quinta-feira, setembro 29, 2022

INSTITUTO DE HUMANIDADES SUBVERSIVAS

         Já se passaram uns dois ou três anos que escrevi um artigo1 sobre o modernismo brasileiro. Neste artigo eu usei a relação entre Oswald de Andrade e Tarsila Amaral com o poeta francês Blaise Cendrars. A intenção era defender que modernismo brasileiro não se deu por uma via de mão única em relação as Vanguardas Europeias, que não se tratou de “nós copiamos eles”, pelo contrário, tratava-se de uma via de mão dupla, havia trocas, muitas trocas entre nossos artistas e os artistas de lá da zouropa. Lembro que iniciei o artigo utilizando-me de um trecho das Crônicas de Malazarte, de Mário de Andrade, como epígrafe. Ei-lo abaixo:


Tenho um ginásio imaginário na cabeça em que os alunos estudam filosofia em Nietzsche, latim em Petrônio, psicologia em Geraldy e Bourget. As tragédias que adepto são de Bataille, Ibsen, Maeterlinck e Suderrmann. Ali se aprende o português em Guerra Junqueiro, em Silvio Romero e na Revista da Língua Portuguesa. Deste jeito, meus alunos se aborrecem de coisas pernósticas, de coisas inutilmente nebulosas e simbólicas, de maus versos, maus romances, e nunca mais quererão escrever mal o português. Mas é um ginásio apenas imaginário. Não tenho inclinação para diretor de consciências, como se vê. Pensas que isso me entristece? Ao contrário! Sou aluno. Inveterado aluno. 2


Esse trecho me serviu para conduzir um tipo de reflexão na época, ao voltar a lê-lo recentemente, comecei a pensar sobre minha condição no sistema educacional. Como Mário, não me vejo em condições de dirigir consciências, mas me pergunto sempre se é possível ser professor sem que isso ocorra. Acabo por concluir que sim, me baseio em Paulo Freire que defendia uma educação não verticalizada, mas horizontalizada, dessacralizada e libertadora. Confesso que não é assim que me sinto dando aulas, nunca encontrei uma escola ou espaço educacional com tamanha possibilidade, estou inserido em uma educação castradora, vivo a “escola da tristeza”, como chamou Clóvis de Barros Filho, onde alunos e alunas estudam para passar, para em seguida enfrentar uma prova com mais de 200 questões, como condição de adentrarem em uma faculdade onde seguirão firmemente uma vida de estudar para passar, e finalmente, quando estiverem no mercado de trabalho, viverão anos trabalhando em função do 5º dia útil do mês.

Seguimos embrenhados em um modelo de educação fabril, preparados desde cedo para tão somente gerar lucros e dividendos ao capital, uma existência destinada a nascer, estudar, trabalhar e morrer. O que me faz recorrer a outro grande educador brasileiro, Rubem Alves, quando este ainda se dedicava a sua teologia libertadora, na obra “Sobre Deuses e Caquis”, criticou a “feiura” da escrita científica, recusando-se a escrever a partir de um sujeito impessoal. Alves, traz a crítica à educação na arte de Orozco,


O que me faz lembrar de um mural de Orozco, pintor mexicano que passou anos ensinando a sua arte num college norte-americano, e foi certamente em virtude daquilo que ele via acontecendo com os moços que pintou A Formatura’: o professor, alto, magro, cadavérico, verde,/entrega ao seu discípulo,/ sua imagem,/ também alto, magro, cadavérico, verde,/ a prova final do saber,/ o diploma,/ um feto morto, dentro de um tubo de ensaio.3


Eis uma imagem que me assombra há anos, é ela que me faz resistir e procurar subverter certas lógicas mesmo estando dentro do sistema, contudo, creio que é uma luta trágica, como a de Sísifo. Se for este o caso, creio que é melhor assim, que simplesmente conformar. Não nasci para a conformação, nunca me senti um ativista ou um revolucionário, vivo minhas próprias revoluções, sou um subversivo, um profanador daquilo que tentam consagrar em mim.

