domingo, março 26, 2017

SEPARADOS MAS IGUAIS: AS LEIS SEGREGACIONISTAS NOS EUA

Earl Warrem chegou a Suprema Corte dos EUA em outubro de 1953. Na ocasião havia um caso de extrema importância e altamente delicado que dividia os membros da corte, tratava-se do caso Brown X Board of Education of Topeka, O que estaria em jogo neste processo? A questão da segregação nas escolas públicas nas escolas do Sul dos EUA.  

A escravidão cessou nos EUA em 1863, a constituição sofreu algumas emendas após o fim da Guerra Civil, dentre elas a 14ª emenda que discorria sobre três direitos: o direito de cidadania norte-americana (para todos os nascidos e naturalizados), com a inviolabilidade de seus privilégios e imunidades; o direito de não ser privado da vida, da liberdade ou da propriedade sem o devido processo legal; e o direito à igual proteção das leis. Em 1896 a Suprema Corte havia julgado o caso Plessy X Ferguson, os autores do processo alegaram que a legislação dos transportes em Nova Orleans desrespeitavam a 14ª emenda por não garantir proteção igual a todos. E onde estaria o desrespeito? No fato das empresas de trem terem vagões de brancos e de negros tal qual a lei do Estado da Louisiana determinava. O Juiz John Howard Ferguson alegou que o fato de haver vagões distintos para negros e brancos não feria a constituição, isso só aconteceria se os referidos vagões fossem diferentes, se estes fossem da mesma qualidade e oferecessem o mesmo serviço então a 14ª emenda estaria sendo respeitada; separados, mas iguais. A Suprema Corte validou a decisão do Juiz Ferguson, apenas um juiz, John Marshall Harlan, republicano, do Estado do Kentucky, votou contra. 

Thurgood Marshall 1º negro da Suprema Corte dos EUA
Plessy X Ferguson abriu precedentes para que uma série de leis fossem criadas pelos Estados do Sul dos EUA visando a segregação, o que no caso também incluiu as escolas. Tais leis foram chamadas popularmente como Jim Crow laws (leis Jim Crow), em função da canção "Jump Jim Crow" que foi eternizada pelo performista Thomas D. Rice, que se pintava de negro e a cantava para denunciar a sociedade racista estadunidense, mas a canção acabou sendo incorporada pelos defensores da "raça branca" e da segregação para ironizar as políticas de direitos civis. Um parte da canção dizia: 
O homem branco é que sabe das coisas ou o homem negro que tenta sobreviver? Você pode ter um neguinho, sorrindo como um bichinho...assim a história se faz...

Voltando a 1954, Earl Warrem foi o grande articulador na Suprema Corte para revogar o segregacionismo no sistema educacional no Sul dos EUA. Há uma cena no filme (um longa de mais de três horas) de George Stevens Jr, "Separate but equal", em que o Juiz faz uma viagem ao Sul e seu motorista Patterson era negro, o juiz se instala em um hotel de luxo, na manhã seguinte sai em procura de seu motorista e não o encontra, ao ver seu o carro estacionado vai em sua direção, para sua surpresa encontra Patterson dormindo no banco de trás. Ao indagar o motorista porque não havia procurado uma hospedaria, ouviu do mesmo que embora tivesse procurado, não havia nas imediações um lugar sequer que aceitava negros. A cena construída por George Stevens nos faz entender que esse teria sido o estopim para Warrem tomar uma postura definitiva pelo fim da segregação. 

