quarta-feira, dezembro 19, 2018

CONFESSO QUE INVEJO O QUE VIVESTES: SOBRE OS DOIS PABLOS; NERUDA E PICASSO.


E lembra-te sempre que:
A vida não é medida pelo número de vezes que respiraste, mas pelos momentos
Em que perdeste o fôlego:
De tanto rir...
De surpresa...
De êxtase...
De felicidade…
Pablo Picasso - 1949

Quem me conhece sabe que vivi muitas experiências. Sou fruto da contracultura, da geração hippie, das sociedades alternativas. Percorri o país de mochilas nas costas por anos, percursos estes, de muitos perrengues, mas também carregados de momentos únicos que ainda guardo na memória. Mas quando olho de perto, sobretudo, quando olho a história de certos homens, penso no quanto minha vida foi mesquinha quando comparada a deles, penso isso sem qualquer neura, pois vivi muito mais que a maioria dos jovens da minha década (anos de 1980), e o melhor, sobrevivi pra contar. Mas certas biografias nos fazem sentir diminutos, é o caso de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, bem, pelo menos era esse seu nome de batismo, mas ficou mundialmente conhecido como PABLO NERUDA. 

Como não invejar o homem? Como não invejar o poeta? Mesmo que você reprove, por qualquer que seja o motivo, suas escolhas pessoais e políticas, não poderá passar por sua poesia sem ser afetado. Eu, o invejo por inteiro. Sua maior qualidade, a meu ver, porém, não era a poética, mas a simplicidade. O poeta chileno que foi Cônsul na Espanha e México, depois senador (1945), dentre os muito prêmios que recebeu, estão o Prêmio Lênin da Paz (1953), o de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Oxford (1958), e o Nobel de Literatura em 1971. Sua vida, no entanto, não foi apenas poesias e premiações, suas posições políticas o colocou na clandestinidade, e foi no exílio que vivenciou as experiências mais marcantes, tanto as positivas, quanto as negativas. 

Neruda fora fortemente impactado pela Guerra Civil Espanhola (1936-1939), era cônsul quando o conflito foi deflagrado, e ali, assistindo uma Espanha sendo invadida por nazifascistas, fez uma opção, ingressou no comunismo, embora se simpatizasse mais pelo anarquismo. Ao retornar para o Chile, viu que a miséria continuava a contrastar com os cadillacs, resolveu então disputar uma vaga no senado, denunciou a vida sofrida dos mineradores, dos salitreiros no pampa chileno. Empresas inglesas e alemães dominavam a região e impunham suas próprias regras, inclusive suas próprias moedas, enquanto os trabalhadores viviam em condições análogas a escravidão. Foi a gente sofrida do Chile que o elegeu, mas pouco pode fazer o poeta por seu povo, pois no ano seguinte tornara-se, persona non grata, no governo de Gonzáles Videla (1946-1952), a quem Pablo ajudara e eleger. 

A história de exilado de Neruda é longa e repleta de emoções, escolhi apenas uma; sua passagem por Paris. Quem quiser conhecer as outras leia “Confieso que he vivido” (1974), traduzido aqui pela Bertrand Brasil. Neruda descreve suas memórias de modo gracioso, sua humildade e simplicidade emergem em cada conto, pernoitou tanto em casebres no Chile e Argentina, quanto em hotéis de luxo na Europa, o único título que almejou ter foi o de poeta. 

Ao ser colocado na clandestinidade por Gonzáles Videla, contou com apoio de amigos para sair do Chile em direção a Argentina e depois Montevidéu, de lá, embarcou para a França usando o passaporte do novelista guatemalteco, Miguel Ángel Asturias, a quem, diziam ser semelhante a Pablo. Ambos, dizia Neruda, se pareciam com um chompipe, nome indígena para perus na Guatemala. Asturias, embora fosse um liberal, não exitou em ceder seu passaporte a Pablo, assim o poeta chegou a Paris. Mas Pablo não poderia continuar sendo Asturias em Paris, precisava voltar a ser Neruda, mas como, se Neruda não passou pela alfândega francesa? Alojado no hotel cinco estrelas, George V, construído em 1928, um luxuoso ponto de referência na Champs-Élysees, suas poucas roupas da cordilheira contrastavam com o requinte do ambiente. Ali ficou como Asturias, até que seus amigos pensassem em uma solução. O que Pablo não esperava é que a solução viria por meio da intervenção de outro Pablo; o Picasso. O espanhol-parisiense havia feito seu primeiro e último discurso na vida elogiando a poesia de Neruda, denunciando a perseguição que o governo chileno impusera ao poeta (Já volto ao fim dessa história). 

