segunda-feira, janeiro 30, 2017

A 2ª Guerra Mundial e o desabastecimento dos chamados "entorpecentes" no Brasil.

As primeiras tentativas de regulamentar determinadas substâncias psicoativas no mundo tiveram início nas últimas décadas do século XIX e avançaram até a metade do XX com a proibição total de algumas destas substâncias. 
As primeiras ações tinham por objetivo restringir a produção e comercialização desses "entorpecentes" apenas para fins médicos. A Liga das Nações se encarregou de elaborar as políticas internacionais em uma série de conferências entre 1909 a 1936. Esses tratados permitiam que o Brasil importasse ópio, morfina, cocaína e maconha por meio da alfândega do Rio de Janeiro e tais produtos fossem distribuídos na rede varejista de farmácias. A partir de 1938 a venda desse produtos em farmácia tornou-se altamente complicada, sendo necessário o receituário médico. A dificuldade para se obter o produtos de modo legal, acendeu o mercado ilegal, o que as autoridades da época chamavam de contrabando. 
Com o advento da 2ª Guerra Mundial o Brasil passou a ter problemas para abastecer o mercado legal de entorpecentes, o governo começou a fazer articulações tentando regularizar o abastecimento. Isto porque, a maior parte das substâncias em questão eram importadas da Alemanha, Suíça e Inglaterra. O governo brasileiro chegou a fazer experimentos com plantação de ópio em algumas regiões do país com o intuito de construir uma fábrica para a extração da morfina e outros opiáceos, mas foi dissuadido pelo governo estadunidense. A partir de 1944 os EUA tonara-se um grande fornecedor dessas substâncias para o mercado brasileiro. 
A planilha abaixo nos ajuda a verificar a diminuição das importações no decorrer no período da guerra, alguns produtos deixaram de ser importados integralmente, outros obtiveram significativa redução da importação. 

Importações de psicoativos entre os anos de 1939 e 1946

O Departamento Nacional de Saúde em 1946. Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Arquivos de Higiene, Ano 16 junho-dezembro nº 1 e 2 - 1946. p. 128

Extraído do Livro> CARVALHO, Jonatas. Regulamentação e criminalização das drogas no Brasil: A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes - 1936-1966. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013. 192p.

quinta-feira, janeiro 26, 2017

TERIA SIDO O BRASIL RESPONSÁVEL PELA PROIBIÇÃO DA MACONHA?

Ao que me parece, um grande mal entendido, acabou colocando na conta do Dr. Pernambuco Filho e o Dr. Adalto Botelho (autores de Vícios Sociaes e Elegantes - 1924), a proibição da maconha. Segundo alguns autores, esses senhores apresentaram na conferência sobre o ópio em Genebra em 1924 um pedido formal para que o Comitê Internacional do Ópio proibisse a cannabis. Abaixo alguns esclarecimentos de como o processo da proibição da maconha se deu, de acordo com as minhas leituras das fontes. 

Há na historiografia muitas controvérsias sobre qual delegação foi responsável pela inclusão do cânhamo na pauta das conferências em 1924. Alguns autores chegaram a afirmar que a proibição da maconha em âmbito internacional deve-se ao representante brasileiro em Genebra o Dr. Pernambuco Filho[1]. Há também quem defenda que tal ato tenha sido obra da delegação britânica, como é o caso de Antônio Escohotado[2] e quem acredite que teria sido a delegação egípcia a responsável, como tentativa de frear o consumo do haxixe (rezina da canabis).[3]Westel Woodbury Willoughby (1867-1945) em 1925 no Opium as na international problem: the Geneva Conferences, afirma que o primeiro governo a se manifestar oficialmente sobre o problema do cânhamo foi a “União da África do Sul” que em 1923 teria enviado a Liga das Nações uma sugestão para que o haxixe fosse considerada como uma droga viciante de caráter narcótica. O Comitê Consultivo considerou que o assunto deveria ser estudado e que os outros governos deveriam apresentar também suas posições, emitindo a seguinte resolução: 

Com referência à proposta do Governo da União de África do Sul de que cânhamo indiano deve ser tratado como uma das drogas formadoras de hábito, o Comité Consultivo recomenda ao Conselho que, em primeira instância, os Governos devem ser convidados a fornecer informações à Liga sobre a produção, utilização e tráfico da substância presente em seus territórios, juntamente com a suas observações sobre a proposta do Governo da União de África do Sul. O Comité recomenda ainda que a questão deve ser considerada na sessão anual do Comitê Assessor a ser realizada em 1925.[4]

O documento[5] confirma a participação efetiva do Egito nas reuniões em Genebra, um memorando produzido pela delegação que era presidida pelo Sr. El Guindy, apresentava o uso do haxixe naquele país como responsável pelos casos de “demências”, cujas incidências em homens eram três vezes maiores que em mulheres, conforme o documento, isso seria o contrário do que ocorria na Europa. O Egito recebeu apoio imediato da China, o representante dos EUA, Sr. Porter, afirmou que era o momento para se praticar um pouco de reciprocidade, já que as outras nações estavam pedindo a estes (Egito e Turquia), apoio contra o ópio e a coca[6]. Uma declaração que mais pareceu uma convocação ao apoio da inserção da cannabis na lista. A delegação da Índia disse que não havia se preparado para o debate, mas até o final da Conferência emitiram nota dizendo que governo indiano estaria disposto a controlar as exportações da Indian hemp, para outros países apenas com certificados para fins medicinais.[7] França e Holanda se opuseram assim como o representante britânico Sr. Malcolm Delevingne, este último alegou que devido ao despreparo das delegações para discutir o assunto, seria “impossível se chegar a um acordo nesta Conferência”.[8] Mas ao final da Conferência editou a seguinte resolução:

A utilização do cânhamo indiano e suas preparações derivadas só podem ser autorizadas para fins médicos e científicos. A resina crua (haxixe), no entanto, que é extraída da planta fêmea da cannabis sativa, juntamente com as diversas preparações (haxixe chira, esrar, diamba, etc), de que forma a base, não sendo presentemente utilizada para fins médicos e apenas sendo susceptíveis de utilização para fins prejudiciais, da mesma maneira como outros narcóticos, não podem ser produzidas, vendidas, comercializadas, etc, sob nenhuma circunstância.[9]

Notas: 

