domingo, dezembro 27, 2020

ENTRE A QUÍMICA E A MAGIA: OS FARMACÊUTICOS E SUAS MANIPULAÇÕES PODEROSAS

Ontem, enquanto eu lia uma crônica de Rubem Braga, "Memórias de um ajudante de farmácia", pensei em muitas coisas. A primeira é que eu também já fui um "prático de farmácia", por quase oito anos. Fiquei imaginando se Rubem Braga tivesse seguido na profissão, teríamos perdido um dos maiores escritores do Brasil. Lamentei por uns segundos a inexistência de crônicas inestimáveis, como a sobre Copacabana (1959), "Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram 'Princesinha do Mar', e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras, e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite." Escritos de pura sensibilidade como "Pintura" (1953), "é de ver pintura e desenho que tenho saudade e fome, quando o jogo da vida me cansa, é a pintura que me apazigua e me faz sonhar."

Em "Memórias de um ajudante de Farmácia", o cronista revela seus aprendizados com seu primo "Costinha", prático de farmácia a quem o ajudante demonstrava admiração pela capacidade de manipulação das químicas. A leitura desta crônica me levou a Thomas De Quincey, que em "Confissões de um comedor de ópio"(1856), relata a primeira vez que lhe "abriram o paraíso dos comedores de ópio", chegando a duvidar se o farmacêutico que lhe atendera era mesmo um homem, preferindo manter em sua mente "a visão beatífica de um farmacêutico imortal", enviado a terra para aquele encontro. 

Rubem Braga descreve as incríveis soluções e elixires mais vendidos em sua época e revela-nos a existência de um tipo de bíblia dos farmacêuticos: o Formulário Chernoviz. O jovem ajudante ficou impressionado com as mais de mil e quinhentas páginas do livro que continha os mistérios sagrados das mais variadas plantas e sais. O Formulário Chernoviz era na verdade um tipo de guia médico, mas seu autor, um polonês formado em medicina na França, Pedro Luiz Napoleão Chernoviz (1812-1881), também publicou um "Dicionário de Medicina Popular" (GUIMARÃES, 2005). Na prática, ambos eram chamados de "o Chernoviz" e eram plenamente utilizados por farmacêuticos ao longo do período imperial e início da república. 

A produção de "Guias Médicos" já era uma prática presente no Brasil desde o período colonial. Me lembro de ter encontrado na documentação do inventário da Fazenda Campos Novos (1775), em Cabo Frio, uma descrição detalhada dos itens da botica dos jesuítas naquele lugar. Dentre os quais achavam-se, por exemplo:

Hum vidrinho de óleo de copaíba com pouca quantidade
Hum vidro de óleo de ouvidos
Dous ditos de óleo de amêndoas
Hum dito de óleo rozado
Hum dito de mel rozado
Hum dito de agoa para olhos
Huma lata de triaga brazileira
Huma lata de trementina
Hum dito de azeite de Nossa Senhora da Lapa
Hum bião pequeno de engoento místico
Hum dito de engoento branco
Libra e meya de salsa parrilha
Trez vidros com agoa forte

A listagem acima é apenas uma parte dos itens descritos na documentação, caso você seja desses indivíduos curiosos (o que significa que é dos meus), basta clicar no "botica dos jesuítas" acima que o hiperlink te levará para a descrição completa. Mas não foi somente a botica que a documentação nos revelou, encontramos também uma livraria na Fazenda, sobre ela, o professor Nireu Cavalcante (2009) escreveu, 

foram listados 66 títulos diferentes, entre os quais seis eram proibidos. Do total listado nove eram manuscritos versando sobre “Medicina”, “Modo para assistir aos doentes e aos agonizantes”, “Modo para aparelhar pano ou madeira para pintura”. (Grifo meu).

A médica e pesquisadora, Maria Regina Cotrim Guimarães (2005), já citada acima, revela em seu artigo que esses manuais de medicina estavam presentem por aqui desde o século XVI, o que a documentação da Fazenda Campos Novos parece confirmar. Alguns exemplos são: o "Tratado único das bexigas e sarampo", do médico Romão Mosia Reinhipo (1683) e o "Erário mineral", de Luís Gomes Ferreira (1735), um dos primeiros de grande circulação no Brasil. Um desses manuais que me chamou a atenção foi o produzido pelo doutor Jean-Baptista Alban Imbert, refiro-me ao "Manual do fazendeiro ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros" (1834). Uma obra que surgira da preocupação com os "ilustríssimos fazendeiros de obterem socorros inteligentes da medicina" no cotidiano com os escravos. (RODRIGUES, 2010). Mas o Chernoviz tornou-se a grande referência das "artes médicas". Rubem Braga cita em suas memórias que o livro sagrado na farmácia que trabalhara era uma edição de 1892, tratava-se de 15ª edição na verdade. 

