sexta-feira, outubro 28, 2022

FAKE NEWS E A PRODUÇÃO DO MEDO: UM CASO REAL.

Após uma pequena temporada em São Paulo, ontem estive em Niterói para almoçar com uma velha amiga. Ao chegar, fiquei feliz em reencontrar G......., diarista que conheço há muitos anos. G...... é uma criatura doce e meiga, uma dessas mulheres guerreiras que lutam diariamente pela manutenção da família. Discreta e de uma simplicidade singular, G....... é negra, evangélica e vive na periferia da cidade. Ela puxou papo comigo sobre as eleições no próximo domingo. Eu entrei no papo e brinquei se ela estava pronta para vota no 13, seu semblante imediatamente transpareceu um receio, então ela confirmou:

Estou na dúvida. Perguntei o que lhe incomodava, ela não quis dizer, ficou inibida. Disse-lhe que podia falar sem medo, mas ela insistiu em não dizer, apenas dizia que estava muito indecisa. Como nos conhecemos há anos, tomei a liberdade de seguir com o questionamento:

Fale comigo meu bem, do que tens medo? Ela riu sem graça. Então eu disse:

G......., você tem medo que o Lula feche as igrejas, é isso? Ela respondeu:

É isso. A gente escuta muita coisa e não sabe em quem confiar.

Eu lhe disse que essa história de fechar igrejas era uma grande mentira. Contei-lhe que Lula foi presidente por oito anos nesse país e as igrejas evangélicas se multiplicaram nesse período, disse-lhe que foi Lula que sancionou a Lei de Liberdade Religiosa em 2003. Ela, demonstrando mais tranquilidade rebateu:

Eu ouço por ai que naquela época a gente tinha mais condições né? Não era essa dificuldade que é hoje. G........ tem mais de 50 anos, então eu indaguei:

Minha querida, você se lembra dessa época. Não lembra? Então ela concordou.

Lembro, a gente recebia o salário, dava pra ir no mercado e comprar o que precisava, hoje não dá mais, tá muito difícil.


Fiquei pensando nesse meu diálogo com a G.........., sobre a velha tática fascista da produção do medo. A extrema direita, com sua avassaladora máquina de propagação de mentira, sabe exatamente como e onde atingir as massas, eles estudam suas fragilidades e carências atacando fortemente essas vulnerabilidades.

No caso da G........., vejam, seu impasse se tratava de escolher entre voltar a comer melhor ou ver sua igreja ser fechada. Era isso que passava na cabeça dela. Ela tem consciência de que seu poder de compra era muito melhor na era Lula, isso está na sua memória afetiva, mas encheram sua cabeça de dúvida, culpa e medo. Votar no Lula poderia comprometer algo que lhe é tão sagrado quanto se alimentar com dignidade: sua fé. O direito de congregar com seus irmãos de fé lhe é tão vital quanto partilhar o pão em casa. G.......estava sofrendo, não sabia que lado seu “trairia”. Eu lhe disse que se esse era seu problema, que ela podia votar 13 de consciência tranquila, porque ninguém lhe tiraria seu direito de exercer sua fé e que sua igreja seguiria aberta para que ela e todos os outros membros tenham a liberdade de culto garantidas. Por fim, disse-lhe que se ela escolher o 13 estará escolhendo um governo onde ela poderá ter as duas coisas, a igreja aberta e a comida no prato.

Obs. Fiz alterações sobre os lugares e as poessoas para preservar a identidade de G....., mas os diálogos são reais. 

Jonatas Carvalho. 

   

domingo, outubro 23, 2022

A estátua da liberdade e o papagaio de pirata.

Esta reflexão é dedicada aos que justificam seu voto no candidato à reeleição pela extrema direita, sob alegação de princípios como: "liberdades econômicas", "moral e bons costumes" ou "valores cristãos". Já escrevi aqui recentemente sobre o problema das convicções,em que tratei da dificuldade do convicto, mesmo diante de tantas evidências, recusar a ver o erro de sua escolha. Já dizia um velho adágio, quando estamos tomados por uma convicção não conseguimos enxergar um não, mesmo que este seja do tamanho de um elefante, mas vemos com empolgação um sim no tamanho de uma borboleta. 