[1] Muitas publicações brasileiras basearam-se na obra de CARLINI, E. A. (A história da maconha no Brasil. São Paulo, CEBRID, 2005.), que por sua vez utilizou-se de KENDELL R. (Cannabis condemned: the prescription of Indian hemp. Addiction, 98: 143-51, 2003). Este teria afirmado que: “ o representante brasileiro, Dr. Pernambuco, descreveu a maconha como ‘mais perigosa que o ópio.” (p.9) Veja por exemplo: CAMPOS, Marcelo Araújo, A presença da Cannabis sativa (Linné) e canabinóis na Lista IV da Convenção da ONU, CONAD, 2005; BARROS, André & PERES, Marta. Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas. PERIFERIA, V. III, Nº 2: 2011. Estes últimos chegaram a afirmar com base em tal “informação histórica” que: “esse médico, indiscutivelmente, influenciou a criminalização da maconha em todo o mundo. Em outras palavras, foi baseada nas ideias racistas e escravocratas presentes no discurso de um psiquiatra brasileiro, que a criminalização da maconha viria a ser internacionacionalizada.” (p.14). Na verdade o próprio CARLINI (2005) achou um pouco contraditório tal afirmação (embora tenha alegado que a mesma fora confirmada na obra: Os fumadores de maconha em Pernambuco, arquivos e assistência aos psicopatas, 1934 de José Lucena), citando a obra Maconha (coletânea de trabalhos brasileiros, publicado em 1958), onde o mesmo Dr. Pernambuco Filho afirmara que: “Em centenas de observações clínicas, desde 1915, não há uma só referência de morte em pessoa submetida à privação do elemento intoxicante, no caso a resina canábica. No canabismo não se registra a tremenda e clássica crise de falta, acesso de privação (sevrage), tão bem descrita nos viciados pela morfina, pela heroína e outros entorpecentes, fator este indispensável, na definição oficial de OMS, para que uma droga seja considerada e tida como toxícomanógena.” (p.10). 
[2] Veja ESCOHOTADO (1998, p.701). Para o autor, os ingleses associaram o uso de haxixe às atividades “subversivas”, isto é, o haxixe fora convertido em “símbolo” da resistência ao colonialismo no Egito.
[3]BLANCHARD, Sean &ATHA, J. Matthew. Indian hemp and the dope fiend of old England: a sociopolitical history of cannabis and the British Empire-1840-1928. In. www.druglibrary.org / <http://www.druglibrary.org/schaffer/Library/studies/inhemp/dopefien.htm>acesso em: 13/11/2012.
[4] WILLOUGHBY, W. W. Opium as an international problem: the Geneva Conferences. Baltimore, The Johns Hopkins Press, 1925. p. 374
[5] A obra de Westel Woodbury Willoughby é composta por discursos e memorandos de plenipotenciários de várias delegações em variadas seções da Conferência. O memorando do Sr. El Guindy encontra-se na integra nas pp.374-378.
[6]Idem.p.379

[7] Idem p.380 
[8] Idem. p.381. Aqui verificamos uma possível contradição quanto à afirmação de Antônio Escohotado, sobre a liderança dos ingleses no processo que levou a inclusão da maconha na lista de substâncias reguladas em Genebra de 1924. Todavia, é possível que o autor tenha razão, já que tanto o Egito quanto a África do Sul eram na época protetorados (ou colônias) do império britânico, mesmo com o posicionamento do representante britânico, a Grã-Bretanha ratificou a convenção. O comércio de canabis não era representativo para o governo britânico, o país mais afetado com a regulação seria o Afeganistão que fornecia para a Índia e Pérsia, mas este não estava representado na conferência, a maioria dos países europeus não tinham nada a perder como a regulação da canabis, assim, mesmo sem maiores análises, o cânhamo foi incluído na lista de drogas nocivas na Convenção e Genebra em 1925. 
[9] Idem. p.383.

Extraído do Livro>  CARVALHO, Jonatas. Regulamentação e criminalização das drogas no Brasil: A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes - 1936-1966. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013. 192p.

terça-feira, janeiro 24, 2017

O LANÇA-PERFUME: DE FENÔMENO DOS CARNAVAIS A INIMIGO DE SAÚDE PÚBLICA.

“Lança menina, lança todo esse perfume, desbaratina não dá pra fica imune, ao teu amor que tem cheiro de coisa maluca”. Rita Lee/Roberto de Carvalho.

No final do século XIX, em La Plaine, na França, um experimento farmacológico com base em cloreto de etila e uma fragrância sintetizada de violeta fora colocada dentro de ampolas de kelene, um tipo de anestésico tópico, a ideia era que o aroma do anestésico não fosse desagradável a quem usasse. A indústria responsável pelo experimento em questão era a Société Chimique des Usines du Rhône, conhecida posteriormente no Brasil como Rhodia Farmacêutica. 

O experimento, um acidente como muitos outros na história da indústria farmacêutica, foi apresentado em uma exposição em Genebra no ano de 1897. Teria sido um fracasso total se um brasileiro que lá estava não se interessasse e trouxesse o produto para o Brasil. Patenteado pelo nome do “Rodo”, odor ao contrário, o lança-perfume ganhou o coração dos foliões. O sucesso foi tão grande que a Rhodia iniciou a instalação da sua fábrica no Brasil em 1919 e em 1922 já estava produzindo Rodo em solo nacional.


O lança-perfume tornou-se um elemento agregador às chuvas de confetes e serpentina, um fenômeno que tomou às ruas, às festas de Rei Momo e os bailes chiques em todo o Brasil. Em 1909, casas de artigos carnavalescos faziam anúncios nos jornais em todo o país garantido o autêntico Rodo. O sucesso do produto, no entanto, deu-se por ter extrapolado sua utilização original, o conteúdo do tubo, que uma vez espirrado no ar causava um frescor aromatizado, passou a ser derramado em lenços e aspirados. A sensação de leveza e de sentir o mundo girando, associada aos ritmos das marchinhas fez do lança-perfume um produto indispensável nos carnavais por algumas décadas.

Não tardou para que a concorrência aparecesse. Após as festas de final de ano, a movimentação para o carnaval começava, as grandes casas especializadas e armarinhos tratavam de colocar anúncios de venda de lança-perfume de várias marcas com preços a atacado. Alguns anúncios eram destinados a contratação de “agentes de vendas”, cujo trabalho era visitar regiões adjacentes aos centros e os mercados varejistas. Os grandes clubes também anunciavam suas programações nos jornais comunicando que seus estoques de lança-perfume estavam garantidos. Nos dias seguintes os jornais divulgavam as fotos dos bailes com o povo se divertindo e o “cheiro” fazendo a alegria dos foliões.

Última Hora, 20 de fevereiro de 1963

Mas a vida não ficou fácil para os foliões por muito mais tempo. Após a 1ª Conferência Nacional da Polícia em dezembro de 1951, a reformulada Delegacia de Costumes e Diversões passou intensificar as portarias nos períodos de carnaval proibindo todo o tipo de atentado aos “bons costumes”. As matinês, devido a presença de menores, foram as primeiras a serem objeto das proibições. Uma portaria emitida pelo delegado Aldemir Gonçalves Pereira em Brasília, enumerava assim os itens proibidos: a) fantasias imorais; b) lança-perfume; c) permanência de menores de 20 anos; d) venda de bebidas alcoólicas. A portaria publicada no Correio Brasiliense em fevereiro de 1961, tinha por objetivo coibir o “libera geral” nos bailes dos clubes do recém Distrito Federal, mas as denúncias contra o Taguatinga Country Club e outros demonstravam que as portarias policiais não eram muito respeitadas.