Há no entanto, outra personagem fundamental nesse processo; Thurgood Marshall. Advogado filiado a  Associação para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP), Marshall liderou o caso Brown X Board of Education of Topeka ao demonstrar junto a Suprema Corte que a segregação escolar alimentava o preconceito quanto a inferioridade do negro. Sustentou que o modo como o Estado de Louisiana administrava a segregação feria a 14ª emenda, algumas crianças, como no Condado de Clarendon na Carolina do Sul tinham que caminhar oito ou dez quilômetros todos os dias até a escola, muitos desistiam. No mesmo Condado havia 30 ônibus escolares para as escolas de crianças brancas, mas nenhum para as escolas de crianças negras. A vitória de Marshall na Suprema Corte lhe rendeu muito reconhecimento, sua trajetória no direito o levou a ser o primeiro juiz negro na Suprema Corte em 1967, nomeado por Lyndon Johnson. Thurgood ganhou 29 casos de 32 nesta corto enquanto foi advogado. (Aqui vale uma observação, sobretudo, para aqueles que defendem que o racismo no Brasil é inexistente, nossa leis segregacionistas não foram do mesmo calibre que nos EUA, ainda assim nosso primeiro ministro do supremo negro, Joaquim Barbosa, só foi nomeado em 2012 pelo então Presidente Lula). 

O sistema Jim Crow havia ganhado sete casos anteriores na Suprema Corte, mas no caso Brown X Board of Education of Topeka a corte foi unânime. todavia um juiz foi relutante, tratava-se de Stanley Reed, conhecido por ser conservador, Reed chegou a dizer a Earl Warren que se a Suprema Corte votasse pela inconstitucionalidade da lei de segregação nas escolas os EUA se tornaria novamente um campo de batalha, o juiz compartilhava da ideia que essa situação deveria ser resolvida no Congresso e não na Justiça, Staley votou com a maioria para fortalecer a decisão, mas estava certo em seu prognóstico, nos anos de 1960 e 1970 uma outra guerra tomou o Sul dos EUA. 

Jonatas Carvalho. 


 






quinta-feira, março 23, 2017

BAR DO COXA: CONVERSAS SOBRE A NASA E OS NOVOS PLANETAS TERRA.

– Mais uma cerveja ai? 
– Pode mandar!
– Ficou sabendo da nova descoberta da Nasa?
– Não. O que foi?
– Encontraram um sistema solar com 7 planetas semelhantes a terra. 
– Tá de sacanagem!! Sério isso mano? 
– Sério. Os caras estão dizendo que os planetas que orbitam mais próximos do sol não devem ter água por ser muito quente e os mais distantes, por ser mais frio, a água estaria congelada, mas os intermediários podem ter todas as condições para o desenvolvimento de vida. 
– Uau! Irado mano!  Muito em breve a humanidade terá novos planetas para habitar. Imagina, você morar em um planeta e sua irmã no outro? 
– Esquece minha irmã veio! O mais interessante é que eu descobrir que a Nasa está escondendo muita informação da gente. 
– É? que tipo de informação? 
– Esses planetas intermediários já são habitados e são iguais ao nosso. 
– Ahh para veio. 
– Sério! Soube através de um amigo que trabalha no INPE. 
– Que porra é essa? Sou péssimo em siglas, só conheço a FIESP. 
– Instituto Nacional de Pesquisa Espacial. 
– O Brasil tem essa porra? Pesquisa espacial? Pra quê? 
– Sei lá, mas o cara me falou que um desses planetas tem países com os mesmos nomes que aqui. 
– Não brinca??
– Agora segura a bomba! Lá o Brasil é país de primeiro mundo. 
– Que isso veio!! Sério??
– Dizem que o México é todo murado pra se proteger da migração dos EUA. 
– Não!!!
– A África é o continente mais rico. 
– Como pode isso? 
– Sei lá mano, deve ser porque como aqui, os povos africanos foram os primeiros a se organizar como sociedade. 
– impossível! E os Europeus? 
– Ainda vivem em guerras por território, com reis a rainhas.  A China lá é igual nossa Europa aqui.
– Tipo o velho continente? 
– Sim. Não existe país pobre, fome, as corporações e oligopólios são proibidos, nada de quartéis,  as diferenças sociais e econômicas entre as nações não são tão grandes e a população do planeta não passa de 5 bilhões. 
– Mas como isso é possível? 
– Bem,  não sei. Deve ser por causa do sistema econômico predominante lá né? 
– E qual é?
– Supra Socialista. 
– Puta que pariu! Que porra deve ser isso? 
– Ele me disse que é um socialismo aperfeiçoado, que não aboliu com certas características do capitalismo, como a propriedade privada, por exemplo. 
– Que doideira!! 
– E ai, se em um futuro próximo a gente pudesse ir morar lá você iria? 
– Tá louco mano? Já foi foda sobreviver os últimos treze anos de PT aqui. Não vou nem a pau!.