Vou por partes na tentativa de elucidar o quanto de engano há nas alegações acima. Liberdades Econômicas: 

A tese da liberdade econômica é muito bem construída no marketing, mas ela foi produzida pelas grandes elites econômicas, cujos interesses são absolutamente distintos de nós, seres humanos normais que lutam com dificuldades para pagar as contas ao final do mês. O que querem os defensores das liberdades econômicas? Que o Estado para de se meter nos seus negócios? Promover a livre iniciativa? Gerar uma sociedade mais competitiva? Nenhuma das opções. Isso é o que está no panfleto. Na prática, trata-se sempre de uma única coisa: ampliar o lucro. Para isso, esses grandes senhores de bem, defensores das liberdades econômicas, fazem fortunas a custa do Estado e da exploração da classe trabalhadora. 

Vejamos o caso do Sr. Luciano Hang, um cidadão que fez 57 operações de empréstimos no BNDES entre os anos de 1993 e 2014, logo boa parte do dinheiro que ele pegou para ampliar seus negócios foram ao longo do governo do PT (2003-2016). Ainda assim, esse senhor que se veste como uma maritaca, mas é um típico papagaio de pirata, é capaz de pedir ao secretário de Fazenda do Estado de Santa Catarina que "atrase os salários dos professores,"que "demita a metade dos diabos dos professores!" Para que possam lucrar vale tudo, sonegar milhões em impostos, atacar a classe trabalhadora e os servidores públicos, como é o caso dos professores. 

É assim que pensam essas "elites", ou aqueles que estão a seu serviço, como é o caso de Paulos Guedes que na fatídica reunião ministerial de 2020 disse: "nós já botamos a granada no bolso do inimigo, dois anos sem aumento de salário." Nesta semana, o ministro da economia assinalou sobre sua intenção de desindexar o salário mínimo, o que impactaria fortemente os aposentados e pensionistas. Há projetos do reduzir o valor do FGTS e de "flexibilizar" as horas extras de quem trabalha nos domingos e feriados, este último barrado no senado em 2019, mas nada impede de se buscar novamente em um próximo mandato. 

O governo defensor das liberdades econômicas, é o governo que busca destruir as garantias trabalhistas, alegam que tais ações estimularia mais empregos, mas em que condições? O trabalho que cresce vertiginosamente no Brasil desde 2017 é o informal, milhões de brasileiros literalmente sozinhos, absolutamente abandonados a própria sorte em um mundo desigual. Enquanto isso, nunca se viu aumentar tanto o número dos super-ricos ou milionários por aqui. Quando vemos "patrões" pressionando ou mesmo ameaçando seus funcionários a votar a favor de seu candidato, eles estão defendendo a si próprios, e saibam, isso não significa defender seus empregados, ao contrário, significa que esses patrões sabem que, continuando o projeto que ai está, a possibilidade em reduzir ainda mais o "gasto" com o empregado é maior. Reduzir o "gasto" com o empregado é, na prática, retirar ainda mais direitos dessa classe.

Luciano Hang, não é a elite, ele é um serviçal da verdaddeira elite, mas segue suas práticas, fazendo sua fortuna por meio de financiamento público que vira calote público, portanto, onera as classes populares duas vezes, quando não paga o dinheiro que é fruto de impostos pagos por brasileiros/brasileiras e quando trabalha para retirar direitos trabalhistas de seus empregados. Mas e as outras pautas, as de moral e bons costumes, as dos valores cristãos? Bem, quem age assim, não se pauta nem em moral nem em qualquer valor, estamos falando dos verdadeiros parasitas de nossa sociedade.

quinta-feira, outubro 13, 2022

DISSONÂNCIAS COGNITIVAS E A PRODUÇÃO DA (PÓS)VERDADE.

 

É quase óbvio supor que as pessoas constroem suas bases ideológicas lingado-as a um determinado conjunto de racionalidades que lhes dão sentido existencial. Escrevo “quase óbvio”, porque realmente isso nos parece evidente, mas não é tão simples assim. Nós humanos, justamente porque necessitamos dar sentidos e significados ao que fazemos, uma diferença que, ao que parece, nos singulariza ante as outras espécies vivas, acabamos por nos envolver em toda sorte de explicação existencial/espiritual. A coerência, elemento da racionalidade, não é exatamente nossa grande característica, somos muito mais que elaborações racionais. Não é por outra razão que estranhamos quando o outro se sente absolutamente confortável diante de ideais que para nós não fazem sentido.