Diário da Noite Fevereiro de 1961

No mesmo ano, o Diário da Noite, publicara uma página inteira sobre o Baile dos Artistas no Hotel Glória, com a manchete “Cheiro venceu uísque no Glória.” O jornal informava que “apesar do policiamento ostensivo, o lança-perfume animou os foliões a noite inteira”. O bar ficou mais vazio que de costume, a dose de uísque custava Cr$ 200, o mesmo preço que uma bisnaga de lança-perfume, mas a bisnaga “durava muito mais e seus efeitos eram fulminantes”. Uma outra manchete onde se lia “O cheiro é livre”, com uma foto que cobria uma página inteira, mostrava o baile no Hotel Quitandinha em Petrópolis, uma pequena nota abaixo da manchete resumia “Carnaval houve pouco. Mas o cheiro era livre, o lança-perfume (além de 300 litros de uísque), foi o combustível que lançaram mão os foliões para alegrar a festa.” 

As denúncias ganharam repercussão nacional, Lamartine Babo, compositor dentre outras de “O teu cabelo não nega”, já havia declarado na Revista do Rádio em 1960, que o “carnaval deixou de ser uma festa espontânea, não há mais côrso, mascarados, blocos espirituosos. O confeti sumiu, a serpentina é escassa, o lança-perfume é um instrumento de vício.” [sic] A pressão por parte da sociedade e campanhas pela moralidade como as de Flávio Cavalcante fez com que o presidente Jânio Quadros baixasse o decreto presidencial nº 51.211 de 8 de agosto de 1961, cujo teor proibia em todo território nacional a fabricação, o comércio e o uso do lança-perfume. O decreto alegava que a prática de aspiração do “lança-perfume” como meio de embriaguez não podia ser tolerada pelo Estado, cujo dever é zelar pela saúde pública.

A partir do carnaval de 1962, os anúncios dos grandes bailes no

jornais vinham acompanhados de uma nota de rodapé onde se lia: em cumprimento do decreto 51.211/61 está proibido o uso de lança-perfume. Mas não foi tão fácil assim parar os foliões. Ainda era possível encontrar anúncios nos jornais como os do famoso lança-perfume Pierrot, sucessor do Rodouro (antigo Rodo), tinha também o Lança-perfume Dó-ré-mi que, em 1963, podia se comprar por Cr$ 4.800,00 a dúzia de tubos de 100 gramas. 

O golpe em 1964, também foi um duro golpe aos carnavalescos, além de aumentar a censura sobre as composições do samba, o General Castelo Branco, baixou um decreto que iria substituir o de Jânio Quadros, o decreto 55.786/65 colocou o lança-perfume na clandestinidade. Cronistas da época denunciavam a “extorsão” que os “contrabandistas” cobravam no produto. No mesmo ano em Belo Horizonte, o Correio da Manhã publicava na sua edição de domingo, de 28 de fevereiro a seguinte manchete: "Em BH carnaval tem pulo, mas sem beijo", o conteúdo dizia que oito mil soldados, alguns estariam disfarçados, estariam lá para vigiar os foliões, nada de beijo ou lança-perfume, a infração poderia resultar em prisão. 

O lança-perfume seguiu fazendo a alegria dos foliões por um bom tempo ainda, mas depois de 1965, só na surdina.

Abaixo um vídeo da marchinha "Carta da roça" ou melhor "Ozebio" de João de Barro, foi sucesso no carnaval 1961, cantada por Aracy Cortes.



Jonatas Carvalho.

Historiador.

sábado, janeiro 21, 2017

OS INTOCÁVEIS BRASILEIROS E A GUERRA AS DROGAS

A pesquisa em jornais do passado é sempre surpreendente, nunca se sabe o que se pode encontrar. Quase uma década antes de Nixon declarar sua guerra às drogas (1971), no Brasil a guerra já havia sido declarada. Praticamente às vésperas do Golpe de 1964, após Jango desarticular o parlamentarismo, um grupo de policiais federais liderados pelo delegado Carlos Alberto Garcia, iniciavam uma busca implacável aos nossos Al Capones. 

Em março de 1961 na cidade de Nova Iorque foi realizada a Convenção Única de Entorpecentes, um importante marco no que tange as medidas proibicionistas até então. Embora a referida convenção só tenha sido homologada no Brasil após o golpe de 1964, as políticas de repressão às drogas estavam a todo vapor no país desde o fim da Segunda Guerra, sob a liderança da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes – CNFE, criada em 1936. Uma experiência adquirida graças aos anos de cooperação com o Federal Bureau of Narcotics – FBN, criado por Harry J. Anslinger. O Sr. Anslinger comandou a política de drogas nos EUA entre os anos de 1930 e 1962, passando pelos governos de Franklin D. Roosevelt, Harry S. Truman e Dwight D. Eisenhower. 

Voltando ao Brasil, o delegado Garcia era titular do Departamento Federal de Segurança Pública – DFSP, e trouxe para o Estado da Guanabara oito de seus melhores homens, o grupo recebeu por parte da imprensa nacional o título de os intocáveis, numa alusão aos homens de Eliot Ness. Segundo uma entrevista dada ao jornal Correio da Manhã, numa terça-feira de outubro de 1963, sua equipe, que tinha a identidade secreta, contava com uma série de qualidades, dentre as quais uma ficha funcional impecável, eram todos solteiros, portanto de dedicação exclusiva ao trabalho, com grande capacidade técnica, todos eram faixa-preta e exímios manejadores de armas. O formato das operações e investigações do grupo tinha como referencial o FBI. 

Garcia e seus homens ficaram por vários dias tomando depoimentos por todo o Estado. Dentre os depoentes estava João Saldanha, jornalista esportivo, cronista, que havia sido técnico por dois anos do Botafogo 1957-1959. De acordo com Garcia o depoimento de Saldanha foi fundamental para que o DFSP iniciasse uma grande investigação no mundo esportivo. Garcia prometeu a imprensa que revelaria uma lista contendo nomes de diversos jogadores que estavam fazendo uso de estimulantes e psicotrópicos. Revelou que havia uma grande rede ilegal de entorpecentes envolvendo desportistas. Na lista das revelações havia também os médicos que mais receitavam entorpecentes e as farmácias que mais vendiam. 