Paris, 1950, entrega do Prêmio Internacional da Paz, Arquivo da Fundación Pablo Neruda. 

Eis outra biografia que nos faz sentir apequenados, Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso, mais conhecido como Pablo Picasso, cuja obra dispensa apresentações. O que pouco se fala do pintor nascido em Málaga é sobre sua vida de ativista, Picasso, nunca foi negligente ou indiferente as questões sociais ou políticas. Quando questionado sobre o papel do artista, escreveu,
O que pensa que é um artista? Um idiota, que só tem olhos quando pintor, só ouvidos quando músico, ou apenas uma lira para todos os estados de alma, quando poeta, ou só músculos quando lavrador? Pelo contrário! Ele é simultaneamente um ente político que vive constantemente com a consciência dos acontecimentos mundiais destruidores, ardentes ou alegres e que se forma completamente segundo a imagem destes. Como seria possível não ter interesse pelos outros homens e afastar-se numa indiferença de marfim de uma vida que se nos apresenta tão rica? Não, a pintura não foi inventada para decorar casas. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo.
Massacre na Coreia - 1951. Picasso. 
Ativista da paz, inimigo da guerra, por inúmeras vezes utilizou seu prestígio para denunciar os massacres humanos, começando por “Guernica” (1937), uma crítica a Guerra Civil Espanhola, passando por “O ossuário” (1944/45), em que chama a atenção para a carnificina da Segunda Guerra Mundial, em 1951, inspirado em Goya (na obra 3 de maio de 1808), pinta “Massacre na Coreia”, alertando sobre os fuzilamentos de civis na Guerra da Coreia (1950-53), até “As mulheres de Argel”(1954), tendo Delacroix como referência, expõe ao mundo a morte trágica de milhares de mulheres e crianças na Guerra da Independência da Argélia (1954-1962). Consagra-se ícone da paz, ao produzir a gravura de uma pomba carregando um ramo de oliveira no bico, a pomba de Picasso, transformou-se a “Pomba da Paz” no Congresso da Paz em Paris em 1949, e depois disso um símbolo mundial.

Impossível que duas referências como os dois Pablos, sendo contemporâneos, não se admirassem. A relação de ambos foi mais que admiração mútua entre um poeta e um pintor. Uma sucessão de particularidades e afinidades contribuíram para aproximá-los, mas foi a arte como instrumento político, em um dos momentos mais bélicos da história do Ocidente, que uniu Neruda e Picasso. O poeta do amor e o pintor da paz, deixaram para nós a lição de que não se pode desistir da humanidade. 

Retomando o encontro descrito acima, era o ano de 1949, Neruda, preso dentro de um quarto de hotel em Paris, recebeu algumas visitas, dentre estes a de Picasso, a quem o poeta classificou como gênio da pintura e da bondade, Picasso colocou-se à disposição de Neruda, iniciou um movimento em seu favor, ligou pessoalmente para autoridades de Paris e do mundo, até que Neruda teve a garantia de Berteaux, chefe da polícia, de que era bem vindo na França. Sobre o empenho de Picasso, Neruda escreveu: “Não sei quantos quadros, portentosos deixou de pintar por culpa minha. Eu sentia na alma fazê-lo perder seu tempo sagrado”. 