João Cezar de Castro Rocha, professor de literatura comparada (UERJ), autor de “Guerra Cultural e Retórica do ódio: Crônicas de um Brasil Pós-político” (2021), recentemente escreveu um artigo em que trabalha com duas categorias conceituais na intenção de explicar o que se convencionou chamar de “bolsonarismo”. As categorias são: Dissonância Cognitiva Coletiva e Midioesfera Extremista. Castro Rocha retirou a noção de Dissonância Cognitiva do psicólogo social Leon Festinger, autor de “A theory of cognitive dissonance”(1957). Para resumir, em 1954, Leon infiltrou-se em uma seita estadunidense denominada The Brotherhood of the Seven Rays (A irmandade dos sete raios), sua líder, Dorothy Martin, profetizara que no dia 21 de dezembro daquele ano, um dilúvio destruiria o mundo, mas seus membros seriam salvos por um disco voador que viria de um planeta chamado Clarion.

Quando o dia chegou e o mundo não inundou, muito menos surgiu um disco voador para o resgate, o que você imagina que aqueles fiéis fizeram? Se você pensou em algo como dar uma surra na Dorothy ou abandoná-la por lá sozinha, você se enganou. Festinger detalhou essa experiência em "When Propechy Fails" (Quando falha a profecia - 1956). Os fiéis encontraram uma alternativa para lidar com a dupla frustração, cuja conclusão foi: o dilúvio não ocorrera, justamente porque, a força da fé de seus membros conseguiu evitar o que o pior acontecesse. A paz voltou a reinar na Irmandade dos sete raios. Se você achou essa solução sem pé nem cabeça, coisa de maluco, eu vos digo, isso é mais comum que imaginamos. Tal reação não é privilégio de seitas religiosas/espiritualistas, estamos no campo das convicções humanas. Nietzsche, lá no século XIX, já nos alertara sobre esse tema ao dizer que as convicções são mais perigosas para a humanidade que a mentira, porque o mentiroso sabe que está mentindo, mas o convicto tem a certeza de que detém a verdade. Creio que não necessito listar aqui toda a violência produzida ao longo da história humana, em defesa de certas verdades.


Francisco Goya - El Aquelarre (1798)
A dissonância cognitiva é entendida como um desconforto psicológico, de acordo com Festinger, esse desconforto se torna o elemento motivador que faz com que o indivíduo busque meios para reduzi-lo, de modo que consiga restituir a harmonia cognitiva. Para reduzir a dissonância, o sujeito evitará a todo custo informações que poderiam potencializá-la, desta forma, procurará informações confluentes com seu conjunto de crenças.

Todos somos em alguma medida afetados por dissonâncias cognitivas, há um jeito moderado de lidar com isso, basta você não ser alguém com fortes convicções. Pessoas abertas a conhecer novas interpretações da vida, outros sentidos e significados para suas questões, no geral, ajustam sua cognição. O convicto, porém, é um apaixonado. Para o grande educador e psicanalista, Rubem Alves, o convicto, apesar de ter dois ouvidos e uma única boca, ele é incapaz de ouvir, só quer falar, apenas a sua verdade interessa. A questão que se levanta é: onde e como tal verdade é produzida? Ela estaria em algum lugar reservado e somente uns poucos iluminados seriam capazes de alcançá-la? Ela, a verdade, possui característica sagrada, reveladora, única e imutável? Foucault nos lembra em “A verdade e as formas jurídicas”(1973), que a verdade é desse mundo.