Outra ponta das investigações dos intocáveis foram os “inferninhos” do Rio, embora o foco das operações tenha sido Copacabana. Segundo Garcia havia elementos suficientes para garantir que nos referidos estabelecimentos os jovens estavam misturando barbitúricos com álcool, tal mistura provocaria efeitos semelhantes ao do ópio. A caçada incluía além dos frequentadores, os músicos, dançarinas e outros artistas.  

A operação liderada por Garcia e seus oito intocáveis, redeu dias de manchetes nos jornais, não apenas vinculadas as ações da equipe do DFSP, mas diversas matérias de primeira capa falando do perigo das drogas e sobre apreensões realizadas pela PM. Em 1965 a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes enviou a 34ª reunião geral da Interpol um pedido formal para que todos os países membros erradicassem todas as plantas das quais possa se extrair entorpecentes. 

Jonatas Carvalho

quinta-feira, janeiro 19, 2017

IGUALDADE X LIBERDADE II

Você sabe o que é coltan? É a combinação de duas palavras que correspondem aos respectivos minerais: a columbita e a tantalita. O coltan é fundamental para a fabricação de celulares, TVs de plasma, notebooks, câmeras digitais, satélites artificiais e diversas outras tecnologias. Grandes corporações como a Apple, Microsoft, Dell, Nókia, Motorola e outras utilizam o coltan em suas tecnologias. Ocorre que a maior reserva deste precioso mineral está localizado no Congo, na África Central, um país que desde 1996 assistiu o extermínio de mais de 6 milhões de pessoas (destes, 2 milhões de crianças). O coltan viaja para a Europa e EUA graças as corporações ligadas a Ruanda e Uganda, dois países que resolveram (com apoio dos EUA e vista grossa da ONU) invadir o vizinho Congo, com seus exércitos e que são responsáveis por esse holocausto africano. Uma dessas corporações é a Somigi (Sociedade Mineira dos Grandes Lagos) tem o monopólio do setor; é uma empresa mista de três sociedades: Africom (belga), Promeco (ruandesa) e Congecom (sul-africana). Graças a essas nobres empresas podemos usufruir do bom funcionamento dos nossos smartphones, iPod, iPed, laptops e Playstation (O natal do ano 2000 muitos filhos de americanos deixaram que ganhar um Playstation de presente porque a fabricação do jogo fora insuficiente para abastecer o mercado, motivo: falta de coltan). 

É assim que funciona o sistema liberal, a lógica do “Estado Mínimo”, atualmente conclamado pela bancada do DEM e do PSDB nas casas parlamentares de nossa república é, na prática, um Estado domado pelas corporações e a serviço do grande capital. É este “Estado Mínimo” que é louvado pelos meninos do MBL, um Estado que não deve se ocupar de regular o mercado, que deve privatizar ao máximo suas fontes energéticas para incentivar a competição e o empreendedorismo. 

A lógica de um Estado Mínimo é um grande engodo, uma vez que ele só é mínimo para a sociedade, ele é mínimo apenas para ela, limitado, de modo que assim ela se torne refém do mercado. Quando os meninos do MBL fazem um alarde sobre a universidade pública e reverberam sobre o sucesso das grandes universidades privadas dos EUA (Harvard, Stanford, Princeton, Yale, etc....), quando um ministro do STF defende o financiamento privado nas universidades públicas, esquecem de dizer que o governo americano investiu em torno de 130 bilhões de dólares por meio de suas agências e departamentos em P&D enquanto aqui os investimentos chegaram ao máximo de 20 bilhões (em reais). 

Noam Chomsky, linguista e filósofo estadunidense nos dá uma boa ideia de como funciona essa lógica, Chomsky denuncia que boa parte da P&D (Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico) nos EUA são financiados por agências do governo (Pentágono, Nasa, Departamentos de Inteligência), ou seja, são financiamentos sustentados com o dinheiro do contribuinte, mas que ao final se tais tecnologias puderem gerar lucros elas são entregues as grandes corporações. Ele nos dá como exemplo o caso do GPS, algo que qualquer smartphone atualmente possui, o GPS foi desenvolvido pelo Departamento de Defesa dos EUA por meio do programa NAVSTAR em 1973. 

Outro exemplo de como essa lógica impera, um lugar onde ela fica clara como a luz do dia é no caso do petróleo. Em recente entrevista concedida ao escritor Fernando Moraes, o jornalista australiano Julian Assange, revelou por meio do Wikileaks, uma série de documentos de como o Estado Americano utilizou sua estrutura de inteligência para espionar o Brasil sobre a descoberta do Pré-sal. Escutas telefônicas em Dilma Rousseff, diretores da Petrobrás, viagens de Temer a Washington e mais. O governo dos EUA utilizou sua estrutura de inteligência que é mantida por impostos dos contribuintes para espionar o Brasil, mas para atendar a qual interesse? Evidente, aos interesses das suas grandes corporações Exxon e Chevron. 

O modelo liberal de livre mercado, de Estado Mínimo, que prega a liberdade em detrimento da igualdade, não mede esforços para manter-se em pleno funcionamento. Pouco importa que ele (o mercado) continue a fazer uso (por meio do Estado) de um tipo de colonialismo do século XIX em pleno século XXI, alimentando ditaduras na África e no Oriente Médio, usando-as em seu favor, para que as nações civilizadas possam manter seus Staus quo. Não importam os meios, se para ganhar o monopólio, deve-se fazer uso de estratégias do período da Guerra Fria, com derrubadas de governos legítimos, por meio da espionagem, da invenção de fatos e colocar seus aliados no poder. 

Esse sistema não se incomoda se chegaremos ao fim de 2017 com 200 milhões de desempregados no mundo (segundo dados da OIT), ou se a temperatura chegará aos 50ºC no hemisfério sul, tudo o que importa é que as indústrias continuem a movimentar suas máquinas. Como escreveu Zygmunt Bauman, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento, seja este coltan ou petróleo. 


Jonatas Carvalho.

Abaixo um emocionante e esclarecedor documentário sobre a situação do Congo: 


quarta-feira, janeiro 18, 2017

LIBERDADE X IGUALDADE - PARTE I

Há alguns anos o filósofo Felipe Pondé participou de um debate com Marcos Nobre, que também é filósofo, debate este mediado pelo herdeiro da família Frias, Octávio Frias de Oliveira dono do Folha de São Paulo. Pondé iniciou sua fala dizendo que entre liberdade e igualdade ele sempre haverá de escolher a liberdade, ou seja, ele sempre tende a temer mais o Estado que o Mercado. Pondé, que escreveu um dos livros mais decadentes sobre o politicamente correto (Guia politicamente incorreto da Filosofia), cuja introdução do mesmo, afirma que os aeroportos viraram um grande churrasco na laje, e, por isso viaja de classe executiva, numa demonstração clara de que despreza a igualdade. 