Mas eu não estaria sendo totalmente verdadeiro sobre o que pretendo revelar, delimitando minha inspiração apenas em Mário de Andrade, Rubem Alves ou Orozco. Pois a ideia me preencheu mesmo a mente foi lendo “Glauber Rocha, esse vulcão”, de João Carlos Teixeira Gomes. Uma história fascinante sobre um brasileiro que foi muito mais que um dos principais nomes no Cinema Novo. Deixarei para tratar da minha “nova” relação com Glauber em outro momento. O fato é que sua história me fez pensar e sonhar com um projeto educacional, um Instituto de Humanidades Subversivas. Sei muito bem como esse conceito soa entre nós brasileiros, a máquina de propaganda da ditadura transformou em subversivo todos aqueles que se voltavam contra o sistema, convertendo-a de sentido pejorativo. Por isso devemos muito a Hélio Oiticica, com a sua bandeira antipropaganda “Seja Marginal, Seja Herói” (1968), subvertendo a noção de marginal e de herói em uma só frase. A obra foi uma homenagem ao “Cara de Cavalo”, um morador do Morro da Mangueira, morto pela polícia. E se o marginal é aquele que vive à margem da moralidade estabelecida, o subversivo é quem busca sua própria moralidade, questionando a moral em vigor, procurando viver uma outra ética.

O Instituto de Humanidades Subversivas teria por objetivo propor reflexões que propiciem aos indivíduos uma ética que subverta àquela dita dominante. Desta forma, como Mário de Andrade, eu comecei a pensar em um conjunto de conhecimentos e saberes que poderíamos compartilhar nesse espaço. Para começar, as bases teóricas metodológicas do nosso IHS estariam ancoradas no pensamento (seja ele latino-americano, africano ou periférico de alguma forma) anticolonial. Pensaremos por meio de novas epistemologias, não aquelas que nasceram para justificar a supremacia do sujeito da razão iluminista. Isso não excluirá algum pensamento Ocidental, creio que sejam importantes os estudos de uma “filosofia da suspeita”4, uma contra-história da filosofia5, em que se recupera os pensamentos vencidos, derrotados, não por serem inferiores, mas porque contrariaram interesses dominantes. Mas faremos isso sem dar ao pensamento ocidental a primazia da palavra. Um espaço onde o ocidente não seja tratado como o berço da racionalidade, teremos cartazes espalhados com dizeres: “A medicina não nasceu na Grécia de Hipócrates”, a “Filosofia não é filha de Sócrates, Platão e Aristóteles”, “Homero não é o pai da Literatura”, “Heródoto não inaugurou a História”, “A música não é filha das Musas”, “O teatro não nasceu com Ésquilo e Sófocles”.

Discutiremos a filosofia e a ética das escolas de pensamento africanas, asiáticas e americanas, de modo que seja possível superar ou sobrepor ao epistemicídio impetrado pelo pensamento ocidental. Estudaremos Filosofia, História, Sociologia e Antropologia em Cheikh Anta Diop, Valentin Mudimbe, Théophile Obenga e Mogobe Ramose. Aprenderemos ontologia e epistemologia nas escolas Hindus (como o Pramana) e Jainistas, passando pelas escolas Sânquias (como o pensamento dualista de que o universo consiste em duas realidades, purusha (consciência) e prakriti (matéria), e a filosofia realista Nyâya.

Sobre o conjunto de conhecimentos e saberes americanos, adentraremos na anticolonialidade da história (ou como está na moda, decolonialidade), mas antes mesmo de chegarmos aos principais nomes da “desconstrução” das epistemologias colonialistas, devemos nos aventurar no pensamento americano anterior às vozes que vêm da outra margem, como propôs a escritora chicana Glória Anzaldúa6. Investiremos nos saberes e conhecimentos do Abya Yala (que significa Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento), do Povo Kuna, mas também tantos outros povos que por aqui viviam e se distinguiam em maias, chibchas, mixtecas, zapotecas, ashuars, huaraonis, guaranis, tupinikins, kaiapós, aymaras, ashaninkas, kaxinawas, tikunas, terenas, quéchuas, karajás, krenaks, araucanos/mapuches, yanomamis, xavantes, além de tantos outros. É preciso deixar claro que o Europeu é o invasor, não se trata mais de aceitar pacificamente conceitos como “expansão marítima”, ou “descobrimentos”. São invasões!

É importante entender que a colonialidade não se dá apenas pela força dos canhões e baionetas, a colonização implica em uma dominação total, que estabelece sistemas de verdades, moldando a linguagem, a memória e o conhecimento. É por isso que nos livros didáticos lemos sobre a “Expansão do Império Romano”, revelando as proezas dos imperadores augustos, mas no capítulo seguinte nos deparamos com “As Invasões dos Povos Germânicos” (em alguns livros ainda são chamados de Bárbaros). Do mesmo modo, as guerras impetradas contra os Mouros na Península Ibérica são denominadas de “Reconquista” e a dominação do continente africano e asiático pelos europeus ao longo do século XIX ganhou uma conotação poética escrita pelo inglês Rudyard Kipling, denominado de The White Man's Burden (O fardo do homem branco).