Jonatas Carvalho.  

segunda-feira, março 13, 2017

O SÃO FRANCISCO E O POEMA DE TEMER

" A planta assim nascida tinha nome. Paixão. Que não pôde se manter, porque o objeto desse amor não tinha a mesma sensação".  Michel Temer. 

Esse belíssimo poema apareceu no Editorial de O Globo no último sábado, o poema colocado no meio de uma imagem onde vemos o Temer contemplando e transposição do Rio São Francisco na Paraíba. Na legenda abaixo da imagem lê-se " ninguém pode assumir a paternidade dessa obra". "A paternidade", diz Temer," é do povo brasileiro". 

Temer pousa ao lado dos Marinhos. 
Sei bem que quando menciono a palavra golpe, alguns amigos ficam um tanto estupefatos, alguns podem pensar que eu sou mais um esquerdóide sem noção, que se recusa a enxergar os descalabros do PT. Eu vos pegunto de volta, onde está toda a fúria da grande imprensa? O que houve com a impiedosa atividade jornalistica contra a corrupção no governo? Então o PT saiu de cena e O Globo publica poemas do Michel, isso não é lindo? Mais lindo ainda é o Gilmar dizer que mesmo se Temer for condenado no TSE poderá ficar elegível. Toda essa suruba de caixa dois honesto do PSDB e desonesto (você sabe de quem...), a lancha alugada por 24 mil sem licitação e os pedalinhos, quanta discrepância.

Agora o Michel vem dizer que o Projeto do São Francisco não tem paternidade? O que é isso seu moço? Vosmecê sabe bem que tem! Tem pai e mãe. Vosmecê sabe bem que o povo nordestino reconhece a paternidade. O povo reconhece também o papel do Ciro nessa história. Gerações morreram esperando por essas águas, desde Pedro II que esse negócio tá no papel. O FHC preferiu fortalecer o coronelismo de cisterna. E vosmecê vem dizer que não tem pai? 

Ai os meus amigos, os mesmos citados acima, dirão, mas e a roubalheira da transposição? Eu digo, e a do Tietê? Silêncio. Com isso eu admito que tá tudo certo? Pode roubar desde de que se faça? Não Maluf, apenas digo que falta equilíbrio nas acusações, nas investigações, na cobertura midiática, na abertura de processos e inquéritos. Pergunto se o Lula estivesse por ai no comando da casa civil, se ele fosse lá inaugurar o trecho leste do São Francisco na Paraíba, será que teria poema no editorial? Um cordel? Provavelmente já teriam vazado as planilhas dos orçamentos e de todas as vezes que a obra foi recalculada e quantos aditivos ela recebeu. 

Por sinal, que porra de poeminha ruim!