Seu temor ao Estado é, segundo ele, baseado na história das tentativas de regulações dos comportamentos sociais, por isso, acredita que o mundo do livre mercado sempre será uma alternativa mais realista por levar em consideração as diferenças. A igualdade, diz ele, não existe, a sociedade humana é e sempre foi carregada nas costas de uma minoria pensante, com criatividade suficiente para conduzir a história. É claro que a igualdade idealizada tal como ainda se sustenta em alguns debates não existe de fato, todavia, a liberdade evocada pelo liberalismo é tão idílica quanto. 

O dilema social entre o Estado e o Mercado necessariamente não é o mesmo que optar entre a igualdade e a liberdade. O grande desafio das democracias, segundo Pondé, é justamente equilibrar essas duas forças, não as tratar como puramente ideológicas, estar consciente de suas contradições é o caminho para o equilíbrio. Uma vez que se valorizar mais a liberdade as diferenças sociais crescem devido ao investimento na criatividade de empreender. Se se investir mais em igualdade, conclui Pondé, corre-se o risco de se criar uma sociedade de medíocres. 

O que nosso filósofo conservador em termos de política e liberal em termos de economia ignora é que as democracias não são um elemento neutro, uma balança de justiça que tenderá sempre a equalizar as forças. As democracias são capitalistas e liberalistas, a igualdade não é seu foco, apenas poucas delas conseguiram reduzir as diferenças sociais internas, ainda assim, sabemos que o preço dessa igualdade é a maior desigualdade em outro lugar. 

O mundo do liberalismo econômico de Pondé não preza pela igualdade, porque a considera um discurso ridículo do politicamente correto, afinal, desde que o mundo é mundo sempre houve desigualdades. O mundo mais justo é aquele que oferece lugar de destaque aos que são reconhecidamente melhores, os que tem mérito, aqueles que trazem consigo o fardo de carregar o mundo nas costas (esse último foi o argumento usado pelos europeus na colonização do continente africano no século XIX), e, se no final desse processo tivermos uma sociedade onde 8 de seus dignitários cidadãos possuírem mais riqueza que 3,6 bilhões de pessoas juntas, tudo bem, eles mereceram. 

Jonatas Carvalho.

domingo, janeiro 15, 2017

SOBRE A REVISTA EXAME E O MICK JAGGER

A matéria da Revista Exame de janeiro, cujo conteúdo procurou usar o astro do rock and roll, Mick Jagger, como um exemplo a ser seguido por nós brasileiros que a partir de agora teremos que trabalhar por muito mais tempo até a aposentadoria. Na chamada da manchete os editores deixam uma dica bacana: "se você se preparar pode ser divertido". É nesta pequena oração que reside a grande questão. 

Não faltaram críticas e memes à matéria, por três dias seguidos vimos manifestações nas redes sociais. O que causou todo esse repúdio? O nível de comparação que foi considerado exacerbado. Para a revista não importa se ele é um superstar britânico de uma das maiores bandas de rock de todos os tempos ou se ele recebeu o título de nobreza ao 60 anos no palácio de Buckingham das mãos da rainha Elizabeth II, Jagger pode servir de exemplo sim, e, se "você" se preparar... poderá chegar aos setenta anos produzindo e isso será divertido. 

O que faltou esclarecer na matéria é a quem ela se dirige. Quem é o "você" a quem o texto se refere? Este pronominal indefinido, este sujeito não especificado, possivelmente não é você que se irritou e reverberou sua indignação nas redes sociais. 

A revista Exame é do grupo Abril, que é o maior conglomerado de mídia da América do Sul, que pertence a poderosa família Civita, que também são donos das revistas Veja, Placar, Playboy, Quatro Rodas e muitas outras. A Abril também possui uma enorme rede voltada para o mercado de educação, ela é dona das editoras Ática, Scipione e Saraiva e sistemas de ensino como o Anglo, pH e o Wise Up. 

O que isto tem a ver com você e o Mick Jagger? Nada. O público da revista não é você, a menos que você pertença a uma classe que seja assinante da revista (ou de um pacote que contenha a Veja também), more na Barra ou na Zona Sul (se for do Rio de Janeiro), Vila Nova Conceição, Moema, Jardins ou Morumbi (se for de São Paulo), que precise de dicas de investimento, que possa pagar uma previdência privada, que queira planejar sua próxima viagem ao exterior. A menos que você seja associado a um grande escritório de advogacia, ou possui um consultório na Vieira Solto e nas manhãs de domingo vai ao Gavea Golf & Countrin Club jogar uma partidinha para relaxar, a menos que você seja um CEO de uma indústria farmacêutica, more na Vila Madalena e frequente aqueles clubes do Pinheiros em que as babás são obrigadas a usar branco para se diferenciar das patroas.

Bem, se você não for nada disto, não há porque se ofender, se revoltar, esta matéria não foi escrita pra você, o texto foi escrito para uma pequena minoria de "vocês", já você terá que procurar outro exemplo a ser seguido, sugiro meu amigo Mick aqui, trabalhador do campo, com a mente sempre em atividade e muita, mas muita alegria. 


Agora, só pra terminar, já ouviu o novo trabalho dos Rolling Stones? O Blue & Lenesome? Não? Sensacional!!!

Jonatas Carvalho.





