sábado, abril 09, 2022

O TEATRO DE SOMBRAS NEOLIBERAL NO PALCO BRASIL

Na segunda-feira (28/03), enquanto seguia para o trabalho, me deparei com uma enxurrada de postagens que se dividiam entre o tapa na cara em Chris Rock, o ex policial militar blogueiro, o BBB e o Putin. Não que os casos citados não mereçam alguma atenção (tirando o BBB que eu particularmente não vejo qualquer sentido), mas impressiona a dimensão que tomam nas redes, a ponto de monopolizar o debate, deixando de lado questões muito mais sérias. No domingo, o frenesi tinha sido a censura ao Lollapalloza. Na mesma segunda-feira, à tarde, duas demissões reverberaram nas redes: a do ministro da educação e do presidente (general) da Petrobrás, casos também dignos de análises. O que não vem fazendo parte das indignações, em especial dos que se dizem à esquerda, ou ligados ao campo progressista? O desmonte estrutural do Estado brasileiro. Tirando, claro, algumas análises estruturais de um ou outro, a grande maioria das manifestações são polêmicas pontuais, um prato feito para uma cortina de fumaça. 

Eu realmente acredito ser possível problematizar a sociedade por meio de recortes, casos específicos podem muito bem nos levar a análises mais amplas e complexas. Penso em exemplos como "O queijo e os vermes" de Carlo Ginzburg (1976), em que o pesquisador parte de uma história particular, um processo movido pela Inquisição contra um pobre moleiro (Menocchio), para problematizar uma prática macro: o Tribunal do Santo Ofício. Assim, se pode perfeitamente partir de um caso particular de racismo para ampliar o debate sobre racismo estrutural; do mesmo jeito, um caso de trabalho forçado pode ser usado como a ponta do iceberg para uma discussão sobre sistemas de servidão no Brasil. Mas o que se vê na massa de postagens nas redes são superficialidades. O debate sobre eleições e as articulações políticas são um ótimo exemplo. Uma olhada nas redes nos faz pensar que as instituições estão funcionando, que o jogo democrático anda a todo vapor e que a tentativa de burlar tal processo é fruto dos devaneios de um candidato que tem apreço pela ditadura.      

Falta-nos a capacidade analítica de comunicar que estamos em um Estado de golpe, que não se trata de uma democracia frágil, mas de um teatro de sombras e de horrores. A democracia brasileira sempre foi (deliberadamente) debilitada, em especial para os menos favorecidos, todavia, o que vemos desde 2016, após o impeachment (golpe), é um espetáculo macabro com atuações mórbidas. O Messias não é, nunca foi e nunca será o protagonista, mas se engana, igualmente, quem acha que ele seja apenas um bufão. Falta-nos acompanhar mais de perto o desmonte deliberado do Estado, em especial, a entrega descarada e desmedida de nossa potência mais vital: a terra. Uma terra preciosa em toda sorte de recursos, no solo, mais ainda, no subsolo.  

Nossa soberania, dependente desde sempre, agora assaltada, acha-se em ruínas. O Império (Negri & Hardt), essa força descentralizadora e desterritorializadora incorpora tudo dentro de suas fronteiras abertas. Para isso, as soberanias dos Estados-Nação são demolidas pouco a pouco, ora por golpes de estado (militar-civil), ora corroendo ou implodindo os sistemas políticos e jurídicos. É assim que perdemos nossos reservas de petróleo, cujos lucros magníficos da Petrobrás vão majoritariamente para acionistas estrangeiros, é assim que nossas reservas de minérios, monopolizadas pela Vale do Rio Doce (que vem cometendo barbaridades contra cidades inteiras nesse Brasil afora), hoje estão nas mãos de grupos como o Capital Group (EUA). Nossas reservas de água (vejam, estamos falando de um elemento natural tão essencial a vida que jamais deveria ser privatizado) estão sendo entregues a consórcios (leia-se máfias, cartéis), que têm o poder de decidir quem e quando terá sua caixa d'água abastecida.  Assim, alguns possuem cisternas e piscinas, enquanto outros uma caixinha de fibra sobre um telhado de amianto. 