Pão e 'dish' com frutos à mesa - 1909. Picasso. 
Antes, porém, dos papéis do poeta serem liberados, Neruda fora acolhido na casa da Françoise Giroud, sobre esta, escreveu: “nunca esquecerei esta dama tão original e inteligente”. Giroud, que fora presa em 1943 pela Gestapo, por “atuar como agente da resistência”, tornou-se uma brilhante jornalista, em 1953, fundou a primeira "news magazine", foi ela que cunhou o termo “Nouvelle Vague”, (nova onda), para denotar o cinema de Godard e Truffaut, anos mais tarde foi secretária de Estado (cargo equivalente a ministro) da Condição Feminina (1974-1976) e da Cultura (1976-1977). Na casa de Francoise Giroud, Neruda recebeu outra visita de Picasso, em uma das paredes achava-se uma de suas obras, da qual o pintor sequer lembrava, mas o poeta, todos os dias a contemplava e até lhe deu um título pessoal; A ascensão do Santo Pão. Neruda arrasta Picasso até o quadro, e diz de sua intenção de no futuro pedir o governo do Chile adquirir a obra, a “Madame Giroud” já havia concordado em vender, eis que o pintor examina o quadro em silêncio absoluto por alguns minutos e responde ao poeta: é, não está mal.

Picasso e Neruda morreram no mesmo ano (1973), duas biografias estupendas que se entrecruzaram, se complementaram. O pintor chegou a escrever poemas e pintou obras inspirados no poeta chileno, enquanto o poeta compôs versos sobre o efeito das obras do pintor. Juntos, fizeram do mundo um lugar de paz em tempos de guerra.

Jonatas Carvalho
é historiador e professor de História da Arte.

Referências bibliográficas:

NERUDA, Pablo. Confesso que vivi: memórias. Rio de Janeiro, 33ª ed: Bertrand Brasil, 2010.
ROBERTSON, Enrique, Picasso y Neruda. Hechos y conjeturas en torno a una amistad . Atenea [en linea] 2004, (primer semestre) : [Fecha de consulta: 19 de diciembre de 2018] Disponible en: ISSN 0716-1840.
INGO, F. WALTHER. Pablo Picasso 1881-1973: o gênio do século. Benedikt Taschen - 1990.




















segunda-feira, novembro 26, 2018

O PROJETO ECONÔMICO DE PAULO GUEDES:SALIM MATTAR ENTRE “DOAÇÕES” E PRIVATIZAÇÕES.


Tenho sido paciente com as nomeações ministeriais do novo presidente, apesar de estarrecido com algumas indicações, me mantive calado, primeiro porque não sou de me precipitar, segundo porque não é privilégio do Sr. Jair escolher mal, fui crítico de muitas escolhas em todos os governos anteriores desde FHC. Me silenciei nas escolhas do Itamaraty e do ministro da educação, que considero retrocessos sem precedentes na história da nossa combalida república. Ao ver, porém, o organograma do ministério da economia, a equipe de “vice-ministros” de Paulo Guedes, comecei a notar, ainda que vultuosamente, um certo desenho da estrutura de desmonte do Estado Brasileiro.

Ficarei aqui apenas com o homem que conduzirá a chamada “pasta das privatizações”, a história das privatizações no Brasil é uma das nossas muitas vergonhas, na ERA FHC (1995-2003) as privatizações surgiram como solução para conter a dívida pública, que era de 78 bi em 1996, para isso o governo “vendeu” uma série de empresas públicas e faturou 78,6 bi com as privatizações, mas ao final de 2002, a dívida pública já havia chegado a 245 bi, quase a metade do PIB da época que era de 504 bi, para apresentar aqui apenas o resultado final dessa triste história, pois se mergulharmos encontraremos coisas escabrosas, como empresas públicas vendidas muito abaixo do valor de mercado, desvios de dinheiro, vendas para amigos...