Esse tipo de dominação (da linguagem, memória e conhecimento), só pode ser combatida pela construção de outras linguagens, memórias e conhecimento. Embora ainda encontremos poucos que se dedicam nesta tarefa árdua, temos já um conjunto suficientemente satisfatório para pensar as Américas por racionalidades disruptivas capazes de subverter o pensamento dominante. Poderemos conhecer nossa história por meio de obras do sociólogo peruano Aníbal Quijano, do antropólogo colombiano Arturo Escobar, dos argentinos Enrique Dussel (filósofo), Walter Mignolo (filósofo), María Lugones (socióloga) e Zulma Palermo (Pedagoga). Sem deixar de referenciar aqueles desbravadores desse pensamento, grandes referências da desconstrução, como é o caso do psiquiatra martinicano Frantz Fanon, autor de Pele Negra, Máscaras Brancas (1952) e Os Condenados da Terra (1961), além do judeu-lituano Emmanuel Levinas, o filósofo da alteridade.

Em literatura leremos Jorge Luiz Borges, Gabriel Garcia Marquez, sem esquecer de José Lins do Rego, Guimarães Rosa e Jorge Amado. Leremos ainda as obras das nordestinas pioneiras da literatura brasileira da Sociedade das Senhoras Libertadoras, como A Rainha do Ignoto (1889), de Emília Freitas e A divorciada (1902), de Francisca Clotilde. Mergulharemos na poesia de Pablo Neruda e de Gabriela Mistral, retomaremos a poesia marginal da Geração do Mimeógrafo, passando pelos versos de Chacal, Leminski, Torquato Neto e Ana Cristina César. Aprenderemos a geografia e a geopolítica de Milton Santos, a criminologia de Rosa del Olmo e a antropologia de Lélia Gonzales.

Em nosso Instituto de Humanidades Subversivas haverá espaços absolutamente livres para desconstruir aqueles tabus que não são possíveis de serem tratados em outras escolas, como descriminalização das drogas e do aborto, a relação entre o racismo estrutural e o encarceramento das populações pretas e pobres. Seremos uma escola antiproibicionista. Defenderemos os povos originários, a terra, a favela, os sem tetos e a comunidade LGBTQI+. Combateremos o neoliberalismo, o nazifascismo de ontem e suas ramificações contemporâneas. Atacaremos todas as balelas do empreendedorismo neoliberal.

Associaremos estes estudos ao mundo das artes no cinema, na música, no teatro e nas artes visuais. No cinema exploraremos as cinematografias de diretores argentinos, chilenos, mexicanos, discutiremos o Brasil nas filmografias de Glaber Rocha, Eduardo Coutinho, Nelson Pereira dos Santos, Lima Barreto, Gustavo Dahl, Tizuka Yamasaki e Adélia Sampaio. O teatro de Dias Gomes, Augusto Boal, Hilda Hilst e Maria Adelaide Amaral. Nas artes visuais passearemos pelas obras de Lasar Segall, Tarsila Amaral, Carlos Prado, Portinari, Di Cavalcanti, Giorgina Albuquerque, Beatriz Milhazes, Alfredo Volpi, Iberê Camargo, Adriana Varejão, os muralistas mexicanos (Orozco, Diego Rivera, David Siqueiros),além de grafiteiros e grafiteiras de nossos tempos.