Nesta mesma semana, enquanto eu passava os olhos nas histórias do tapa na cara - longas postagens sobre quem tem razão, quem não tem -, li um pesquisador que chamava atenção para a privatização acelerada do sistema de saneamento brasileiro. Esse é um tema que merece ser debatido e explorado nas redes e nas ruas, mas não foi. O novo marco regulatório sobre saneamento básico (lei 14.026/2020) colocou o Brasil na contramão do mundo, estamos fazendo aquilo que muitas cidades se arrependeram de fazer, ao todo mais de 300 cidades reestatizaram seus sistemas de saneamento, Paris é um exemplo recente.   

O investimento na valorização do capital humano, dotado do espírito empreendedor e criativo, é noticiado como soluções para a "crise do emprego", mas, na prática, produzem condições de trabalho cada vez mais precarizadas, terceirizadas e informalizadas. Toda forma de resistência a esses modelos de exploração, toda manifestação e reivindicação por direitos desses trabalhadores explorados são desarticulados com apoio de setores empresariais e da grande imprensa. Em muitos casos, os trabalhadores e trabalhadoras que lideram a resistência são criminalizados. A justiça trabalhista, que já foi algo que nos deu alguma segurança, tornou-se inacessível; muito em breve será apenas uma memória da luta trabalhista. As reformas trabalhistas que prometiam soluções, jamais, sequer, chegaram a ter qualquer êxito. Pelo contrário, nunca tivemos tanta desocupação e vulnerabilidade de emprego. O que vemos? Aumento do trabalho análogo a escravidão, tanto no campo, quanto na cidade. Vemos, ainda, a desvalorização de categorias essenciais à vida da cidade, vemos as migalhas de reajustes do piso salarial, de garis, motoristas, professores e tantos outros. 

Enquanto as estruturas do Estado brasileiro são esfaceladas, o teatro de sombras segue rolando, firmemente.  Se tomo aqui emprestado o conceito de "teatro de sombras" de José Murilo de Carvalho é por duas razões: porque ele o utilizou justamente para analisar a política no Brasil e, também, porque, embora haja diferenças significativas, uma vez que ele analisa o Brasil do Segundo Império, há certamente uma herança cultural. O historiador, cuja tese de 1980 foi uma análise da elite política imperial intitulada: “A construção da ordem", ao final da mesma década produziu a obra "Teatro de sombras", em que problematiza a política imperial. Influenciado pela antropologia simbólica, José Murilo escreve sobre a relação entre o teatro e a política: 

O ritual, o simbolismo são partes integrantes de qualquer sistema de poder, assim como o é o carisma.  Mas a política é teatro também por razões que têm a ver com os mecanismos modernos do exercício do poder. A representação política tem em si elementos que podem ser comparados a representação teatral. Ambas as representações se exercem em palcos montados, por meio de atores que têm papéis conhecidos e reconhecidos. Há regras de atuação, há enredo e, principalmente, há ficções. (p.420).

Murilo de Carvalho faz, em seguida, um alerta: a primeira grande ficção é a própria ideia de representação. O autor salienta que é necessária uma boa dose de faz-de-conta para admitir, acreditar que alguém possa falar autenticamente em nome de milhares. Talvez seja o caso de pensar aqui na última "Ordem do dia", em que representantes das forças armadas, produziram mais uma peça de ficção (falando em nome das "famílias brasileiras", das igrejas, dos empresários, da imprensa e outras instituições), em que o Brasil teria vivido, a partir de 31 de março de 1964, um "período de estabilização, segurança e amadurecimento político." É assim que o teatro de sombras do período ditatorial funcionou, e para esses representantes a democracia foi fortalecida nesse período, mas sabemos que, na prática, foi uma tragédia sanguinária.  

No contexto atual, as sombras neoliberais são ainda mais nebulosas e esparsas, uma combinação que nos impede, ou atrapalha, de entender melhor o clima político/econômico. Não obstante, num olhar mais recuado, pode-se perceber que o palco sobre o qual os atores de hoje representam vem sendo montado há anos, e que teve, como um primeiro grande ato, uma ficção chamada "jornadas de junho", em 2013. De lá pra cá, uma sucessão de novas farsas e tragédias ganham o teatro sombrio no palco Brasil: o  impeachment  em 2016 (com Supremo com tudo), o "teatro de vampiro" (Temer),  "a facada" em 2018, para ficar em alguns apenas. Fora esses grandes espetáculos, o dia-a-dia no país tem sido alimentado por pequenas cenas (sombras), atuações com scripts elaborados para tão somente movimentar (distrair) a massa crítica, enquanto os verdadeiros diretores e roteiristas seguem com o planejado. 

Jonatas Carvalho.