sexta-feira, janeiro 13, 2017

A HISTÓRIA DOCUMENTADA E O GOLPE DE 1964

Em tempos que por meio das redes sociais a circulação de "verdades históricas" circulam tão mais rápido, fazendo com que a velha máxima de que uma mentira contada mil vezes se torna verdade, faz-se necessário apelar para a tradição histórica. O velho e bom rigor acadêmico que procura preservar acima de tudo a fonte histórica. Sim claro, em nome desse rigor muitos exageros ocorreram, tentativas de transformar a história numa disciplina serial matemática, positivista, totalizante, mãe das ciências sociais e humanas.
Hoje sabemos que esse rigor acadêmico ganhou outros sentidos, vimos a história se fragmentar em inúmeras possibilidades, dialogando com uma grande diversidade de disciplinas e abandonando definitivamente a inexorabilidade, mas a história ainda é a história. Ainda que a busca pela verdade pura tenha deixado de ser o precioso objetivo a alcançar, as fontes documentais ainda são as bases que sustentam a história. É claro que a própria noção de documento já não é mais aquela do historicismo, assim como, a própria noção de fonte.
A história não é, e nunca será uma ciência exata, sua riqueza reside justamente nas possibilidades de se interpretar fatos históricos. Há uma beleza singular na subjetividade do olhar do historiador, na luta incessante pela representação do passado, na análise minuciosa de cada fonte.
Como exemplo concreto trago aqui a recente história de interrupção de nossa democracia, mais conhecido como regime militar (ou Estado de Exceção), período esse que perdurou longos 21 anos (1964-1985). Apesar de se tratar de uma época recente na perspectiva de tempo histórico, ainda que muitas fontes tenham sido destruídas, outras perdidas e várias impedidas de serem acessadas por força da lei, podemos dizer que sem dúvida há uma significativa historiografia sobre esse período.
Na última década pode-se verificar uma profusão de publicações sobre esses 21 anos e inúmeras revisões na historiografia. Isso tudo foi possível principalmente pela luta por acesso aos arquivos até então proibidos.  Há atualmente arquivos públicos espalhados pelo Brasil com milhares de documentação sobre o período, há também uma expressiva quantidade de material digitalizado disponível pra pesquisa como, por exemplo, “Arquivos da Ditadura” documentação reunida por Élio Gaspari (http://arquivosdaditadura.com.br), ou os “Acervos sobre a Ditadura Militar” do Arquivo Nacional (http://www.arquivonacional.gov.br/acervos-mais-consultados-titulo/acervos-da-ditadura-militar.html), finalmente diversos acervos online sobre a memória desse período (disponibilizarei no final do texto), alguns públicos e outros de entidades sociais.
Se por um lado podemos verificar o crescimento das pesquisas no Brasil e na América Latina sobre os Estados de Exceção implantados no bojo do mundo bipolar, por outro, percebemos também um substancial volume de sites e páginas nas redes sociais evocando uma outra história, boa parte destes, baseiam-se em poucas publicações de uma direita ultraortodoxa que ainda rezam a cartilha da Doutrina de Segurança Nacional.
Enquanto movimentos como o Escola Sem Partido tentam ganhar espaço midiático acusando professores de “doutrinadores”, esses mesmos defensores alimentam sites e blogs com informações infundadas, sem materialidade.  Um grande ícone dessa geração de jovens cooptados pelo ideal liberal conservador, Olavo de Carvalho, o “Filósofo” e guru dessa gente que ainda vive o medo da ameaça comunista, chegou a caçoar da prova documental, uma gravação entre o embaixador dos EUA Lincoln Gordon e o Presidente John F. Kennedy em 7 de outubro de 1963, onde ambos discutem as possíveis estratégias sobre o que fazer com o Brasil, até que Kennedy questiona Gordon: “Você vê a situação indo para onde deveria, acha aconselhável que façamos uma intervenção militar?”. Em outro momento, o nobre guru afirma que os jornalistas brasileiros, uma boa parte da imprensa foi associada a KGB, sem mostrar qualquer prova, apenas citou um texto do Noblat que ironicamente escreveu ter trabalhado para a agência de inteligência da Rússia.
Em tempos como esse, cabe a nós, professores e pesquisadores, usar o máximo desses canais para desconstruir esse jogo midiático que busca desqualificar a história e a historiografia sem qualquer fonte documental.  Os slogans vão ganhando espaços por serem fáceis de se assimilar, tais como:  - “Mas só perseguiram quem era bandido.”  -  “A intervenção militar nos livrou de uma dominação comunista”  - “Os governos militares desse período foram moderados”. Tais slogans ganharam ainda mais espaço no período que antecedeu o impeachment da Presidenta Dilma, os adeptos da chamada “intervenção constitucional” foram úteis aos maquinadores do golpe que colocou o PMDB na presidência.


Alguns acervos digitais de História de Memória:
Acervo sobre o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS/SP) comporta a documentação produzida entre 1924, ano de sua criação, e 1983, ano de extinção, pelo principal órgão articulador da polícia política paulista.
Arquivos da ditadura: Acervo pessoal de Elio Gaspari. Entre bilhetes, despachos, discursos, manuscritos, diários de conversas travadas pela cúpula e telegramas do governo americano, seu arquivo pessoal reúne mais de 15 mil itens sobre a ditadura. São registros que se iniciam nos anos anteriores ao golpe de 1964 e seguem até os estertores do regime. Entre eles, há 10 mil provenientes do arquivo do general Golbery do Couto e Silva, como suas apreciações e análises conjunturais redigidas em três momentos distintos, de 1960 a 1968.
Memórias reveladas: O Centro tem por objetivo geral tornar-se um pólo difusor de informações contidas nos registros documentais sobre as lutas políticas no Brasil nas décadas de 1960 a 1980. Nele, fontes primárias e secundárias são gerenciadas e colocadas à disposição do público, incentivando a realização de estudos, pesquisas e reflexões sobre o período.
Documentos Revelados é resultado de anos de garimpagem nos arquivos estaduais e arquivo da Delegacia da Polícia Frderal de Foz do Iguaçu, de vasculhar  caixas e pastas AZ, repletas de mandados de prisão, informes,radiogramas, ofícios recebidos e expedidos, dossiês,relatórios e outros tipos de documentos produzidos pela burocracia policial. Reconheço que esta busca é tardia, pois no Brasil,ao contrário do Chile, Argentina e Paraguai, os arquivos da repressão estão sendo abertos fora dotempo apropriado.

A UERJ e o sonho da Universidade Pública em cheque.


Como muitos brasileiros, eu precisei pagar pela minha faculdade, trabalhar de dia e estudar no turno da noite em uma instituição privada. Nascido na pobreza e simplicidade, fazer uma faculdade nunca foi uma meta, não era uma condição natural como ocorre na vida de jovens de famílias privilegiadas (como é para meus filhos hoje). Só pude me formar já homem feito, com família constituída e filhos. Arotina de trabalhar e estudar nessas condições implica em sacrifícios para família. Uma vez formado me vi em outra situação, de que vale um diploma de graduação, uma licenciatura em uma sociedade e um Estado que não valoriza a figura do professor? Achei que não deveria parar na graduação e me preparei por mais alguns anos para entrar em um mestrado.
Foi na UERJ que esse sonho se realizou, a primeira vez que pisei naquele lugar como um aluno de pró-graduação senti que adentrava em um espaço sagrado, demorei acreditar que eu estava dentro da universidade pública. Com o passar do tempo me dei conta que eu estava em um centro de excelência, serei eternamente grato aos professores com quem convivi ali, com quem aprendi. Não posso deixar de mencionar aqui, minha querida e amada orientadoraMarilene Rosa, que na ocasião já estava com seus 25 anos de profissão, mas cheia de vida, saber e prazer em ensinar.
Mas havia mais um problema, como é que morando em outra cidade, ganhando salário de trabalhador comum eu desceria três vezes por semana para o Rio de Janeiro para estudar? Passagem. alimentação, livros e outros materiais eram imprescindíveis. Eu recebi uma bolsa de estudos que viabilizou tudo isso. Claro que a UERJ tinha seus problemas, nossas universidades mesmo nos seus melhores tempos sempre tiveram, mas ali estavam mais de 25 mil estudantes se formando em alguma profissão, se aperfeiçoando com dinheiro publico e eu fui um deles.
Ao ver o jogo perverso que hoje o Governo do Estado tenta fazer com esta instituição só posso sentir desprezo por esses representantes do Estado. Mas não apenas isto, pois me dói saber que neste ano que se inicia, milhares de pessoas que como eu que lutaram para chegar a universidade pública, hoje vivem a certeza de que sua luta por passar em uma prova de acesso será talvez e menor das batalhas que ainda irão travar.

segunda-feira, janeiro 09, 2017

“Quando todos mandam quem obedece?”: drogas, crime e fé na análise de um centro de recuperação.