Jonatas Carvalho





terça-feira, março 07, 2017

NINGUÉM NASCE MULHER! MULHERES NEGRAS; PARA ALÉM DA LUTA PELOS DIREITOS CIVIS


"Uma mulher negra feliz é um ato revolucionário"
Juliana Borges


A frase de Simone de Beauvoir "ninguém nasce mulher; torna-se mulher", foi tema de questão do ENEM em 2015,  e deixou nossos conservadores loucos. Absurdo! Bradavam os defensores da moral judaico-cristã em um surto de ignorância. A intolerância, filha da ignorância se manisfestou de todas as formas para denegrir a filósofa francesa, parceira de Jean Paul Sartre. O que essa gente não compreendeu é que Beauvoir fazia referência a construção social do papel feminino na sociedade, papel esse, diga-se de passagem, definido por uma sociedade machista, que durante boa parte da história decidiu que ser mulher significava submeter-se ao homem, qualquer mulher que recusasse tal papel era considerada como alguém que estava ferindo a moral e os bons costumes. Tonar-se mulher, implicava um processo que começa no próprio lar, a menina deveria ser "educada" para corresponder aquilo que se esperava de uma mulher. Seu papel social já estava definido, cabia-lhe apenas ser conduzida, disciplinada, preparada para exercê-lo. 

Não foram os homens que resolveram que o papel social das mulheres deveria mudar, que já estava na hora de lhes garantir mais direitos, a história dos direitos é uma história de luta, de conquista, de sangue e de dor. Ser mulher na época de Simone de Beauvoir não era fácil, imagina ser mulher negra? Seriam os desafios das mulheres brancas os mesmos das negras? Eis uma questão que é pertinente ainda nos dias atuais, basta olhar para alguns dados para percebermos isto, o Mapa da Violência de 2015 os indicativos são reveladores, enquanto o número de mulheres negras assassinadas no Brasil subiu 54% nos últimos dez anos, as mulheres brancas recuaram 9,8%. A taxa de mortalidade por HIV das mulheres negras no Brasil é o dobro das brancas. Enquanto o movimento feminista comemora suas vitórias (não sem razão afinal foram séculos de lutas), as mulheres negras ainda terão um enorme percurso para que lhes sejam garantidos seus direitos. 


Rosa Parks e Claudette Colvin 

Você provavelmente já ouviu falar de Rosa Parks a costureira negra do Alabama que em 1955 recusou-se a dar lugar a um homem branco. Parks estava infringindo a Lei Jim Crow criada em 1876 e que vigorou até 1965 (importante ressaltar que a escravidão nos EUA acabou em 1863), a lei estabelecia que o Estado deveria providenciar nos lugares públicos espaços separados para brancos e negros. No caso dos ônibus, a primeira metade dos acentos eram destinados aos brancos e a segunda metade (fundos) aos negros, caso a primeira metade estivesse cheia e alguém de cor branca entrasse no ônibus um negro deveria se levantar para dar lugar, Rosa Louise McCauley (Rosa Parks) foi presa. A prisão de Parks provocou o primeiro grande boicote ao uso dos ônibus em Montgomery, dentre os líderes do movimento estava o jovem reverendo Martin Luther King Jr. estima-se que 40 mil usuários negros do transporte coletivo deram seu jeito de ir e voltar do trabalho por 381 dias. (essa por si só é uma história a parte). 

A história de Rosa Parks é bem difundida mundo afora, a costureira acabou se tornando um dos ícones dos direitos civis. Mas se eu perguntasse a você sobre Claudette Colvin, creio que a resposta será: desconhecimento total. Colvin foi presa por se recusar a dar lugar a um branco no ônibus em Montgomery nove meses antes de Parks. Se Claudette Colvin  foi a pioneira porque Parks virou o símbolo do movimento? Porque todo esse desconhecimento sobre a Colvin? A explicação é que Parks tinha 46 anos quando foi presa, era uma mulher que se "encaixava" na lógica machista de decência, já Colvin era uma jovem adolescente, devia ter por volta de 16 anos quando foi presa. Sua atitude, pensaram os líderes do movimento, poderia ser encarada como um ato de rebeldia juvenil e não de consciência política, além do mais havia um agravante, Claudette estava grávida de um homem casado. Uma situação assim seria utilizada contra o movimento, ficou resolvido que o caso da jovem seria tratado em sigilo. Quando o caso da segregação nos ônibus em Montgomery chegou a Suprema Corte, Colvin foi a última a depor. Em 1956 a Suprema Corte emitiu uma ordem para Montgomery e o estado do Alabama para acabar com a segregação de ônibus, e o boicote de ônibus de Montgomery foi cancelado. 