Voltando ao artigo de João Cezar de Castro Rocha, a noção de dissonância cognitiva de Festinger, é associada ao conceito de “coletivo”. O objetivo é produzir uma ferramenta analítica que possa abarcar um grupo maior; estamos falando de milhões de brasileiros. O outro conceito, “Midioesfera extremista”, é introduzido para complementar a análise. Se o sujeito procura reduzir o desconforto da dissonância cognitiva evitando informações que confrontam suas crenças e valores, portanto, intensificam o desconforto, logo deduz-se que ele buscará informações que lhe traga conforto. O “bolsonarismo”, de acordo com Castro Rocha, é alimentado cotidianamente por uma “Midioesfera” própria, capaz de aplacar a dissonância cognitiva que resulta da exposição das contradições (falha da profecia), que circulam em outras esferas midiáticas. Não é por outro motivo que a grande mídia passou a ser demonizada, acusada de estar associado as ideologias “comunistas” ou “globalistas”. Os dois principais veículos da “Midioesfera extremista” seriam o whatsapp e o telegram.

Apesar de me parecer uma análise altamente perspicaz, ela não aprofunda uma questão essencial, que é a da identificação desses indivíduos com tais ideais. Isto é, o que faz alguém definir quais ideias fazem mais ou menos sentido? Quais elementos internos estão por trás da escolha por um ideal? O que motiva alguém abraçar uma causa? Eu iniciei esse texto desfazendo a crença na racionalidade, porque se fosse algo puramente racional, possivelmente teríamos mais homogeneidade no pensar. Aqui eu entro com outra importante contribuição, a de Mauro Lasi, doutor em Serviço Social (UFRJ). Menciono aqui um ensaio escrito por Lasi em 2018, intitulado “A psicologia de massas do fascismo ontem e hoje: por que as massas caminham sob a direção de seus algozes?” Lasi percorre as teses sobre a origem do fascismo, escritas por Wilhelm Reich (1897-1957), psicólogo e psicanalista, que quando jovem fora assistente de Freud. Reich estudou o fascismo, mas não somente isso, ele foi perseguido por sua ascendência judaica. Em 1933 publicou “A psicologia das massas do fascismo”, obra em que procurou justamente tentar explicar como a classe trabalhadora, oprimida e explorada, aderiu o nacionalismo fascista em vez de promover a revolução. Os marxistas de então imaginavam que a crise que se instalara na Europa entre 1923 e 1933, inevitavelmente conduziria as classes trabalhadores aos ideais de esquerda, mas Reich defendia que não existe necessariamente uma relação entre crise econômica e ideologia. Segundo ele, o próprio Marx não compreendia que as condições materiais determinassem a consciência de classe.

O fascismo, segundo Reich, no caso da sociedade alemã, teria se beneficiado da formação educacional burguesa calcada em dois pilares: um arranjo familiar baseado na repressão aos impulsos sexuais; e o caráter da “classe média baixa”. O resultado dessa combinação é “o conservadorismo, o medo a liberdade, em resumo, a mentalidade reacionária”. Para não me estender muito por aqui, para Reich “o fascismo, na sua forma mais pura, é o somatório de todas as reações irracionais do caráter do homem médio”. Ou seja, estamos falando de uma sociedade que recorre ao chamamento da ordem, porque no processo de interiorização das relações sociais fomos marcados por uma moral castradora (Nietzsche).

O fascismo dialoga como esse apelo a ordem moral, os milhões de eleitores de Bolsonaro, não são “bolsonaristas”, mas se identificam com o slogan “Deus, Pátria, Família e Liberdade”, porque esses temas estão intimamente ligados ao recalque das pulsões humanas. Não é por outra razão, que os “escândalos” de origem sexual, ao lado da corrupção, são os que mais derrubam a popularidade politica.

Há um último ponto que quero trazer, porque a noção de Dissonância Cognitiva Coletiva, desenvolvida para ser aplicada a um grupo considerado extremista, pode fazer com que achemos que, se não nos encaixamos em polos extremos estamos livres de sofrermos o mal-estar da dissonância cognitiva. Minha questão é a seguinte: Se você é um cidadão ou cidadã, que vive no Brasil, EUA, ou qualquer país da Europa, você consome um conjunto de informações que eu chamarei aqui de “Midioesfera Ocidental”, me apropriando aqui de um dos conceitos de Castro Rocha. Isso significa que se você é alguém que acorda com o telejornal, assina os formatos online de sites de notícias, daquilo que chamamos de grande impressa, você é alimentado cotidianamente com “informações jornalísticas” que expressam o mundo do ponto de vista ocidental. Essa imprensa oficial ocidental massifica ideias e noções em nossas mentes até que estas sejam naturalizadas. Para ficar em um exemplo, quando se trata de conflitos internacionais, envolvendo ocidente e oriente, tudo que nos chega aqui é pensado a partir de Bruxelas, o que podemos chamar de modo OTAN de comunicar, essa comunicação é replicada por todos os veículos e mídias ocidentais.