Retornemos ao agora, porque, é preciso reafirmar que a propagação de um projeto de governo que teria por base a honestidade, com um discurso anticorrupção e moralista que foi capaz de ludibriar muitos brasileiros, logo mostrará sua verdadeira face. Eis que tal rosto já começa a se revelar.
Pergunto-me sobre a razão de Salim Mattar, pergunte-se também você. O empresário é dono de um império no ramo de locação de veículos, cujo mito de fundação da empresa diz que esse senhor começou a vida com locação de seis fuscas e hoje tem a maior frota de aluguel da América Latina. Seria sua capacidade de empreendedor que lhe concedeu um lugar na equipe de Paulo Guedes? Salim Mattar é mais que empresário, é político, e está na política há muitos anos. Investiu só nesse ano quase 3 milhões de reais em campanhas para as câmaras legislativas e governos de Estado, só na campanha de Rodrigo Maia foram 200 mil reais, ao governador eleito por Minas Gerais (Romeu Zema) ele doou 700 mil reais (o que representou 44% das doações recebidas por Zema), ao Onyx Lorenzoni, 100 mil, a maioria dos apoiados pelo empresário são do DEM e do NOVO. Porque razão um indivíduo doa do próprio bolso (doação empresarial foi proibida) toda essa fortuna? Seria porque ele teria se cansado da roubalheira? As grandes fortunas nacionais e estrangeiras só injetam dinheiro em campanhas pensando em si mesmos, nunca teve nada com o desenvolvimento do país. Os rios de dinheiro que abasteceram as eleições passadas via empreiteiras, agora emanam por cotas volumosas das contas privadas, apenas 16 empresários destinaram 45 milhões em campanhas pelos Estados brasileiro, Salim é um deles.

Se você entrar no Portal Transparência Brasil e colocar na busca contratos de locação de veículos, descobrirá mais de 19 mil resultados encontrados. O negócio de aluguel de frotas inteiras entre empresas e governos movimentam bilhões, as estruturas dos três poderes possuem centenas de contratos com essa finalidade. Ao fazer uma busca sobre contratos firmados entre a “Localiza Rent a Car SA” com órgãos e empresas públicas chega-se a soma de 906 resultados, uma soma significativa destes com a Petrobras.

Talvez você pense, mas os governos economizam com o aluguel de veículos, é mais barato que adquirir, elimina-se o custo da manutenção, dentre outras. Sim, mas ainda assim, esses contratos saem muito lucrativos para as empresas, há cálculos que o uso do uber e até o táxi em certos casos seriam mais baratos que o valor do aluguel. Há estudos, porém, onde se considera que os custos de locação para substituir uma frota seria, em média, 51% maior que os custos de manutenção e depreciação (Galvão e Melz, 2011).

As locadoras estão em ascensão no país, em plena crise, o ano de 2017 rendeu a Localiza um lucro líquido de 130 milhões, um crescimento de 32% relacionado a 2016, a Locamerica (antiga Unidas), registrou um lucro líquido de 61 milhões em 2017, um aumento de 30% comparado ao ano anterior. Os Estados brasileiros, por sua vez, elevaram drasticamente suas despesas com locações de veículos, estruturas como as forças armadas, as polícias civil e militar, as universidades federais e estaduais, autarquias, hospitais, dentre outras passaram a substituir suas frotas adquiridas por alugadas. Por outro lado, se no modelo anterior os veículos ficavam parados porque os Estados e Municípios não quitavam os pagamentos com as oficinas de manutenção, no modelo atual, frotas inteiras são devolvidas por falta de pagamentos dos contratos de aluguel. Em 2017 o Estado do Amazonas devia mais de 9 milhões em aluguel de viaturas policiais. Em 2016 o Estado do Rio foi obrigado a devolver 376 unidades alugadas.

O setor de terceirização de frotas movimenta em torno de 17 bilhões anuais, o que representa 75% do negócio de aluguel de veículos no país, os setores públicos são vitais nesse negócio, o Estado de Roraima é o maior cliente das locadoras, que somam 37 empresas ativas, no Brasil, segundo dados da receita federal, existem 11 mil locadoras ativas. O governo federal gasta em torno de 54 milhões por ano com frotas (fixas e alugadas), isto é, trata-se de um negócio que certamente deixa as grandes empresas do setor de olhos bem atentos, e agora um empresário do setor estará nas entranhas do Estado brasileiro, suas doações foram investimento certo.


Jonatas Carvalho é professor e historiador.



