sábado, janeiro 24, 2015

Crônicas Cancerígenas II: O luto.

Eu quero saber quem inventou a dor
Eu quero saber quem inventou o luto
Eu quero saber se o mesmo não tinha gente
Gente que abraça, afaga, compartilha e brinca
Gente que protege, ama, se doa
Gente como a gente
Gente que nos fez gente
Eu só quero saber...
Quem foi essa gente que diz que sente?
Eu só quero saber, se vai existir o reencontro da minha gente em algum momento, isto meu bem, seria tangente.

Não é difícil achar quem não se sensibilize quando menciono que meu pai com 76 anos de idade está fazendo tratamento de um câncer no pescoço. Mas quando digo que minha mãe infartou e faleceu em meio ao processo, que ela não suportou vê-lo perder nove quilos e sofrer os efeitos da quimioterapia, em geral, as pessoas ficam sem saber o que dizer. Ainda assim é comum ouvir comentários já padronizados pela nossa cultura para estas situações, coisas do tipo “meus sentimentos”, “deus sabe de todas as coisas”, “lamento sua perda”, estas frases feitas que reproduzimos mesmo sabendo que de nada servem para consolar, apenas dizemos por que não há nada melhor para dizer. 
    
Quando um ente querido parte desta vida, sua ida não é imediata, sabemos que nunca mais veremos aquela pessoa, mas sua presença continuará entre aqueles que a amavam; nisso reside o luto. Como excluir a presença de alguém de uma casa, cuja qual compartilhou com você por cinquenta anos? Como se desvencilhar das lembranças? Como conter a saudade? Como não sofrer com as memórias?

Ivan Kramskoy, Tristeza inconsolável, 1884.
Após o funeral (ritual que é distinto conforme a cultura), que é uma forma de despedida, diversas situações se apresentam impedindo o esquecimento e estendendo a dor, apresentam-se em ações como cancelar um plano médico, uma conta telefônica e outros eventos que nos obrigam a andar por ai com uma certidão de óbito a confirmar que o titular não está mais entre nós. Se isso não bastasse, ainda temos que lidar com situações ainda mais dolorosas, como o que fazer com a casa cuja arrumação ficou do jeito que ela deixou? O que fazer com os objetos que ela tinha mais apego? Que destino dar aos pertences, roupas, bijuterias? O que fazer com os livros e discos? Cada um, ao seu tempo, encontrará uma forma de lidar com isso.
  
A palavra luto vem do latin de luctum, isto é, chorar, lastimar (a perda de alguém), mas na prática o luto é muito mais que isso. Estar de luto não é o mesmo que estar deprimido, embora em alguns casos possa levar a depressão. O luto é um processo longo onde se aprende a minimizar a dor da ausência e se descobre como lidar com a saudade sem sofrimento. Mas até que isso ocorra, até que o tempo seja capaz de cicatrizar as feridas, sofreremos, uns dias mais, outros menos. Passamos alguns dias convivendo com lembranças felizes, em outros, um simples objeto de suvenir sobre algum móvel é suficiente para desencadear um doloroso choro.  

Vivenciar o luto é aprender mais sobre si, é se deparar com suas fraquezas mais profundas e ver emergir forças que sequer sabia existiam em você.    

domingo, janeiro 11, 2015

Crônicas cancerígenas I: um infarto no meio do caminho.

Eu iniciei há algumas semanas uma pequena coleção de textos sobre algumas experiências que tenho vivido ao lado de meu pai após ele ter contraído um câncer na região do pescoço. Resolvi intitulá-los de crônicas cancerígenas, achei apropriadas devido ao sentido letárgico que o termo possui. A terminologia câncer (assim como a palavra droga, dentre outras), ultrapassou sua especificação semântica pela força das experiências traumáticas que se impõe a quem na vida se depara com ele. Por vezes nos referimos a momentos e situações dolorosas utilizando tais termos como analogia... quando falamos de corrupção no Brasil, por exemplo, é comum ouvir que trata-se de “um câncer que corrói a nação” do mesmo modo que dizemos “que droga de vida”, mas no caso da droga, sabemos que há drogas boas e ruins, enquanto que no caso do câncer...não. O câncer é uma merda...sempre...onde quer que se manifeste, em quem quer que seja.
Não publiquei nenhuma ainda, pois as escrevi na correria e carecem de algumas revisões. Eu as escrevi como formas de registrar as emoções, lutas, sensações e tantas outras experiências que um período como este pode nos proporcionar...eu as escrevi para que no futuro pudéssemos ter uma memória registrada de mais uma luta da qual saímos vitoriosos... ou não.
Eu só não esperava, não estava preparado, sequer podia imaginar que a primeira crônica que eu publicaria deste período seria sobre infarto. Assim que eu comecei escrever achei que eu teria uma boa coleção de textos sobre câncer, eu vinha estudando sobre o tema, andei lendo experiências dos outros...mas havia um infarto no meio do caminho. 
Foram doze dias de apreensão e tensão entre a parada cardíaca e o falecimento, foram dias de muitas angústias. A preocupação com meu pai que nesta semana fazia radioterapia e quimioterapia concomitantemente se misturava ao desespero de imaginar a hipótese de minha mãe não voltar. Como meu pai vai ficar? Será que ele continuará lutando contra sua doença caso ela morra? Se ela voltar terá sequelas que a comprometerão ao ponto de deixá-la sofrendo no final de sua vida? Se ela não voltar....como dizer o que ficou para ser dito no final?  
O câncer tem um lado assolador devido ao longo tratamento, ao contrário do infarto, ele nos possibilita tempos de redenção...de perdoar e ser perdoado, de demonstrar o quanto amamos, de ficar mais pertinho na caminhada final da vida...de dizer e escutar aquilo que não falamos ou ouvimos em circunstâncias normais.

O infarto é sem dúvida uma pedra no meio do caminho, um tropeço fatal que interrompe a caminhada (de quem fica), transformando as possibilidades futuras em incógnitas. Toda ruptura é ruim, é traumática, perder uma mãe... por infarto é despencar por um abismo...não é possível prever o tamanho da queda, a profundidade do baque... só saberemos o quão fundo chegaremos com o tempo.