Um artigo publicado em 2017, escrito a quatro mãos, dois estudantes de medicina, uma médica e um estudante de farmácia, analisou as indicações terapêuticas da cocaína no Formulário Chernoviz, 17ª edição, de 1904. A obra utilizada no artigo, pertencera a uma família de mulheres que manipulavam medicamentos na farmácia "Oswaldo Cruz", na cidade do Barro, no Ceará, no início do século XX. Segundo os autores, a ausência de médicos na cidade, que fica a 524 km da Capital, incentiva a prática da manipulação dos remédios e algumas práticas cirúrgicas, como a de fimose e partos.   

Trago o exemplo da cocaína aqui, por se tratar do meu atual objeto de pesquisa, mas há uma infinidade de outras possibilidades que podem se converter em xaropes, vinhos, extratos, tinturas, conservas, emplastos, emulsões, bálsamos, unguentos e óleos. Rubem Braga, por sua vez, escrevera, que só pelo fato de ter se livrado de preparar os óleos de rícino e de fígado de bacalhau, já considerara ter tido uma infância feliz. Voltando a cocaína, o Formulário Chernoviz lista 8 aplicações terapêuticas:

Moléstias dos olhos;
Moléstias da laringe e da faringe;
Operações bucais e dentárias; 
Moléstias da vagina e dos órgãos genitais;
Vômitos da gravidez; 
Amigdalotomia; 
Queimaduras;
Rachas no seio. 

Além disso, o guia médico ensina a preparar o chamado "phenato de cocaína", uma mistura de cocaína pura, álcool e ácido fênico. O resultado era um pó, indicado entre outras coisas, para cortar os "defluxos e a surdez proveniente do catarrho da trompa d’Eustachio ou do tubo auditivo”.

A Noite - 1931
Com os processos regulatórios de substâncias como a cannabis e a cocaína, a figura do farmacêutico ganhou, pelo menos alguns, sobretudo nos grandes centros, uma identidade menos beatificada, digamos assim. Com a comercialização desses produtos restritos ao receituários médico e o surgimento de livros de controle de entrada e saída de tais substâncias, alguns práticos de farmácia, vislumbraram a possibilidade de atender uma clientela específica e lucrar mais com isso. Os jornais ao longo da década de 1930 e 1940, hora ou outra estampavam a cara da nova classe perigosa: o farmacêutico. Todavia, estes não estavam sozinhos, havia também médicos, dentistas e veterinários na lista. 

Eu trabalhei em farmácia na década de 1990, ou seja, muitas décadas depois. Mas me recordo que no interior de Teresópolis, mais precisamente em Bonsucesso, havia um farmacêutico (um prático de farmácia), dizia o povo, era mais respeitado que muito "doutô". O sujeito, atendia a população local em uma sala no interior da farmácia. Receitava remédios pra todo tipo de problemas, obviamente, todos os produtos receitados achavam-se nas prateleiras do seu negócio. Me lembro bem, que em meus primeiros meses no balcão de uma farmácia, me assustava hora ou outra com alguma procura, moças buscando "remédio pra tirá o nenê", os homens e velhos ansiando uma solução para a "paulemolência", outros queriam saber se eu aplicava "injeção pra gonorréia". Os colegas com mais tempo de casa tinham uma caixinha onde depositavam "papelzinhos" com os nomes dos remédios que o povão trazia até o balcão. Lá dento havia coisas escritas como "navagina", dorfreq", "anticepcional", "pomada pra dá o cú", "remédio pra diabetisi", "Aessi" e por ai vai. 

Alguns anos no ramo, me dei conta de que tínhamos um certo poder, as moças nos achavam inteligentes por conseguir decifrar os garranchos dos médicos, por conhecer as fórmulas para emagrecer e aumentar o tesão. A cabine de injeção virava cabine de pegação em alguns momentos. Quanto as drogas mágicas, claro, na minha época não havia mais maconha ou cocaína nas farmácias. As Gotas Nican e o Elixir Paregórico não continham mais ópio. Mas ainda havia uma galera atrás de qualquer onda que fosse, a fragilidade da fiscalização na época, permitia que vendêssemos alguns xaropes maneiros como o Codelassa e o Depakene. A droga mais pesada era, porém, o Artene, um cloridrato de triexifenidil, ou seja, um relaxante muscular que dava muita onda. 

