortos na Ditadura, mais de 30 mil sofreram todo o tipo de violação. A reparação aos indígenas, sequer iniciada, é entre tantos casos, algo que não pode ficar no esquecimento. A decisão de Lula pela conciliação, isto é, não querer mexer na ferida, é uma acinte aos parentes dos mortos e desaparecidos tanto do campo, quanto da cidade.
 

   

6 comentários:

Marida disse...

🙌🏻🙌🏻

Anônimo disse...

Maravilhoso

Anônimo disse...

Aqui Quem escreve o ator Alan comunista achei maravilhoso o texto parabéns

Anônimo disse...

Obrigada, meu genro, por mais um texto, cheio de informações que ajudam a esclarecer o que foi a Ditadura, quando muita gente ainda nega reconhecer os fatos e a violência que correram, a partir de 64.

Anônimo disse...

* que ocorreram

Anônimo disse...

Gostei desse painel! Imagino que seja uma tela onde se clica no assunto e aparecem as informações! Ou estou exagerando na imaginação?