Essa “imprensa internacional”, são condutoras das verdades geopolíticas como quer o Ocidente, assim indivíduos como Osama Bin Laden e Saddan Hussein nos parecem sujeitos altamente perigosos e países como Irã, Coreia do Norte e China representam risco ao “mundo democrático”. Temos como exemplo atual a Rússia. As sanções aplicadas ao país recebe notícias favoráveis na “imprensa internacional”, não foi diferente com àquelas impostas a Cuba, Venezuela e Nicarágua. Sempre que nos deparamos com visões opostas a “Midioesfera Ocidental”, nossa dissonância cognitiva se manifesta, o que fazemos para resgatar a harmonia? O que, em geral, fazemos quando a “profecia falha.” Como quando se descobriu que o relatório de armas químicas que justificou a invasão ao Iraque em 2003 era falso? Fazemos o que fizeram os membros da “Irmandade dos Sete Raios”, encontramos novas formas de justificar nossas crenças. Mas o fazemos buscando nas informações de a “imprensa internacional” nos fornece, a “Midioesfera Ocidental” está ai para isso, harmonizar nossa consciência, garantindo que estamos do lado certo da história.

Jonatas Carvalho

sexta-feira, outubro 07, 2022

A MINHA BANDEIRA JAMAIS...TEREI UMA.

Sempre me senti insuficientemente anarquista para não votar e anarquista demais para defender a bandeira de um partido ou um certo conjunto de normas e ideias. Por anos trabalhei com políticas públicas, não faltaram convites para me filiar a certos partidos, é tentador, por vezes eu considerei, mas acabei recusando todas. 

A vida toda eu me sensibilizei com questões relacionadas ao lado mais oprimido da história humana. Ainda garoto, a história da escravidão me comovia, para mim aquilo era mais que um passado dos homens narrado em umas páginas do livro didático. Não conseguia acreditar que homens, mulheres e crianças foram convertidos em mercadoria, que lhes tiraram a própria humanidade. 

Embora eu nunca tenha sido muito corajoso, sempre evitava os valentões e os populares, vez ou outra eu me enfiava numa confusão onde eu julgava ter rolado uma injustiça. A maldade humana me afetava. É possível que tenha sido por isso que eu larguei tudo aos 15 anos e meti o pé da estrada, eram meados dos anos de 1980, eu me tornei um hippie fora de época, mas um hippie. Foi então que me dei conta que a liberdade se tornou algo que eu nunca abriria mão. Nunca admiti ter uma vida dirigida por quem quer que fosse. Mas a liberdade total tem um preço alto. 

A dicotomia liberdade/igualdade, ou pelo menos o modo como a questão fora colocada por certos pensamentos ditos de direita e de esquerda, me causou muito mal-estar por anos. Foi preciso muita leitura e maturidade para compreender que esse conceitos são históricos e não necessariamente precisam estar em oposição. É possível conceber uma sociedade mais igualitária sem sacrificar a liberdade. Se conseguirmos construir individualidades valorizadoras do comum, que concebam que quando há injustiça social e oportunização desigual o seu "eu" estará comprometido apenas consigo, um "eu" pobre e egoísta. O "eu" só faz sentido quando existe um nós, o outro não está no mundo para ser subjugado, mas para cooperar e construir junto consigo um mundo bom para todos. Qualquer liberdade que desconsidere isso, não é liberdade, é egocentrismo. 

Toda minha vida foi um desencaixe, os ideais mais a direita e mais a esquerda nunca me capturaram. Antes que você pense que eu seria um tipo de "isentão" ou de "centrão", vou lhe antecipar, não sou. Essas categorias esquerda, direita, centro-esquerda, extrema isso ou aquilo, são voláteis, já tiveram significados muito distintos historicamente. O que não significa que não podem ou devem ser usadas, a questão é que são usadas sem qualquer critério, em especial nas redes sociais. 

