quinta-feira, fevereiro 23, 2017

A MORTE DE DEUS E O HOMEM PROBLEMÁTICO

"Copérnico destruíra a ilusão cósmica de que o homem estava no centro do universo. Darwin destruíra a ilusão biológica de que o homem era um ser essencialmente diferente e superior aos animais. Finalmente, a psicanálise desferiu  o golpe que é provavelmente o maior de todos, nomeadamente que o homem nem sequer era dono da sua própria casa, que o ego (razão) não dirigia a vontade e todo o trabalho do espírito, como normalmente se pensara." Franklin L. Baumer. 

Denominado pelo historiador Eric Hobsbawm de "o longo século", o século XIX foi de fato um período extremamente importante para compreendermos, parafraseando Foucault, "como nos tornamos o que somos". Trata-se de uma época cheia de dualidades, se por um lado é o período das metanarrativas, das utopias que visavam uma sociedade moral e economicamente viáveis. Por outro, é também no dezenove que se consolida as bases para a desconstrução do sujeito histórico moderno, do homem ilustrado. O fim do homem só se concretizaria no século XX, após as duas Grande Guerras, assim podemos dizer, numa expressão kuhniana, que é a partir da metade do século XIX que o paradigma moderno apresenta-se em crise. 

O sonho da razão produz monstros - Franciso Goya.  
A dissolução do homem só foi  possível após a morte de deus. Esta se deu por meio de um processo gradual, passando por Espinosa, excomungado por ateísmo em 1656, por Feuerbach autor de "A essência do cristianismo" em 1841, até a publicação de "A gaia ciência" em 1882 por Friedrich Nietzsche. A obra de Nietzsche é uma constatação de que uma forma de pensar havia sido substituída por outra, a morte de deus, é assim, o fim de uma estrutura de pensamento cujo fundamento era a teologia judaico/cristão. Freud em 1927 no seu ensaio "O futuro de uma ilusão" escreveu: " Os deuses conservaram a sua tripla tarefa, afastar os pavores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do destino, em especial como ele se mostra na morte, e recompensá-los pelos sofrimentos e privações que a convivência da cultura lhes impõe." Ao fim, conclui: "Não há instância alguma acima da razão." A nova estrutura de pensamento, agora calcada na razão iluminista kantiana, colocara o homem no lugar de deus, e apesar de toda a euforia gerada pela superação das superstições religiosas, Nietzsche não se entusiasmou, para ele seria necessário também superar o homem.

Franklim Baumer, ao escrever " O pensamento Europeu Moderno" no início de 1970, dedica-se no volume dois de sua obra a demonstrar como o homem tornara-se problemático. Foi na literatura de Samuel Beckett, de Aldous Huxley, de Marcel Prust e de André Malraux que Baumer procurou asseverar o homem problemático, Enquanto Huxley em "Admirável Mundo Novo" (1932), colocava o homem na Incubadora Central  de Londres para se tornar robotizado, Malraux um ano mais tarde diria que "o homem tem qualidades, mas raramente são admiráveis ou heroicas". Na mesma época, Robert Musil escrevera "O homem sem qualidades". Assim como a psicanálise, outro elemento de extrema contribuição para a desconstrução do homem foi o advento da antropologia, que trazia consigo a relativização, isto é, não existe uma natureza humana que seja universal, um lugar central onde todos os homens se identificam. O etnólogo Möllberg colocou uma questão, diz Baumer: "a noção do homem significa alguma coisa?"  Após isolarmos os elementos fundamentais de suas culturas, suas crenças, estruturas mentais, seus costumes, após retirar tudo, é possível encontrar uma ideia fundamental, verdadeira para todos os homens em todos os lugares e fazendo parte da história? A reposta vem do próprio Mölberg; "o homem fundamental é um mito". 

O homem ainda não foi superado como queria Nietzsche, mas todas as suas mazelas já nos são conhecidas, a busca por sentido o levou ao "ouro de tolo" como nos ensinou Raul Seixas em 1973:

É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa dez por cento de sua cabeça animal
E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para nosso belo quadro social.


Mas o homem já não é mais o mesmo. Agora ele é incerto, relativo, plural, se sua fé na religião acabou, ele também rejeita os dogmas científicos, todavia ele continua destrutivo, se o darwinismo social colocou sobre o homem branco o "fardo" de civilizar o mundo, o relativismo pós-moderno, associado ao liberalismo econômico vem garantindo a supremacia branca sobre as demais e, por conseguinte,  a continuidade da destruição do planeta.  
  
Jonatas Carvalho.
















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