Proporemos uma consciência sociopolítica que seja “sacialista e intergalática”, copiando as palavras de Bruno Simões Gonçalves7. Sim o Saci será um dos nossos símbolos mais importantes em nosso Instituto. Vale lembrar que Macunaíma o anti-herói de Mário de Andrade, se transmuta em Saci e, por fim, na constelação Ursa Maior. Uma consciência sacialista ressignifica o modo de ver o mundo, desnaturalizando o que foi naturalizado, mistificando o que foi desmistificado. O Saci-Pererê é um exemplo da transformacionalidade e de pluriversalidade. O negrinho travesso de uma só perna, vulgarizado na obra de Monteiro Lobato, tem uma origem mais complexa que nos foi contada, recebeu vários nomes indígenas, como: Jaxy Jaterê, Mati-taperê, Xaxim-Tarerê, Yasy-yateré. Saci é ameríndio-africano8. Na mitologia Guarani o Jaxy Jaterê (fragmento de Lua), é o protetor das floreta e dos animais que vivem nela. Mas há muitas versões sobre o menino ameríndio, tanto no que diz respeito ao seu temperamento e conduta, quanto as suas características físicas. Já o Saci negro, também guarda algumas aproximações com os chamados tricksters, que seriam deuses ou deusas com um potencial para infringir regras e normas. O escritor Ale Santos, autor de Rastros de Resistências (2019), escreveu que se trata de um arquétipo representado em várias mitologias africanas, em Gana ele é representado por Anansi, e em Yorubá por Exu.

Sem dar por encerrado minha proposta, pois a ideia é que ela siga sempre aberta a modificações. Concluo essa etapa tratando de nossa base bibliográfica, que será equilibrada entre autores e autoras, negros(as), brancos(as), pardos(as), latinos(as), das mais diversas orientações sexuais. Não teremos alunos x professores, diretores, coordenadores pedagógicos, nosso projeto pedagógico será gerado no debate público, onde todos e todas terão o direito de propor a inserção de um diálogo-tema. No IHS não haverá espaço para mestres, porque como Mário de Andrade, seremos todos inveterados alunos e alunas.

Alguns que lerão estas linhas poderão dizer: - Mas esses conhecimentos já estão presentes nos Centro Acadêmicos das Universidades Públicas! É verdade, estão. Ótimo que estejam, espero que tais espaços cresçam ainda mais. Mas quem conhece as escolas privadas sabem bem o quanto afastadas estas estão desses tipos de reflexões, salvo raríssimas exceções. Ultimamente, professores têm sido coibidos e em alguns casos proibidos de falar em política. Colegas de trabalho perderam o emprego por abordarem temas como sexualidade, eleições, drogas, entre outros. Não estou pensando na gurizada que terá condições de estudar em uma Universidade Pública, porque sabemos estes são um grupo ainda seleto. Penso em um modelo de escola voltado para a galerinha que hoje se encontra no ensino médio, um público que estuda em escolas como as que eu passei como professor, escolas com um currículo engessado, conteudista, voltadas para preparar as turmas tão somente para passar nos vestibulares. Modelos educacionais que fazem perpetuar o sistema de reprodução das desigualdades sociais com ideologias liberais-colonialistas.

Se isso é um projeto? Gostaria muito que fosse, por ora, é apenas um livre sonhar.


1O artigo virou capítulo de livro, uma coletânea de ensaios escritos por alunos da pós-graduação da UFF, em especial na área de sociologia e direito, organizado por nossa cara professora Carmem Felgueiras, aprovado pela FAPERJ, publicado em 2022 pela Editora Anagrama, sob o título de Contrapontos, Ensaios sobre interpretações do Brasil. O meu artigo ocupa o capítulo 2 da obra com o título: O viajante aprendiz – Mário de Andrade, a expansão do Modernismo e a integração do Brasil.

2ANDRADE, Mario. Chronicas de Malazarte II. In: Revista América Brasileira n. 23, p.318. Rio de Janeiro, novembro de 1923. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/158089/646

3ALVES, Rubem. Sobre deuses e caquis, em: Da Esperança, Papirus, Campinas: 1987.

4RICOEUR, Paul, Ricoeur, chamará de Hermenêutica da Suspeita em sua obra Freud e Filosofia (1965), ao buscar confluências nos pensamentos de Marx, Nietzsche e Freud.

5Ao modo como pensou Michel Onfray.

6Anzaldúa que desenvolveu em 1987 a noção de “Borderlands/La frontera”, reconceituando o conceito de mestiço.

7Autor da tese: Nos caminhos da dupla consciência: Socialismo Indu-Americano, libertação e descolonização da América Latina, PUC, 2014.

8ROSA, Rogério Reus Gonçalves da. Jaxy e Jaxy Jaterê: o ponto de vista Guarani e de outros povos ameríndios sobre a origem da lua, as constelações e o saci-pererê (primeira parte). Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 1-46, jan./abr. 2022.

quarta-feira, setembro 28, 2022

PAULO GUEDES, BOLSONARO E A ANTIESTÉTICA DA FOME.