Então vejamos, sou um defensor da liberdade e da igualdade de condições. Sou antiproibicionista e abolicionista. Tenho muito de anarquista em mim, como já citei acima, mas diante da conjuntura socioeconômica (sistema capitalista neoliberal), defendo um Estado plurinacional, multiétnico e multigênero. Sou favorável a uma sociedade de soberania popular não hierarquizada, sem tronos, oligarquias, monopólios ou oligopólios. Uma sociedade cooperativista e associativista, detentora e administradora de seus recursos naturais e zeladora de sua biodiversidade. Que seus mais importantes valores sejam o respeito absoluto à dignidade humana e à diversidade.

Para aqueles que julgarão minha forma de ver a vida utópica demais, eu lhes pergunto: e nosso atual modo de viver em sociedade não é demasiadamente distópica? Consideras normal um mundo com tamanha concentração de riqueza e terras? Achas que a fome e a miséria são inevitáveis? Acreditas que as guerras por petróleo e outros recursos naturais fazem parte do jogo geopolítico? A naturalização de todas essas aberrações sociais é o grande mérito das elites mundiais. A produção de subjetividades individualizantes, "cada um por si", nos compele, como sugeriu Georg Simmel (1858-1918), a tomar uma "atitude de reserva" (ou blasé), diante dos eventos que se enfileiram no dia a dia.

Por todas essas questões sou incapaz de hastear qualquer bandeira, pelo menos não encontrei até aqui uma que eu realmente queira. Se minha bandeira não é vermelha, muito menos é verde-amarela, quem sabe, uma multicor me cairia bem. Mas como eu escrevo esse texto em plena disputa eleitoral, em que dois projetos políticos amplamente antagônicos se enfrentam e polarizam o debate, não posso me omitir, sempre estarei ao lado daquele projeto mais próximo aos meus ideais e o atual governo é a contradição total de tudo que escrevi acima.

  Jonatas Carvalho. 

      







    

quarta-feira, outubro 05, 2022

O MESSIAS ANTICRISTO.

Sou filho de um cristianismo, escrevo assim porque entendo que não existe cristianismo no singular, mas cristianismos. Minha primeira decepção na igreja foi a exclusão de uma jovem de 16 anos, seu pecado foi ter engravidado. Éramos amigos, eu tinha a idade dela, chorei. Há décadas que eu deixei a fé cristã, só me desvinculei da igreja após anos estudando teologia. Entendi que a institucionalização do cristianismo é uma contradição ao próprio cristo.

Hoje quando vejo certos crentes conclamando seus irmãos e irmãs de fé a votarem em Bolsonaro, porque sua governança é alinhada com os valores cristãos, me pergunto que valores seriam esses? Jesus ao ser interpelado por um escriba, disse haver apenas dois mandamentos, o primeiro: Amar a Deus de todo o teu coração, de toda tua alma e de todo o teu entendimento", O segundo: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo." O amor é, portanto, o único valor aqui que vale, todo o resto é fruto da institucionalização da fé. A igreja, ao defender seus próprios interesses, deixa de lado o Cristo.

Quaisquer valores que não estão baseados no amor, são apenas vaidade humana. Qual cristão irá me dizer que o "Messias" presidente segue o 2º mandamento? O seu "Messias" é um anticristo. Vou lembrar outra fala de Jesus: "mas é o que sai da boca que contamina o homem". Da boca do “Messias” presidente só se ouve palavras de ódio, de desprezo e de preconceito. Os valores cristãos que os “cidadãos de bem” tanto querem conservar, são incompatíveis com o próprio Cristo. Vai-se a loucura por questões como homoafetividade ou transexualidade, mas o aumento exponencial da fome e da miséria que aflige milhares de famílias brasileiras, não sensibiliza ao mesmo nível. Esse cristianismo que vemos crescer em apoio ao presidente, é excludente e não tem nenhuma relação com Jesus. A marcha para Jesus que percorreu as ruas tendo uma arma como monumento, é a própria representação do anticristo.

Sei muito bem que há muitos cristãos que não compactuam com o “Messias” de Malafaia de outros manipuladores da fé. Sei que há um cristianismo inclusivo, ecumênico e tolerante no Brasil. Elegemos um representante deste tipo de cristianismo no último domingo. Que o amor supere todo o ódio destilado pelo nosso falso “Messias”.