A luta da mulher negra até os dias de hoje vão além da sua condição de mulher pois a questão da cor ainda não foi superada. 

Parabéns a todas as mulheres, parabéns as mulheres negras. 

Jonatas Carvalho
















domingo, março 05, 2017

OS DEFICIENTES CÍVICOS

EM 2002 O GEÓGRAFO MILTON SANTOS ESCREVEU PARA O FOLHA DE SÃO PAULO UMA REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO NO BRASIL, O TÍTULO "OS DEFICIENTES CÍVICOS" É UMA REFERÊNCIA AO TIPO DE CIDADANIA QUE ESTAMOS CONSTRUINDO COM O NOSSO MODELO EDUCACIONAL. 

"Hoje, sob o pretexto de que é preciso formar os estudantes para obter um lugar num mercado de trabalho afunilado, o saber prático tende a ocupar todo o espaço da escola, enquanto o saber filosófico é considerado como residual ou mesmo desnecessário, uma prática que, a médio prazo, ameaça a democracia, a República, a cidadania e a individualidade. Corremos o risco de ver o ensino reduzido a um simples processo de treinamento, a uma instrumentalização das pessoas, a um aprendizado que se exaure precocemente ao sabor das mudanças rápidas e brutais das formas técnicas e organizacionais do trabalho exigidas por uma implacável competitividade."

A REFLEXÃO QUE SANTOS FEZ EM 2002, INDICA QUE A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NÃO COMEÇOU ONTEM, TODAVIA, A RECENTE MEDIDA PROVISÓRIA DO GOVERNO TEMER DEMONSTRA QUE TAL PROCESSO AINDA NÃO FOI RADICALIZADO NO PAÍS E A MP ESTÁ AI PARA GARANTIR QUE SEJA.



Leia abaixo na íntegra o que escreveu Milton Santos: 


Mundo do pragmatismo triunfante pode destruir o equilíbrio educacional entre a formação para uma vida plena e a formação para o trabalho - MILTON SANTOS - especial para a Folha.

Em tempos de globalização, a discussão sobre os objetivos da educação é fundamental para a definição do modelo de país em que viverão as próximas gerações. 

Em cada sociedade, a educação deve ser concebida para atender, ao mesmo tempo, ao interesse social e ao interesse dos indivíduos. É da combinação desses interesses que emergem os seus princípios fundamentais e são estes que devem nortear a elaboração dos conteúdos do ensino, as práticas pedagógicas e a relação da escola com a comunidade e com o mundo. 

O interesse social se inspira no papel que a educação deve jogar na manutenção da identidade nacional, na idéia de sucessão das gerações e de continuidade da nação, na vontade de progresso e na preservação da cultura. O interesse individual se revela pela parte que é devida à educação na construção da pessoa, em sua inserção afetiva e intelectual, na sua promoção pelo trabalho, levando o indivíduo a uma realização plena e a um enriquecimento permanente. Juntos, o interesse social e o interesse individual da educação devem também constituir a garantia de que a dinâmica social não será excludente. 

Em todos os casos a sociedade será sempre tomada como um referente, e, como ela é sempre um processo e está sempre mudando, o contexto histórico acaba por ser determinante dos conteúdos da educação e da ênfase a atribuir aos seus diversos aspectos, mesmo se os princípios fundamentais permanecem intocados ao longo do tempo. Foi dessa forma que se deu a evolução da idéia e da prática da educação durante os últimos séculos, paralelamente à busca de formas de convivência civilizada, alicerçadas em uma solidariedade social cada vez mais sofisticada. 

As modalidades sucessivas da democracia como regime político, social e econômico levaram, no após guerra, à social-democracia. A história da civilização se confundiria com a busca, sempre renovada, e o encontro das formas práticas de atingir aqueles mencionados princípios fundamentais da educação, sempre a partir de uma visão filosófica e abrangente do mundo. 