A sincronia nos discursos promovidos por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, quanto a inexistência da fome no Brasil, não é coincidência. No mês passado, o “Messias” presidente afirmou em uma entrevista, que a coisa não é bem assim, disse ele: “alguém já viu alguém pedindo um pão ali, no caixa da padaria? Você não vê, pô!” (Programa Pânico, Jovem Pan, 26/08/2022). Exatamente um mês depois, em um evento para empresários na Bahia, Paulo Guedes disse que “não tem mais ninguém vendendo água no sinal!” Referia-se aos efeitos do “Auxílio Brasil”. Por que essa negação?

Em 1965, o cineasta Glauber Rocha, um importante nome do Cinema Novo, roteirista e diretor de filmes como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), “Terra em Transe” (1967) e “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969), apresentou durante o Congresso Terceiro Mundo e Comunidade Mundial, na cidade italiana de Gênova, o manifesto intitulado “Eztetyka da Fome”.
Cena de Deus e o Diabo na Terra do Sol 

Para Glauber, a ruptura com o sistema que subjugava os chamados países de “terceiro mundo” passava pela produção de uma estética da fome, e uma estética da fome é uma estética da violência. Cito um trecho:

uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo; foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.(ROCHA, 1965).


A negação da fome funciona como uma antiestética da violência imposta pelas elites à classe trabalhadora. As matérias de jornais sobre a fome eram censuradas na ditadura militar, ditadura esta que forçou Glauber e tantos outros buscarem exílio no exterior. O chamado Mapa da Fome na era FHC constrangeu o Brasil diante da comunidade internacional. A violência explícita dos nossos governantes, estampada nos jornais de todo o mundo envergonhava os próprios brasileiros, em especial os que tinham fome. Glauber percebeu que para as sociedades de “primeiro mundo”, a fome não passava de um “estranho surrealismo tropical”, parte de nosso primitivismo. A fome seria então resultado de nossa incapacidade de nos adaptar ao novo sistema mundial. Será que algo mudou hoje? Se por um lado há maior pressão das organizações internacionais e das sociedades civis, por outro, o Grande Capital segue não se importando. Um país com alta concentração de renda e de terras é um prato cheio (um trocadilho necessário) para os gananciosos por lucros.

Uma antiestética da fome tem por função suprimir a estética da fome que, por sua vez é reveladora da violência. Nas propagandas governamentais o Brasil é exatamente o Brasil de Paulo Guedes e de Bolsonaro, ou, o Rio de Janeiro é lindo como querem Washington Olivetto e Cláudio Castro. O brasileiro, porém, que vive a luta diária de ser brasileiro, sabe como andam as ruas desta nação. A fabulosa canção “Ronco da Cuíca” (2000), letra do saudoso Aldir Blanc em parceria com João Bosco, um exemplo de uma estética da fome, traz em uma de suas estrofes a relação entre a fome e a violência.

A raiva dá pra parar, pra interromper
A fome não dá pra interromper
A raiva e a fome é coisas dos home
A fome tem que ter raiva pra interromper
A raiva é a fome de interromper
A fome e a raiva é coisas dos home

Que a raiva e fome, estéticas da violência, possam se manifestar com toda força no próximo domingo, interrompendo o projeto político de poder vigente para que seja possível a instauração de uma nova estética.

Jonatas Carvalho 

terça-feira, setembro 27, 2022

ELEIÇÕES, ESPERANÇA E TEMOR: UM OLHAR SPINOZIANO.

A esperança é sentimento, assim como o desejo. Um e outro passeiam lado a lado em nossos pensamentos, desejar é esperar que algo se realize, esperar é desejar que se presentifique aquilo que ainda não chegou, desejar e esperar não são a mesma coisa, mas percorrem caminhos paralelos. E esperança só se concretiza na ausência daquilo que é desejado, uma vez que se alcança, não se espera mais. Mas a esperança é um sentimento que só se manifesta porque é compartilhada com outro sentimento: o temor. Se espera por algo porque se teme por outro algo. Se espera viver muito, porque se teme morrer cedo. Esperança e temor são afetos que se conectam mutualmente. Não existe temor sem esperança, nem esperança sem temor.

Hope - George Frederic Watts - 1886
A questão é que ambos, esperança e temor são produzidos politicamente. O lema: “Brasil, país do futuro,” nos convoca a buscar construir uma sociedade que ainda não existe, mas tem potencial para existir. As campanhas político-partidárias exploram o temor e a esperança ao mesmo tempo.