Jonatas Carvalho

O BRASIL PROFUNDO E AS ELEIÇÕES EM 2022.

Passei os últimos dois dias fazendo análises sobre as eleições. Ouvi, assisti e li diversos analistas das mais diferentes áreas de conhecimento, de múltiplos espectros políticos, de modo que eu pudesse chegar a alguma conclusão sobre o que representou esse primeiro turno. Não foi fácil, não é. Na verdade, para um historiador é praticamente impossível, fomos ensinados que só entenderemos esse momento de fato, no futuro. A história, porém, não é fator impeditivo de compreensão da sociedade no tempo presente, mas uma aliada.

Nas linhas abaixo estão expostas minhas observações, reflexões e posições. Não procuro aqui ser dono de qualquer verdade, não tenho a intenção de convencer alguém, não pretendo firmar posicionamento.

Diversas formas de explicação do fenômeno primeiro turno foram levantadas. A primeira que quero considerar é aquela que coloca em dúvida o processo eleitoral. Esta tem dois lados, ao lado da extrema direita, acionada pelo próprio presidente, temos a insistência na fraude eleitoral, a desconfiança no voto eletrônico não impresso. No outro lado, uma parte da esquerda que alega que essa mesma extrema direita capturou da esquerda a pauta do voto auditável. Segundo este lado, o sistema eleitoral no Brasil estaria nas mãos de um grupo estratégico liderado por militares que controlam todo o processo. O caso Wilson Witzel, nas eleições para governador do Rio de Janeiro em 2018, seria um exemplo de manipulação das urnas.

Favela Jardim Peri Alto - Foto de Lalo de Almeida 

Outros preferiram explicar o resultado do primeiro turno atacando a incapacidade dos institutos de pesquisa em capturar o cenário real de intenção de votos dos eleitores. Aqui tivemos um grande número de analistas, incluindo os ligados aos grandes veículos de comunicação. Estas análises são de amplo espectro, envolvendo jornalistas, cientistas políticos, sociólogos, analistas de estatísticas e outros.


No caso da defesa das fraudes eleitorais, devo dizer que eleições são passíveis de serem fraudadas em todo o mundo. O Brasil, particularmente, tem uma longa história de fraude eleitoral, mas também tem uma longa história de golpes de Estado contra os resultados nas urnas. Dito isto, creio que tal tese não explica um certo número de vitórias a grupos políticos contrários ao sistema vigente. No caso eleições presidenciais, por exemplo, Lula virou votos em mais de seiscentas cidades que votaram em Bolsonaro em 2018. Quanto as supostas falhas dos institutos de pesquisa, não pretendo me prolongar aqui, porque isso requer um texto específico sobre o assunto, basta dizer que as pesquisas de diversos institutos capturam bem a intenção de voto em Lula, já no “Messias” se distanciaram, tal distância, no entanto, não foi generalizada e sim localizada, em especial no sudeste e sul. A QUAEST, por exemplo, em sua última pesquisa, concluída em 1/10, véspera das eleições, perguntou aos entrevistados: O que você tem mais medo? “A continuidade de Bolsonaro” ficou com 48% e a “Volta do PT” com 40%. O fator medo é motivador, um medo que pode ter perfeitamente movimentado o chamado “voto útil” da tal “terceira via” para Bolsonaro ou ainda o tal “voto envergonhado”. Não precisa ser cientista político para ver que muitos votos, até então declarados a Tebet, Ciro e Soraya migraram para o atual presidente, tal migração não explica tudo, mas dá conta de parte significativa da diferença. Ainda sobre a “incapacidade” de capturar certas motivações dos eleitores, Antônio Lavareda, cientista político e sociólogo, lembrou que FHC, nas eleições de 1994 (primeiro turno) aparecia com 48% das intenções de votos na véspera, mas teve apenas 36,22% nas urnas. Sobre Lula ele escreveu: “Lula, quando por 1,4% deixou de ganhar no primeiro turno a eleição de 2006, tinha 46% sobre o total na véspera e nas urnas a abstenção lhe tomou nove pontos e ele obteve 37,07% do total de eleitores naquele ano.” Essas distâncias entre pesquisas e urnas ocorrem historicamente aqui e no mundo todo.