Esse esforço, para o qual contribuíram filósofos, pedagogos e homens de Estado, acaba por erigir como pilares centrais do sistema educacional: o ensino universal (isto é, concebido para atingir a todas as pessoas), igualitário (como garantia de que a educação contribua a eliminar desigualdades), progressista (desencorajando preconceitos e assegurando uma visão de futuro). Daí, os postulados indispensáveis de um ensino público, gratuito e leigo (esta última palavra sendo usada como sinônimo de ausência de visões particularistas e segmentadas do mundo) e, dessa forma, uma escola apta a formar concomitantemente cidadãos integrais e indivíduos fortes. Aliás, foram essas as bases da educação republicana, na França e em outros países europeus, baseada na noção de solidariedade social exercida coletivamente como um anteparo, social e juridicamente estabelecido, às tentações da barbárie. 

A globalização, como agora se manifesta em todas as partes do planeta, funda-se em novos sistemas de referência, em que noções clássicas, como a democracia, a república, a cidadania, a individualidade forte, constituem matéria predileta do marketing político, mas, graças a um jogo de espelhos, apenas comparecem como retórica, enquanto são outros os valores da nova ética, fundada num discurso enganoso, mas avassalador. Em tais circunstâncias, a idéia de emulação é compulsoriamente substituída pela prática da competitividade, o individualismo como regra de ação erige o egoísmo como comportamento quase obrigatório, e a lei do interesse sem contrapartida moral supõe como corolário a fratura social e o esquecimento da solidariedade. O mundo do pragmatismo triunfante é o mesmo mundo do "salve-se quem puder", do "vale-tudo", justificados pela busca apressada de resultados cada vez mais autocentrados, por meio de caminhos sempre mais estreitos, levando ao amesquinhamento dos objetivos, por meio da pobreza das metas e da ausência de finalidades. O projeto educacional atualmente em marcha é tributário dessas lógicas perversas. Para isso, sem dúvida, contribuem: a combinação atual entre a violência do dinheiro e a violência da informação, associadas na produção de uma visão embaralhada do mundo; a perplexidade diante do presente e do futuro; um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa cegueira radical que reforça as tendências à aceitação de uma existência instrumentalizada. 

É nesse campo de forças e a partir dessa caldo de cultura que se originam as novas propostas para a educação, as quais poderíamos resumir dizendo que resultam da ruptura do equilíbrio, antes existente, entre uma formação para a vida plena, com a busca do saber filosófico, e uma formação para o trabalho, com a busca do saber prático. 

Esse equilíbrio, agora rompido, constituía a garantia da renovação das possibilidades de existência de indivíduos fortes e de cidadãos íntegros, ao mesmo tempo em que se preparavam as pessoas para o mercado. Hoje, sob o pretexto de que é preciso formar os estudantes para obter um lugar num mercado de trabalho afunilado, o saber prático tende a ocupar todo o espaço da escola, enquanto o saber filosófico é considerado como residual ou mesmo desnecessário, uma prática que, a médio prazo, ameaça a democracia, a República, a cidadania e a individualidade. Corremos o risco de ver o ensino reduzido a um simples processo de treinamento, a uma instrumentalização das pessoas, a um aprendizado que se exaure precocemente ao sabor das mudanças rápidas e brutais das formas técnicas e organizacionais do trabalho exigidas por uma implacável competitividade. 

Daí, a difusão acelerada de propostas que levam a uma profissionalização precoce, à fragmentação da formação e à educação oferecida segundo diferentes níveis de qualidade, situação em que a privatização do processo educativo pode constituir um modelo ideal para assegurar a anulação das conquistas sociais dos últimos séculos. A escola deixará de ser o lugar de formação de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos. 