Nos tempos de hoje, temos de um lado, um discurso que convoca a nação a derrotar um inimigo: o fantasma do comunismo e toda imoralidade que com ele se instala. O que se teme de acordo com tal discurso? Se teme que o Brasil vire uma Venezuela e que se extinguam as liberdades. Para esses, a esperança, isto é, o que se deseja, o que se deve almejar é um projeto de nação que conserve valores como Deus, pátria, família e liberdade ao modo como tais valores foram concebidos a partir de uma certa moral judaico-cristã.



No outro discurso, a esperança está no retorno. Se deseja voltar a um tempo em que éramos felizes. A esperança naquilo que um dia já se teve e o temor que de que não seja mais possível alcançar de novo. A esperança de um Brasil menos miserável e menos subserviente, um país que considera as minorias como parte integral dele mesmo, um Brasil que se respeita e é respeitado. Espera-se que voltemos a um tempo em que a censura havia desaparecido e que o diálogo se sobrepunha ao ódio. Espera-se o retorno ao Estado Democrático de Direito. É evidente que para quem analisa nossa história social esse Brasil nunca existiu de fato. Nunca fomos uma democracia real, até porque esse conceito é um ideal e ideias são baseados na esperança, portanto, se alimenta pela ausência.

No entanto, se nossa esperança é fundada no ideal de nação que preza por justiça social, igualdade de direitos e de oportunidades, certamente devemos temer a permanência do projeto que se encontra em vigor. Se o Brasil que almejamos é o do Estado laico, que congrega e garante o direito de crença e de culto, devemos temer o Brasil teocrático. Se é assim, mesmo que nunca tenhamos alcançado um Estado Democrático de Direito, no atual projeto nos distanciamos ainda mais dessa possibilidade. A esperança não precisa ser tola, ingênua, esperar não é o mesmo que acreditar em milagres, porque esperança e fé são coisas diferentes. Se tememos pela permanência do atual projeto político devemos agir para que ele não se prolongue. Agir neste caso é mais que votar, é contribuir para que o projeto de um país justo, igualitário e livre, seja tão bem-sucedido, que nunca mais se ouse esperar por um retorno ao modelo que se instalou por aqui em 2018. O que a história tem nos mostrado é que quando falhamos em construir um projeto político de justiça e viabilidade econômica, o modelo moralista retorna com força, a Itália é nosso último grande exemplo.

Que os afetos esperança e temor sejam parte de nossa força motriz para nos aproximar ao máximo de um projeto de país que integre pessoas e outros seres viventes nessa terra.

quinta-feira, setembro 22, 2022

EM RESPOSTA A REGINA DUARTE

Sim Regina, o ódio é produzido com base em preconceito e desinformação, mas também por desejo de poder. Seu candidato tornou-se especialista nesses quesitos. Ele é o Messias do ódio, seus discípulos e discípulas andam por ai não apenas fazendo “sinal de arminha”, não se trata de um ódio abstrato, no mundo real estão agredindo, espancando e matando quem ouse discordar ou contestar o seu mestre.

Mas seu vídeo foi feito para justificar o ódio contra o seu presidente que, hoje é candidato à releição, mas segue atrás nas pesquisas e você não entende tal rejeição, acredita que isso é fruto de uma campanha de difamação. Quanto ao seu candidato Regina, não faltam informações, infelizmente as temos, infelizmente são horríveis. Apenas os dados da pandemia no Brasil deveriam ser suficientes para justificar a prisão do seu candidato, pois somos 3% da população mundial e deixamos morrer 11% dos mortos por Covid no mundo. Só para citar mais dois dados: a fome que se alastra em nosso território e a política de extermínio contra as nações indígenas, não são abstrações Regina, são a mais dura realidade.

Não transforme seu candidato em vítima, ele é responsável e culpado diretamente pela catástrofe que nos assola. Eu, particularmente não o odeio, guardo o meu ódio para os grupos de poder que articularam um golpe por aqui, um grande acordo entre as elites Crioulas e o Capital Internacional; “com o supremo contudo!” Lembra?