Mas você confia plenamente nos institutos de pesquisa? Não confio plenamente em nada, penso que os institutos são parte integral do grande capital, mas eles precisam usar metodologias minimamente confiáveis, pois são varridos por pesquisadores de vários espectros políticos. O que faz um Datafolha, por exemplo? Ele verifica se as manipulações com máscara de jornalismo produzidas pela grande mídia estão sendo digeridas pela sociedade. A grande mídia sempre esteve e sempre estará ao lado do grande capital.

Passemos as análises sobre quem perdeu e quem ganhou neste primeiro turno. Muitas foram as manifestações de “ressaca moral”. Entre os eleitores de Lula, a crença de uma vitória no primeiro turno ganhou força, como diz o velho ditado, grandes expectativas podem gerar grandes frustrações. O que a esquerda demorou um pouco para perceber foi que do outro lado havia algo parecido, não foram poucos os eleitores do “Messias” indignados, os grupos de watsapp davam 70% para o atual presidente. Ao lado da esquerda e centro-esquerda notava-se desânimo com as confirmações da ala ultradireitista eleita para o senado. A extrema direita esbravejava com a virada de Lula e denunciava a fraude. Os jornalistas da grande imprensa trataram de afirmar que Bolsonaro se saiu melhor, o grande vencedor. Então as análises mais racionais começaram a tranquilizar os eleitores de Lula. Vamos considerar apenas duas aqui:

Lula bateu o recorde de votos numa eleição com 48,43% de votos válidos (57,2 milhões de votos);
É o primeiro caso que um candidato sai na frente do candidato que disputa a reeleição.

O “Messias”, mesmo contando com a máquina pública não conseguiu deter o avanço de Lula. Sinal de incompetência da campanha de Bolsonaro? Ou a capacidade extraordinária de Lula em estabelecer alianças? Se o petista venceu em 14 Estados e 11 capitais, Jair levou 12 Estados mais o DF e 15 capitais. Para a surpresa da extrema direita, Lula ganhou de Jair na cidade de São Paulo e Porto Alegre, por outro lado, o “Messias” levou vantagem em Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

Quanto ao legislativo, nunca tivemos um legislativo progressista no Brasil. O conservadorismo sempre foi maioria nas câmaras e assembleias legislativas do país. O fenômeno que se pode observar é o crescimento do ultraconservadorismo, cujas bases já estavam fincadas por aqui em 2018. Um fenômeno que não é privilégio nosso, infelizmente a ultradireita vem fazendo alianças com o neoliberalismo em vários continentes, nas Américas não faltam exemplos. A propaganda moral tem efeitos nefastos, para o cidadão das camadas médias e populares, pouco importa se o slogan “Deus, Pátria, Família e Liberdade” é fascista ou se o garimpo ilegal vai destruir a Amazônia e dizimar ainda mais os povos originários, ele não quer votar em quem defende “ideologia de gênero”, aborto ou drogas. Quem estuda a história sabe como a propaganda anticomunista foi eficaz.

Não faltaram propagandas responsabilizando Bolsonaro pela gestão de morte na pandemia, ainda assim ele conseguiu extraordinários 51 milhões de votos. Todos que votaram nele são fascistas ou ultraconservadores? Quantos eleitores que optaram por Ciro, por considerar Jair e Lula igualmente corruptos? Quantos mudaram para o “Messias” na última hora, porque entendem que o PT é mais ameaçador que Bolsonaro. O antipetismo segue forte em nosso meio e ele será usado para desacreditar Lula no segundo turno. O ataque direto a Lula tem menos efeito que a pauta moral e a criminalização do PT.

Discordo de Boulos sobre a questão do Pit bull, comparação que só é demérito para o cão. Mas ele tem razão sobre nossas resistências, se o ultraconservadorismo vem se alastrando, as forças progressistas chegaram nessas eleições onde jamais havia chegado antes, os movimentos sociais de base também estão em ascensão e a luta popular veio para ficar. Muitos entendem, como eu, que estamos em um estado de golpe desde 2016, não é somente com eleições que se enfrenta um estado cooptado, é necessário lutar diariamente e fortalecer os movimentos populares. Uma vitória de Lula é um alento, mas não será suficiente.

Jonatas Carvalho