quarta-feira, dezembro 19, 2018

CONFESSO QUE INVEJO O QUE VIVESTES: SOBRE OS DOIS PABLOS; NERUDA E PICASSO.


E lembra-te sempre que:
A vida não é medida pelo número de vezes que respiraste, mas pelos momentos
Em que perdeste o fôlego:
De tanto rir...
De surpresa...
De êxtase...
De felicidade…
Pablo Picasso - 1949

Quem me conhece sabe que vivi muitas experiências. Sou fruto da contracultura, da geração hippie, das sociedades alternativas. Percorri o país de mochilas nas costas por anos, percursos estes, de muitos perrengues, mas também carregados de momentos únicos que ainda guardo na memória. Mas quando olho de perto, sobretudo, quando olho a história de certos homens, penso no quanto minha vida foi mesquinha quando comparada a deles, penso isso sem qualquer neura, pois vivi muito mais que a maioria dos jovens da minha década (anos de 1980), e o melhor, sobrevivi pra contar. Mas certas biografias nos fazem sentir diminutos, é o caso de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, bem, pelo menos era esse seu nome de batismo, mas ficou mundialmente conhecido como PABLO NERUDA. 

Como não invejar o homem? Como não invejar o poeta? Mesmo que você reprove, por qualquer que seja o motivo, suas escolhas pessoais e políticas, não poderá passar por sua poesia sem ser afetado. Eu, o invejo por inteiro. Sua maior qualidade, a meu ver, porém, não era a poética, mas a simplicidade. O poeta chileno que foi Cônsul na Espanha e México, depois senador (1945), dentre os muito prêmios que recebeu, estão o Prêmio Lênin da Paz (1953), o de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Oxford (1958), e o Nobel de Literatura em 1971. Sua vida, no entanto, não foi apenas poesias e premiações, suas posições políticas o colocou na clandestinidade, e foi no exílio que vivenciou as experiências mais marcantes, tanto as positivas, quanto as negativas. 

Neruda fora fortemente impactado pela Guerra Civil Espanhola (1936-1939), era cônsul quando o conflito foi deflagrado, e ali, assistindo uma Espanha sendo invadida por nazifascistas, fez uma opção, ingressou no comunismo, embora se simpatizasse mais pelo anarquismo. Ao retornar para o Chile, viu que a miséria continuava a contrastar com os cadillacs, resolveu então disputar uma vaga no senado, denunciou a vida sofrida dos mineradores, dos salitreiros no pampa chileno. Empresas inglesas e alemães dominavam a região e impunham suas próprias regras, inclusive suas próprias moedas, enquanto os trabalhadores viviam em condições análogas a escravidão. Foi a gente sofrida do Chile que o elegeu, mas pouco pode fazer o poeta por seu povo, pois no ano seguinte tornara-se, persona non grata, no governo de Gonzáles Videla (1946-1952), a quem Pablo ajudara e eleger. 

A história de exilado de Neruda é longa e repleta de emoções, escolhi apenas uma; sua passagem por Paris. Quem quiser conhecer as outras leia “Confieso que he vivido” (1974), traduzido aqui pela Bertrand Brasil. Neruda descreve suas memórias de modo gracioso, sua humildade e simplicidade emergem em cada conto, pernoitou tanto em casebres no Chile e Argentina, quanto em hotéis de luxo na Europa, o único título que almejou ter foi o de poeta. 

Ao ser colocado na clandestinidade por Gonzáles Videla, contou com apoio de amigos para sair do Chile em direção a Argentina e depois Montevidéu, de lá, embarcou para a França usando o passaporte do novelista guatemalteco, Miguel Ángel Asturias, a quem, diziam ser semelhante a Pablo. Ambos, dizia Neruda, se pareciam com um chompipe, nome indígena para perus na Guatemala. Asturias, embora fosse um liberal, não exitou em ceder seu passaporte a Pablo, assim o poeta chegou a Paris. Mas Pablo não poderia continuar sendo Asturias em Paris, precisava voltar a ser Neruda, mas como, se Neruda não passou pela alfândega francesa? Alojado no hotel cinco estrelas, George V, construído em 1928, um luxuoso ponto de referência na Champs-Élysees, suas poucas roupas da cordilheira contrastavam com o requinte do ambiente. Ali ficou como Asturias, até que seus amigos pensassem em uma solução. O que Pablo não esperava é que a solução viria por meio da intervenção de outro Pablo; o Picasso. O espanhol-parisiense havia feito seu primeiro e último discurso na vida elogiando a poesia de Neruda, denunciando a perseguição que o governo chileno impusera ao poeta (Já volto ao fim dessa história). 

Paris, 1950, entrega do Prêmio Internacional da Paz, Arquivo da Fundación Pablo Neruda. 