Jair é uma espécie de “Messias do mal necessário”, a velha lógica do neocolonialismo (neoliberal), pois, enquanto se implanta uma política de pauta moral, necessária para deter o inimigo imaginário do comunismo, se entrega as riquezas primordiais ao Grande Capital. Os oligopólios, com suas bases centrais plantadas nas grandes democracias, pouco se importam com as liberdades e direitos humanos dos países periféricos. Para tomar nossas riquezas vale tudo, um dos principais lemas do liberalismo fisiocrata “laissez-faire, laissez passer” (deixe fazer, deixe passar), utilizado para naturalizar uma economia dita livre, na prática, transforma-se em “laissez-le mourir laissez-le tuer” (deixe morrer, deixe matar), o importante é garantir lucros e dividendos.

domingo, setembro 11, 2022

ROCK É ROCK MESMO?

 

Trinta e sete anos depois, após muita resistência, eu voltei ao Rock In Rio. Uma sensação estranhíssima, um misto de perplexidade com toda aquela estrutura e bronca daquele espaço heterotópico. Havia algumas razões para eu ter resistido todos esses anos em voltar a este evento: o primeiro é que eu preferi guardar 1985 na memória como um tipo de Woodstock da minha geração, o segundo é que, para mim, não se faz mais Rock como naquele tempo. Obviamente ambas as razões são idealistas. Eu era só um adolescente hyppie em 1985, com visão crítica muito limitada, e a paixão pelas bandas (que nunca pisaram no Brasil), em especial AC/DC, Queen, Scorpions e Whitesnake, me seduziu. Quanto ao Rock, bem, é evidente que se trata de preconceito de geração. Raul Seixas, em uma entrevista no ano de 1988, afirmou que o Rock havia morrido em 1959. Meu ídolo nacional me decepcionou com tal sentença. Na ocasião não o compreendi, só com a maturidade percebi o que ele quis dizer.

O ano de 1985 foi um marco daquilo que se concebeu chamar de redemocratização, o Rock In Rio representou esse Brasil sem órgãos de censura prévia. As bandas nacionais como Barão Vermelho, Blitz, Paralamas do Sucesso e Kid Abelha representavam a volta da liberdade de expressão. Alguns anos mais tarde eu compreendi que o fim da censura só chegou para alguns. A ditadura havia deixado o governo executivo, mas a estrutura do Estado de exceção seguia entranhada nas instituições, em especial na polícia. Os grupos poderosos que apoiaram o golpe de 1964 seguiam no poder, reprimindo as populações periféricas.

Quanto ao evento que participei neste 10/09/2022, nem de longe me empolgou. Com raros momentos de “opa tem coisa boa aqui”, foi o caso do Eletrika Trio e Cee Lo Green, o resto foi vivenciar um espaço preparado para te levar ao limite do cartão de crédito. A Rota 85, espaço dedicado ao primeiro Rock In Rio, apesar de me deixar nostálgico, frustrou minhas expectativas. Seus monumentos conflitaram com minhas próprias memórias. O All Star gigante enlamaçado, sem dúvida uma obra de arte, não corresponde historicamente à realidade do brasileiro dos idos de 1980. O tênis All Star começou a ser fabricado no país exatamente no início da década, em total descompasso com o original nos EUA. Somente os filhos da classe média para cima podiam ter um par, as classes populares usavam mesmo era o “Bamba”, o “Conga” e o velho “Kichute”, um ou outro podia comprar um “topper” ou um “Rainha”.

Outra questão crítica pra mim: o chamado “Espaço Favela”, criado a partir de uma favela cenográfica, romantizada e atraente. Assisti ali um grupo de samba liderado pelo “El Pavuna”, um jovem cantor, que nos brindou com sambas incríveis, uma banda excelente. A apresentação terminou com a abertura de uma faixa onde se lia: “Ouçam a favela”. Essa experiência me fez pensar que, se por uma lado aquele espaço estava dando oportunidades a uma nova geração do samba e permitindo trazer aquele público uma mensagem de que a favela é lugar de vida, cultura e música de muita qualidade, por outro, não havia favelados ali. Possivelmente, os poucos pobres que ali estavam endividaram-se aos tubos para poder estar naquele lugar.

Concluo dizendo que, mesmo terminando a experiência encharcado pela chuva, que não deu trégua depois das vinte horas, hoje, ainda cansado, penso que valeu. Não pelo Coldplay, que só assisti umas quatro músicas e depois fui procurar abrigo coberto, mas por estar naquele lugar com familiares e amigos, por vê-los felizes, mesmo aturando algumas rabugices que, ora ou outra, eu manifestava. Minhas últimas palavras, viva Djavan! Aos 73 anos de idade ainda consegue nos emocionar.

Jonatas Carvalho.