Referências sobre os dados apresentados:
https://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/localiza-tem-alta-de-32-no-lucro-do-segundo-trimestre.ghtml
https://anaiscbc.emnuvens.com.br/anais/article/viewFile/490/490
http://www.portaltransparencia.gov.br/busca?termo=loca%C3%A7%C3%A3o%20de%20ve%C3%ADculos%20localiza
https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/11/23/indicado-para-comandar-privatizacoes-salim-mattar-foi-o-quarto-maior-doador-nas-eleicoes.ghtml
https://www.valor.com.br/empresas/4495846/locacao-de-veiculos-movimenta-r-163-bi-no-pais-em-2015-afirma-abla
https://www.valor.com.br/empresas/5411299/unidas-tem-lucro-quase-70-superior-no-quarto-trimestre




domingo, outubro 14, 2018

EM ALGUMA ESCOLA DO BRASIL EM 2020

– Bom dia! Sejam bem-vindas!! Está a procura de uma vaga para essa mocinha?
– Bom dia. Sim.
– Ahh que ótimo! Tenho certeza que ela gostará muito do nosso colégio!
– Bem, para ser sincera, eu me mudei aqui para perto a pouco tempo e…
– Ahh, mas veio ao lugar certo! Eu sempre digo que este é o lugar! Aqui as crianças são preparadas desde de cedo para a vida e o mercado.
– Mas minha filha só tem 12 anos. Eu pensei que ela deveria apenas aprender as matérias e se socializar, não é muito cedo para pensar essa questão do mercado?
– Absolutamente! Mãe, vou lhe dizer uma coisa, quanto mais cedo melhor minha querida! Mérito é algo que prezamos demais!
– Mérito?

– Isso mesmo. A capacidade que alguém desenvolve para chegar na frente! É preciso mostrar isso desde cedo, sempre há alguém querendo o seu lugar não é?
– Eu, eu, honestamente vejo o mérito de modo diferente….
– Vamos dar uma olhada no espaço?? Ali a sua frente é o espaço preferido deles durantes os intervalos! Veja como são comportados, disciplina para nós é algo absolutamente irrevogável, somos praticamente uma escola militar. Inclusive temos preparatório viu?
– Obrigada, mas falta muito ainda para ela pensar isso.
– Bobagem querida! Aqui temos um fundamental inteiro militar. Mérito se começa de cedo. E outra coisa, meninas são tratadas como meninas e meninos como meninos!
– Mas você não tem jovens aqui com outras opções sexuais?
– Para ser sincero até temos! Mas duvido que você notaria! Se quiser fazer gaysisse faça lá fora, aqui não! Nada contra entendeu? Mas gente, pera lá né?
– Então sexualidade não é trabalhada nas aulas de ciências? Biologia?
– Apenas o conteúdo técnico, ideologia de gênero aqui não! Sua filha estará segura de ser influenciada.
– Desculpe, mas não creio que sexualidade seja algo que se influencia como, por exemplo, gosto musical. Além do mais, minha filha é criada com amigas e amigos, familiares que....
– Ahhh me deixe eu lhes mostrar nossa biblioteca, não é linda?
– É. Desculpe, mas eu não vi nenhum negro ou negra aqui, com exceção da menina da faxina que passou por nós no corredor.
– Ahhh, sim. Bem eles preferem a escola pública que tem a duas quadras daqui....Voltando a biblioteca, estamos fazendo uma grande modificação, na verdade uma reestruturação da nossa coletânea, retiramos toda literatura considerada de esquerda, aliás, por sinal, esse é outro problema que sua filha não terá aqui. Nossos professores são orientados para não praticarem qualquer tipo de doutrinação. Já temos até o cartaz de orientação do Escola Sem Partido colado na sala dos professores.
– Doutrinação?
– Isso mesmo!
– O Sr. está me dizendo que minha filha não aprenderá Marx, Rousseau, Sartrer?
– Imagina! Pode ficar tranquila, jamais!
– E também não terá conhecimento da literatura de Pablo Neruda, Jorge Amado, Gabriel Garcia, Graciliano Ramos?
– Garantido que não! Mas temos uma coleção fantástica de Nelson Rodrigues! Podemos voltar a secretaria para acertar a matrícula?
– Absolutamente não!
– Mas, mas não entendo….eu achei…
– Achou que eu deixaria minha filha frequentar esse campo de concentração conservador que o Sr. tem a coragem de chamar de escola? Achou errado! Passar Bem!

quarta-feira, setembro 26, 2018

O "BRISADEIRO" E O BOLSONÁTICO

Essa história é uma peça de ficção, quaisquer semelhanças com as vidas de membros de alguma  família brasileira é mera coincidência.