É a própria realidade da globalização _tal como praticada atualmente_ que está no centro desse debate, porque com ela se impuseram idéias sobre o que deve ser o destino dos povos, mediante definições ideológicas sobre o crescimento da economia, como a chamada competitividade entre os países. As propostas vigentes para a educação são uma consequência, justificando a decisão de adaptá-la para que se torne ainda mais instrumental à aceleração do processo globalitário. O debate deve ser retomado pela raiz, levando a educação a reassumir aqueles princípios fundamentais com que a civilização assegurou a sua evolução nos últimos séculos _os ideais de universalidade, igualdade e progresso_, de modo que ela possa contribuir para a construção de uma globalização mais humana, em vez de aceitarmos que a globalização perversa, tal como agora se verifica, comprometa o processo de formação das novas gerações.

sexta-feira, março 03, 2017

O PENSAMENTO NEGRO E OS TEÓRICOS AFRICANOS

"Há sempre um negro, um judeu, um chinês, um mongol, um ariano, no delírio" Gilles Deleuze.
    AO adentrarmos na escola, desde os primeiros anos até a conclusão do ensino médio, tudo o que aprendemos sobre a negritude está relacionado a sua condição de sujeito colonizado. A África só aparece nos livros didáticos quando se fala da expansão européia. Nos primeiros anos, quando abordamos as sociedades hidráulicas, o Egito aparece, mas ele é branco assim como nos filmes de Faraós e na minissérie José do Egito da Record. O negro é assim, ensinado nas escolas como alguém que só conheceu sua condição de escravo, sua cultura é exótica, suas crenças são primitivas, são criaturas de um mundo subdesenvolvido. Esse "conhecimento" sobre a África e seus povos seguem durante a faculdade, a menos que você tenha escolhido fazer ciências humanas, mesmo assim, é possível que você se forme sem nunca ter lido um texto de um pensador oriundo do continente Africano, vou logo avisando que Mia Couto não vale, apesar de eu ser fã de "Venenos de Deus e Remédios do Diabo".

    É possível pensar em inúmeros artistas, músicos e cantores negros, claro, esse número reduziria se a referência fosse "negro africano", de qualquer modo, não temos quaisquer dificuldades em reconhecer a contribuição negra no jazz, no blues e no samba. Quem não é fã de Morgan Freeman, Denzel Washington, Viola Davis, Jammie Foxx, Whoopi Goldberg, Grande Otelo, Pixinguinha, Milton Gonçalves, Tony Tornado, Leci Brandão, Seu Jorge....? Mas quando alguém pergunta sobre um intelectual negro, um filósofo, historiador, físico, em quem você pensaria?  A grande maioria das pessoas iriam pensar, pensar e não responder a essa pergunta. A molecada mais antenada lembraria de Neil deGrasse Tyson, astrofísico estadunidense, afinal ele é o novo Carl Sagan, só que é negro. O Neurocientista Carl Hart, destacou-se no mundo com suas pesquisas sobre drogas e é muito conhecido por seus dreads, Hart foi o primeiro professor titular de neurociências negro na Universidade de Colúmbia, no entanto, assim como Tyson, ele também é afrodescendente. Nossos alunos nunca ouviram falar de Abadias Nascimento, Clóvis Moura ou Lélia Gonzalez (talvez tenham ouvido alguma coisa sobre Milton Santos nas aulas de geografia), todos afrodescendentes brasileiros. Quando pergunto nas salas de aula sobre um exemplo de negro que tenha se destacado na história as respostas giram em torno de Pelé, Martin Luther King e Mohamad Ali. Já Zumbi, para os meninos do MBL não passava de um Hitler negro.

Acima à esquerda: Achille Mbembe e ao seu lado Cheikh Anta Diop. Abaixo à esquerda: Frantz Fanon  e ao lado Valentin Mudimbe. 