Eis outra biografia que nos faz sentir apequenados, Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso, mais conhecido como Pablo Picasso, cuja obra dispensa apresentações. O que pouco se fala do pintor nascido em Málaga é sobre sua vida de ativista, Picasso, nunca foi negligente ou indiferente as questões sociais ou políticas. Quando questionado sobre o papel do artista, escreveu,
O que pensa que é um artista? Um idiota, que só tem olhos quando pintor, só ouvidos quando músico, ou apenas uma lira para todos os estados de alma, quando poeta, ou só músculos quando lavrador? Pelo contrário! Ele é simultaneamente um ente político que vive constantemente com a consciência dos acontecimentos mundiais destruidores, ardentes ou alegres e que se forma completamente segundo a imagem destes. Como seria possível não ter interesse pelos outros homens e afastar-se numa indiferença de marfim de uma vida que se nos apresenta tão rica? Não, a pintura não foi inventada para decorar casas. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo.
Massacre na Coreia - 1951. Picasso. 
Ativista da paz, inimigo da guerra, por inúmeras vezes utilizou seu prestígio para denunciar os massacres humanos, começando por “Guernica” (1937), uma crítica a Guerra Civil Espanhola, passando por “O ossuário” (1944/45), em que chama a atenção para a carnificina da Segunda Guerra Mundial, em 1951, inspirado em Goya (na obra 3 de maio de 1808), pinta “Massacre na Coreia”, alertando sobre os fuzilamentos de civis na Guerra da Coreia (1950-53), até “As mulheres de Argel”(1954), tendo Delacroix como referência, expõe ao mundo a morte trágica de milhares de mulheres e crianças na Guerra da Independência da Argélia (1954-1962). Consagra-se ícone da paz, ao produzir a gravura de uma pomba carregando um ramo de oliveira no bico, a pomba de Picasso, transformou-se a “Pomba da Paz” no Congresso da Paz em Paris em 1949, e depois disso um símbolo mundial.

Impossível que duas referências como os dois Pablos, sendo contemporâneos, não se admirassem. A relação de ambos foi mais que admiração mútua entre um poeta e um pintor. Uma sucessão de particularidades e afinidades contribuíram para aproximá-los, mas foi a arte como instrumento político, em um dos momentos mais bélicos da história do Ocidente, que uniu Neruda e Picasso. O poeta do amor e o pintor da paz, deixaram para nós a lição de que não se pode desistir da humanidade. 

Retomando o encontro descrito acima, era o ano de 1949, Neruda, preso dentro de um quarto de hotel em Paris, recebeu algumas visitas, dentre estes a de Picasso, a quem o poeta classificou como gênio da pintura e da bondade, Picasso colocou-se à disposição de Neruda, iniciou um movimento em seu favor, ligou pessoalmente para autoridades de Paris e do mundo, até que Neruda teve a garantia de Berteaux, chefe da polícia, de que era bem vindo na França. Sobre o empenho de Picasso, Neruda escreveu: “Não sei quantos quadros, portentosos deixou de pintar por culpa minha. Eu sentia na alma fazê-lo perder seu tempo sagrado”. 

Pão e 'dish' com frutos à mesa - 1909. Picasso. 
Antes, porém, dos papéis do poeta serem liberados, Neruda fora acolhido na casa da Françoise Giroud, sobre esta, escreveu: “nunca esquecerei esta dama tão original e inteligente”. Giroud, que fora presa em 1943 pela Gestapo, por “atuar como agente da resistência”, tornou-se uma brilhante jornalista, em 1953, fundou a primeira "news magazine", foi ela que cunhou o termo “Nouvelle Vague”, (nova onda), para denotar o cinema de Godard e Truffaut, anos mais tarde foi secretária de Estado (cargo equivalente a ministro) da Condição Feminina (1974-1976) e da Cultura (1976-1977). Na casa de Francoise Giroud, Neruda recebeu outra visita de Picasso, em uma das paredes achava-se uma de suas obras, da qual o pintor sequer lembrava, mas o poeta, todos os dias a contemplava e até lhe deu um título pessoal; A ascensão do Santo Pão. Neruda arrasta Picasso até o quadro, e diz de sua intenção de no futuro pedir o governo do Chile adquirir a obra, a “Madame Giroud” já havia concordado em vender, eis que o pintor examina o quadro em silêncio absoluto por alguns minutos e responde ao poeta: é, não está mal.

Picasso e Neruda morreram no mesmo ano (1973), duas biografias estupendas que se entrecruzaram, se complementaram. O pintor chegou a escrever poemas e pintou obras inspirados no poeta chileno, enquanto o poeta compôs versos sobre o efeito das obras do pintor. Juntos, fizeram do mundo um lugar de paz em tempos de guerra.

Jonatas Carvalho
é historiador e professor de História da Arte.

Referências bibliográficas:

NERUDA, Pablo. Confesso que vivi: memórias. Rio de Janeiro, 33ª ed: Bertrand Brasil, 2010.
ROBERTSON, Enrique, Picasso y Neruda. Hechos y conjeturas en torno a una amistad . Atenea [en linea] 2004, (primer semestre) : [Fecha de consulta: 19 de diciembre de 2018] Disponible en: ISSN 0716-1840.
INGO, F. WALTHER. Pablo Picasso 1881-1973: o gênio do século. Benedikt Taschen - 1990.