Ao me aproximar dos trinta anos me cansei dessa vida, passei a não me sentir bem vendendo remédios pra emagrecer ou engordar, que na verdade eram pura enganação. Não sei os motivos do Rubem Braga para abandonar a farmácia, sem querer me comparar, longe disso. De minha parte, achei que poderia ir em outra direção na minha caminhada. Sempre que me deparo com uma farmácia em algum cantão deste pais, fico pensando se ainda existe essa figura beatificada no imaginário do povo local; o doutô da farmácia. 

Jonatas Carvalho. 





sábado, dezembro 12, 2020

51 ANOS EM 2020, UMA BOA IDEIA?

É meu Brasil, hoje completo 51 anos e preciso te dizer, oscilo entre a sensatez e insensatez sobre comemorar mais um ano. Porra! É sobre comemorar mais um ano em pleno 2020! Me perturba a ideia de que enquanto eu estou aqui às 7h da manhã refletindo sobre a razoabilidade disto, que milhares de pessoas já compraram a champanhe e estão nas ruas para as compras do natal. Algumas cidades, como Curitiba, que apesar da alta em contaminação e seus quase 2 mil mortos, terá sua programação de natal tradicional garantida. Em Campos do Jordão, o “Natal dos Sonhos” já começou faz tempo e em Blumenau, a “Magia do Natal” está firme e forte. Nem quero pensar no que rolará no réveillon. 

Isso me remete a “Perfeição”, do Legião Urbana, composição de 1993, um exemplo de que algumas músicas são atemporais:

(...)Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais
Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação(...)
(...)Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã(...).

Ontem a sogra do meu filho faleceu, vítima de covid-19. Semana passada foi o meu tio, minha tia segue internada em estado grave. Aqui no Rio, vários colegas professores, que como eu foram forçados a voltar às aulas nas instituições privadas, estão contaminados. Muitos sofrendo os horrores psicológicos da possibilidade de internação ou morte. A morte nos sonda de perto enquanto comemos, bebemos e aglomeramos. As elites usam seus fantoches para nos passar uma mensagem: não sejam maricas. É fácil não ser maricas quando se tem uma equipe do Albert Einstein pronta para lhe atender. Quero ver “ser macho” quando se tem quase 500 pessoas disputando um único leito, como é o caso do Rio de Janeiro. 

Sabe Brasil, vou comemorar a vida, mas de luto pelos que sofrem pela perda de seus entes queridos ou pelo desespero e insegurança, se os seus voltarão para casa, após serem intubados em uma terapia intensiva. Comemorar sim, o que não significa fazer festa, nenhuma festança se justifica em um país que está prestes a atingir 200 mil mortes na virada para 2021. Tenho muito pelo que celebrar, fui privilegiado por poder trabalhar em casa a maior parte do ano, pude produzir dois capítulos de livros que serão lançados em breve, artigos para revistas acadêmicas, amadurecer minha tese de doutoramento. Mas isso soa tão pequeno hoje diante de tantas tragédias produzidas. O (des)governo da necropolítica, dos corpos negros acumulando-se nas ruas, a violência doméstica estrondosa, das nossas faunas e floras que se desmancham em fumaça preta no ar.

Mas nada me deixa mais transtornado do que ver os bares e restaurantes lotados, seja no Leblon ou na Vila Madalena, as disputas por espaços nas areias das praias nos domingos ensolarados. “Vamos celebrar a estupidez humana”, é com essa frase que começa a música do Legião que citei acima. “Vamos celebrar nossa desunião”. Perdoai as aglomerações nossas de cada dia. 


Sei que esse texto Brasil, está meio “A palo seco”, estilo Belchior. Mas eu quero mesmo é que “esse texto torto, feito faca, corte a carne de vocês!” Claro, não todos, pois parte dos brasileiros foram incansáveis nas denúncias contra “tudo que está ai”. Enquanto nosso governante mor dizia “e daí?", uma pequena parcela, que vem crescendo, diga-se de passagem, não se acovardou, muitas foram às ações de solidariedade em prol dos desamparados. A ciência brasileira, mesmo sucateada e desprestigiada pelo planalto central, inovou e mostrou todo seu potencial. No seio da Universidade Pública, atacada de todas as formas pelos Weintraubs, emerge a esperança de dias melhores. Nossos artistas, esses que nos trouxeram tanto alento nesses tempos difíceis por meio de lives, muitas das quais inteiramente gratuitas, tiveram que travar duelos duríssimos com um secretário de cultura que copiou propaganda nazista, e outra que minimizou os anos de ditadura, né Regina? Derrubaram ambos. 

E isso Brasil, esses poucos, mas significativos episódios, merecem celebração.

Feliz aniversário! Envelheço na cidade.

12/12/2020.