    A que se deve esse total desconhecimento sobre pensadores africanos? Passamos nossa vida escolar e acadêmica em contato com pensadores ocidentais, uma educação ainda eurocêntrica, aprendemos sobre Kant, Hegel, Nietzsche, Foucault, Sartre, intelectuais de origem russa como Bakunin, Dostoiévski, Tolstoi, italianos como Benedetto Croce, Giorgio Agambem, Antonio Gramsci. Mas por que nunca tivemos contato com o pensamento de Valentin Mudimbe, Achille Mbembe, Abel Kouvouana, Mogobe Ramose ou Cheikh Anta Diop? 

     O único modo de entender esse fenômeno, e é importante que se diga que não se trata de um fenômeno natural, ou seja, algo que ocorre pela força da natureza, mas ao contrário, trata-se de um processo construído socialmente, processo esse que procurou silenciar e ocultar o pensamento negro africano. Voltando, o único modo de entender tal questão é ler os pensadores africanos, são eles que irão nos ensinar porque nada sabemos de suas bases de pensamento, nada sabemos da África, senão sobre a África colonizada. É bem possível que você ao ler as obras de Alberto da Costa e Silva, acabará se deparando com uma África totalmente desconhecida, mas não é disso que eu estou falando, sei bem que o conhecimento sobre a África hoje já é muito mais avançado, embora essa realidade nas escolas ainda sejam pontuais, mesmo após a lei de 2003 que colocou no currículo do ensino fundamental o conhecimento sobre a história e cultura afro-brasileira e africana, ainda assim há que notar as mudanças. 

    Eu, porém, insisto que a única forma de compreendermos tamanho desconhecimento é lendo os africanos. Cito aqui, por exemplo, "A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento", de Valentin Mudimbe, nascido no antigo Congo Belga, atual República Democrática do Congo. Mudimbe procurou demonstrar, valendo-se da arquelogia foucaultiana e do percurso traçado por Edward Saïd em seu "Orientalismo", quais foram as condições de possibilidade para a emergência de um determinado discurso sobre a África. Na obra de Mudimbe verificamos que a construção desse tipo de discurso, sobre o sujeito africano, precisava anular sua condição de ser pensante para que se pudesse alimentar a ideia do selvagem e, portanto, sujeitado a uma espécie humana mais evoluída; o homem branco.  O discurso aqui, é um conjunto de elementos que envolve uma série de conhecimentos e técnicas que construirão um tipo de saber específico sobre um determinado sujeito/objeto. No caso do sujeito africano, Mudimbe nos mostra como que por meio das narrativas dos viajantes, das pinturas dos artistas, dos relatos dos missionários, se construiu a África exótica e selvagem, logo, desprovida de conhecimento. A África tal qual nós conhecemos é uma invenção ocidental. 

    A construção desse discurso também contou firmemente com a filosofia e as ciências da época, assim como o estatuto do direito. Na filosofia, o historiador camaronês, Achille Mbembe, autor de "Crítica da razão negra", relembra Hegel, para quem, os negros africanos eram "estátuas sem linguagem ou consciência de si". Mbembe irá se debruçar sobre o devir-negro do mundo, por meio da problematização do conceito de raça, uma construção fantasiosa que procurou distinguir tudo aquilo que não era europeu. O "hemisfério ocidental", diz Mbembe, desejou ser o bairro mais civilizado de todos, "só ele deu origem a uma ideia de ser humano com direitos civis e políticos, permitindo-lhe desenvolver os seus poderes privados e públicos como pessoa, como cidadão que pertence ao gênero humano, (...) só ele codificou um rol de costumes aceitos por diferentes povos, que abrangem os rituais diplomáticos, as leis da guerra, os direitos da conquista, a moral pública e as boas maneiras." (pp. 27-28). Nesse caso, o negro é o outro o dessemelhante, um símbolo acabado da vida vegetal e limitada. Como disse Frantz Fanon, um ícone do pensamento libertário, psiquiatra nascido na Martinica, "para o negro há somente um destino e ele é branco." 

Jonatas Carvalho.