- Não sei se o café está forte, acho que hoje errei a mão.
- Hoje? Minha mãe sempre erra a mão tio.
- Não há problema algum meninas, o importante é tomar um cafezinho.
- Ah é tão bom quando seu tio vem pra cá né filha? Assim ele divide um pouco a carga com a gente.
- Com você né, que dá bola pra ele, eu subo pro meu quarto e me tranco lá.
- Isso é sacanagem de vocês, o cara é meu irmão e isso a gente não escolhe.
- Ué eu sou filha e também não escolhi!
- E eu sou uma idiota por me casei com o embuste.
- Hahaha...fica assim não cunhada, o cara tem qualidades.
- Ele só fala em Bolsonaro, eu não aguento mais!
- Imagino.
- Sabia que teve uma carreata do coiso aqui na cidade?
- Que dia?
- Domingo agora. Ele queria que queria que eu fosse. Colocou até bandeira no carro. Mas aqui que eu ia perder o churrasco na casa da Margot!
- E você mocinha não foi com o seu pai?
- Tá maluco! Disse pra ele não me encher o saco e fui pro quarto.
- O pior é que ele só posta isso nas redes sociais. Se vocês duas soubessem o quanto de fake news ele reproduz por dia, já falei tanto com ele, mas parece que ele realmente acredita que aquelas coisas são verdade.
- A noite ele chega atacado, senta no sofá, pega o celular ai começa, olha esse vídeo aqui, olha isso, olha aquilo! Puta que pariu eu não consigo ver mais nada na TV que ele não deixa e se reclamo ele ainda briga, diz que não estou interessada no meu país.
- Sabe o que eu queria fazer com ele tio?
- O que?
- Dar um brisadeiro de cannabis e ficar esperando a reação.
- Kkkkkkkkkkkkk
- Um brigadeiro de quê?
- Brisadeiro de maconha mãe!
-Hahhahaahaha. Eu apoio.
- Eu também.
- Vamos dá? Imagina ele nem beber bebe....vai ser demais!
- Mas onde vamos arrumar?
- Ihh mãe lá na escola eu arrumo fácil.
- Essa eu ia querer ver. Já pensou ele chapado? Cantando Olê, olê, olê, olá...Lulaaaaa?
-Kkkkkkkkkk
- O tio como será que ele reagiria?
- Não dá pra prever. Talvez vocês fiquem desapontadas, pois ele pode simplesmente dormir....profundamente!
- Glória....a ....Deus!
- Hahahaha.
- Eu já ficaria feliz, assim poderia ver o master chef em paz.
- Ahhh, mas ai é sem graça mãe.
- É não minha filha, pra quando você consegue o brigadeiro? 
- Bri-sa-dei-ro mãe!