O texto abaixo é parte de um artigo que escrevi com minha colega da PUC-RJ Beatriz Brandão para o 40º Encontro da ANPOCS em outubro de 2016. O recorte aqui postado é uma discussão de cunho mais teórico que fizemos no artigo, na verdade um pequeno ensaio entre a ideia de obediência a partir da noção de "governo das almas" em Foucault e a de "vocação" em Weber. 

“Aqui a casa não cobra nada para ficar, cobra só a obediência”[1]

O jovem fica ali parado diante do portão do cenóbio, por dez dias ele precisa resistir, dez dias ele provará que não quer ser um monge por um motivo qualquer. Nos primeiros dias ele será ignorado, depois desprezado e finalmente injuriado, ele sentirá o desprezo dos outros monges, que lhe lembrarão sistematicamente o quanto ele é desnecessário. Após dez dias, aquele que ali permanecer, aquele que suportou a humilhação, a repulsa, a abjeção, será aceito como postulante, então será ali mesmo desapossado de suas vestimentas, renunciará à riqueza e vestirá a roupa do convento, deixando para trás o velho homem juntamente com todos os velhos hábitos. A próxima fase de sua preparação, o jovem ficará por um ano na entrada da propriedade, em cômodos reservados para acolhimento de estrangeiros, ele ainda não pode entrar no monastério, estará sendo preparado por alguém que será nomeado para dirigi-lo. Ao final de um ano então, caso ele consiga se adequar as regras, ele finalmente será admitido no monastério, outra vez um monge mais velho se encarregará de guia-lo juntamente com mais nove jovens, dez almas que serão governadas.[2]
A história acima foi contada por Foucault em uma aula no Collège de France em 19 de março de 1980. O curso ministrado pelo filósofo naquele ano recebeu o título de “Do governo dos vivos”.  Ao longo dos anos anteriores Foucault vinha numa trajetória de tentar entender a noção de governo, nos anos de 1977 e 1978 ele se debruçou sobre a ideia de governo entre os gregos e procurou demonstrar como que com o cristianismo essa ideia passará por um deslocamento, se entre os gregos e romanos governar significava muito mais conduzir a polis, governar a cidade, com o advento do cristianismo essa noção pôde se aplicar na condução dos homens. Ele verifica um tipo de poder pastoral, que tinha por objetivo dirigir a consciência, de dirigir a alma. Esse tipo de poder pastoral teria sua origem no Oriente não cristão, como no caso do Faraó egípcio que era visto como um grande pastor, “o Rá, que velas quando todos os homens dormem, que procuras o que é benefício para teu rebanho”. Em todo caso, será com o advento do cristianismo que o governo se ocupará mais da multiplicidade do que do território. É neste sentido, que a figura do pastor é aqui emblemática, uma vez que ele se preocupa com o rebanho ao mesmo tempo que a vida de cada ovelha lhe é imprescindível, (FOUCAULT, 1978).     
            Enquanto o homem grego era conduzido ao pressuposto socrático do “conhece-te a ti mesmo (gnōthi seauton)”, no cristianismo o homem é conduzido a negar a si próprio. O ascetismo cristão tem por princípio fundamental que a renúncia de si constitui o momento essencial para acender à outra vida e alcançar a salvação. (FOUCAULT, 1982, p.304).  A renúncia de si para os monges cenobitas, significava negar todas as vontades do corpo, todos os desejos da alma, mas, ia além de somente abdicar de si mesmo, pois tratava-se de abrir mão de seu próprio arbítrio para se submeter ao arbítrio do outro sem questionar, simplesmente obedecer. O caminho da verdade é um caminho de submissão e obediência. A obediência no sentido que Cassiano descreveu deveria ser passiva, uma ordem dada não deve ser questionada, sequer deve-se pensar sua inutilidade, apenas cumprida. Para que isso ficasse claro aos novatos, era comum que seus superiores ordenassem a fazer coisas sem qualquer sentido, como foi o caso do abade Jean que por um ano irrigou um bastão enterrado e ouviu do seu superior que ele não regara direito. A obediência requer assim que se queira acima de tudo, fazer a vontade do outro, viver debaixo da permissão do outro. Cassiano lembra que os “jovens não devem deixar a célula sem que o preposto permita; mas, ele não deve nem mesmo presumir a autorização”.  (FOUCAULT, 1980, p. 110).
O poder pastoral suscitou uma série de disputas ao longo da história, tais disputas, escreveu Foucault, de Wyclif a Wesley, tinham por objetivo saber quem teria o direito efetivo de governar os homens. Nas reformas religiosas na Europa do século XVI o que se vê é uma batalha pelo pastorado, não uma batalha doutrinal, que resultou no fortalecimento do poder pastoral, dividido em dois mundos, o protestante, cujo pastorado se exerceu de modo mais meticuloso ao mesmo tempo flexível hierarquicamente e o mundo da contrarreforma, cujo o pastorado permanecera altamente controlado e hierarquizado. (FOUCAULT, 1978, p. 198). 
Quanto a análise de Foucault sobre o pastorado protestante, pode-se dizer que esta é conciliatória com aquela feita por Max Weber anteriormente, para quem a Reforma Protestante não implicou na eliminação do controle da Igreja sobre a vida quotidiana, mas na emergência de uma nova forma de controle. A Reforma significou o repúdio a um controle frouxo, quase imperceptível, em favor de uma regulamentação da conduta dos homens. (WEBER, 1905, p.12). Hennis, ao estudar Weber, diz Colin Gordon (1987), afirmou que a ética protestante associada ao “espírito do capitalismo” resultou numa condução metódica da vida, sobretudo, aquela implementada pelo calvinismo. Todavia, não é somente no calvinismo que o espírito capitalista encontrará um lugar ao sol, Weber dedica o capítulo três de “A ética protestante e o espírito capitalista” a discutir a concepção de vocação em Lutero, afirmando que tal concepção encontra-se centralizada no dogma das religiões protestantes, preceitos éticos estes rejeitados pelo catolicismo que convivia ao modo praecepta et concilia (regra dos planos). A concepção de vocação em Lutero, segundo Weber, apresentou como única forma de vida aceitável por Deus, aquela do cumprimento das obrigações impostas aos indivíduos pela sua posição no mundo, condenando o monasticismo a uma vida ditada pelo demônio. (WEBER, 1905. p. 34;35).
O pastorado pós a reforma não se ocupou mais de dirigir os homens a uma vida asceta, mas direcioná-los para uma vida produtiva. Weber vai retomar o apóstolo Paulo para demonstrar que a comunidade cristã do Novo Testamento via as atividades mundanas com indiferença devido suas esperanças escatológicas. No calvinismo, porém, tais esperanças são mantidas, mas ao invés de manifestarem no ascetismo, o eleito está no mundo para refletir a glória de Deus, o mundo existe para a glorificação de Deus, assim a obediência consiste, não na reclusão ao mundo e sim na melhoria deste. (WEBER, 1905. p. 47). A parábola do servo fiel (ou prudente em algumas traduções bíblicas) é resgatada pelos reformadores, este é o servo a quem o Senhor confiará todos os seus bens e zelará por eles e os multiplicará, já o servo infiel é aquele que na ausência de seu Senhor espancará seus companheiros e se prestará a comer e embriagar-se. (Mateus 24:45-51/Lucas 12:41-46). A vida precisa ser santificada, o que significa ocupar-se apenas com aquelas coisas que são da vontade de Deus, a vida do santo deve ser direcionada para o fim transcendental, isto é, a salvação. Justamente por isso ela será racionalizada nesse mundo e totalmente dominada pelo objetivo de aumentar a glória de Deus sobre a terra. (WEBER, 1905. p.52).
As descontinuidades históricas ocasionadas pela reforma no modo de como se deve governar, no modo como os homens devem ser conduzidos, não significam ao final uma ruptura com o ascetismo, mas sim um deslocamento para a vida asceta. Se em Cassiano o ascetismo é a renúncia do mundo em prol de uma vida de disciplina, obediência e oração, no protestantismo o que se renuncia é o isolamento do mundo. A riqueza e o lucro são condenáveis somente quando adquiridos para o proveito próprio, para o gozo e o descanso, uma vez que “o repouso dos santos se encontra em outro mundo”.  Atitudes como diversão ou até mesmo dormir mais do que oito horas por dia são condenáveis moralmente, porque o tempo é precioso para Deus. O poder pastoral no pietismo, no puritanismo, dirige o homem a ser zeloso, um zelo que implicava em seguir mortificando os desejos vis da carne, em nome da honra de servir em Deus no mundo refletindo sua grandeza. Isso só seria possível por meio de uma vida próspera, querer ser pobre, seria o mesmo que querer ser doente, trabalhar e prosperar é demonstrar a manifestação de Deus. (WEBER, 1905. p. 75-77).
Tudo que pode desviar o homem desse caminho, tudo que pode fazer dele um servo infiel, e aqui vemos incluído o vício, deve ser contido. Não é por outra razão que se verifica no advento do proibicionismo no século XIX nos EUA, dentre outros fatores, o recrudescimento dos ideais puritanos, isto é, o reavivamento do fundamentalismo religioso, que denunciava a degradação moral e a desordem promovidas pelos saloons. Recebendo apoio de vários setores da indústria e de empresários, do movimento proibicionista viu-se surgir o partido proibicionista. Assim a proibição do álcool nos EUA em 1920, teve como base a ideia de degradação somada a da improdutividade, ou seja, a junção da ética protestante e o espírito capitalista. (CARVALHO, 2013, p.26). 
 Ao voltar ao objeto desse artigo podemos aqui entender os centros de recuperação (CRs) como espaços cuja ética protestante e o espírito capitalista de Weber se fez presente uma vez que tal espaço se apresenta como solução para recolocar o indivíduo de volta ao mundo como sujeito produtivo. Na lógica protestante o “drogado” seria percebido como um asceta que renunciou ao mundo abstendo-se de suas obrigações para com este. A recuperação implica em retomar sua vocação na terra como a mais absoluta vontade de Deus, a ética protestante coloca assim o ócio, a preguiça e tudo o mais que provoque a improdutividade como antinatural quando não, de ordem demoníaca. O princípio da vocação colocada na reforma protestante insere o homem na produtividade, na prosperidade e no labor.
Mas pelo menos uma coisa é indiscutivelmente nova: a valorização do cumprimento do dever nos afazeres seculares como a mais alta forma que a atividade ética do indivíduo pudesse assumir. E foi o que trouxe inevitavelmente um significado religioso às atividades seculares do dia a dia e fixou de início o significado de vocação como tal. O conceito de vocação foi, pois, introduzido no dogma central de todas as denominações protestantes e descartado pela divisão católica de preceitos éticos em praecepta et consilia. O único modo de vida aceitável por Deus não era o superar a moralidade mundana pelo ascetismo monástico, mas unicamente o cumprimento das obrigações impostas ao indivíduo pela sua posição no mundo. Esta era sua vocação. (WEBER, 1905. p. 34)

Ao retornar as narrativas deixadas por Cassiano que foram retomadas por Foucault no curso “do governo dos vivos” em 1980, encontramos mais uma ilustração interessante, sobre um monge que por cinquenta anos absteve-se radicalmente da vida mundana. Em certa fase de sua santidade ele acreditou que poderia se jogar num poço e que os anjos do Senhor o salvaria antes mesmo que chegasse ao fim do poço. O monge não morreu mas sofreu lesões e fraturas graves. Cassiano utiliza-se do exemplo apenas com um objetivo, para dizer que o sacrifício não é bom quando não está submetido a uma situação de obediência.
É aqui que possivelmente encontramos as continuidades históricas entre o ascetismo cristão monástico e o ascetismo pós reforma. Se pudemos verificar o deslocamento do modo de conduzir os homens, da direção em que serão governados. Se pudemos até aqui ver que o ascetismo protestante visa a renúncia dos desejos e aos prazeres da carne, sem negar ao mundo. O que resta de comum nestes dois modelos de pastorado? A obediência. O interno em um CR de disciplina pentecostal é conduzido a uma vida de obediência, não há caminhos alternativos para mudança de vida, só existe um caminho possível. Se na história de Cassiano a crença de que Deus enviaria seus anjos para evitar que o monge se chocasse com o fundo do poço, o governado em recuperação em um CR é levado a crer que chegou ao fundo do poço devido a seus pecados, por “dar ouvidos” ao diabo, por se entregar aos prazeres do mundo e só Deus pode lhe retirar do fundo do poço. Para isso, é necessária uma vida de total abdicação do mundo, uma mudança radical do comportamento e uma submissão ao seu pastor que o guiará ao caminho da cura e da recuperação.   


[1] Fala de um dos hóspedes no culto de comemoração do aniversário da igreja.
[2]  Aula de 19/03/1980. Foucault inicia a aula relatando as narrativas de João Cassiano sobre as instituições cenobitas.