sábado, setembro 22, 2018

ESQUERDAS E DIREITAS E SUAS MÚLTIPLAS FACETAS

-Professor! Como o sr. se define? Direita, esquerda ou Centro?
- Não gosto muito de me definir nesses termos; diria que antes de qualquer coisa sou um humanista.
- Mas...o sr. se vê pendendo mais pra que lado?
- O que tentei dizer na aula de hoje foi que qualquer tentativa de definição desses conceitos com base no que você lê nas mídias sociais ou nos jornais é de um reducionismo brutal. Esquerda e direita possuem muitas facetas (assim como o centro), foi isso que tentei mostrar a vocês, desde a Revolução Francesa à consolidação dos dois grandes partidos (Republicanos e Democratas) nos EUA.
- Então para o Sr. a Esquerda e Direita que está por ai hoje não são reais?
- São versões, muitas versões...em alguns casos distorções, cuja complexidade remete a um conjunto de elementos e fatos históricos que ganharam interpretações variadas.
- Então não existe uma esquerda e uma direita legítima?
- Não. Imagine, a esquerda da Convocação dos Estados Gerais na França não era um conjunto uníssono, tão pouco a direita, entre os jacobinos por exemplo, havia diversos subgrupos. O historiador Jules Michelet (1952),  escreveu que havia o jacobinismo  primitivo, parlamentar e nobiliário,  havia ainda, um jacobinismo misto, dos jornalistas republicanos, as diferenças sobre que tipo de Estado a França deveria ser era enorme.
- Professor! O que é mobiliário?
- É nobiliário, relativo a nobreza, isto é, quem possui título de nobre.
- Então havia nobres entre os jacobinos?
- Havia sim.
- Professor! Mas isso não é como ser banqueiro e votar no Lula?
- Bem, não creio. Mas veja, os bancos nas últimas eleições (2014 - Dilma e Aécio), fizeram doações muito semelhantes em termos de montantes aos dois presidenciáveis que foram para o segundo turno.
- Isso quer dizer que banqueiro só tem uma ideologia né professor?
- É?
- Sim, chama-se ideologia frankliana.
- Que isso?
- Ué, é de Benjamin Franklin...a figura na nota de 100 dólares...hahaha! Né não prof?
- Sim. Por falar em Frankin, deixe-me chamar atenção para uma coisa, pois os EUA tem uma característica muito particular nessa ideia de direita e esquerda.
- Eu sei que o Trump é de direita...e tem um tupeti que parece um pica-pau.
- Galerinha, veja bem, alguém sabe o que defende o partido democrata e o que defende o republicano?
- Professor o Obama era Democrata ou Republicano?
- Democrata.
-Então o republicano é racista? 
- O partido republicano foi o grande responsável pelo fim da escravidão nos EUA, sobretudo, após Abraham Lincoln tornar-se presidente por este partido.
- E ele também caçava vampiros! Né prof?
- Isso eu não sei, mas sei dizer que o partido republicano surgiu após alguns membros dos democratas, sobretudo, aqueles antiescravistas ficarem insatisfeitos com os rumos do país. Os republicanos governaram com certa tranquilidade até a crise de 1929, foi a partir dai, que os liberais democratas, elegeram Franklin D. Roosevelt.
- Mas professor...e o Hitler?
- O que tem?
- Era de direita ou esquerda?
- Extrema direita meu querido!
- Mas e essa história de que era de esquerda?
- Veja, a Revolução Francesa não gerou apenas o chamado centro, ocorreu que também surgiram dos debates que se alastraram ao longo do XIX e adentraram ao XX os extremos, isto é, a esquerda extrema e a direita extrema. O liberalismo apresentou uma séria de anomalias, uma delas foi o neocolonialismo na África e Ásia, alternativas surgiram então.
- Mas os governos de Hitler e Stalin não foram semelhantes?
- No que tange a centralização de poder sim, mas fora isso, há muitas diferenças. A Revolução Russa liderada por Lenin, tomou medidas que Hitler nunca utilizou, como estatização, nacionalização (muito embora Lenin mantivesse uma certa abertura para o capital estrangeiro), e reforma agrária. Hitler nunca fez nada parecido com isso. Há uma enorme quantidades de variantes que devem ser consideradas, Hitler chega a fazer um acordo com Stalin, mas também tinha acordos com a Inglaterra e a França, o que isso faz dele?
- Prof....e a esquerda e direita no Brasil? Como se deu essa bagaça?
- Acho que isso ficará para próxima aula...ou próximas, pois aqui, a complexidade é tão grande que talvez nem os historiadores sejam capazes de explicar. O que posso lhes afirmar é: As rotulações são reducionistas, preconceituosas, pobres...

Até a próxima aula.









domingo, setembro 09, 2018

VERDADES INVENTADAS E ELEIÇÕES 2018


A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. 
(Michel Foucault, Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.12-13)

Me lembro como se fosse hoje, mas era o domingo de 26 de outubro, dia de votação no segundo turno das eleições de 2014, Dilma X Aécio. Eu estava saindo de casa para votar e me deparei com meu falecido pai já retornando da urna, era cedo ainda, ele parecia revoltado, peguntei o que havia acontecido e ele esbravejou: Mataram o doleiro está nos jornais! Referindo-se a Alberto Youssef, estopim da Operação Lava Jato. Eu respondi que infelizmente o fato de estar nos jornais não torna algo em fato.... é, foi mais uma verdade inventada pela grande imprensa. A população brasileira acordou com essa notícia que fez com que muitos mudassem seus votos naquele dia, como meu pai mudou, somente no final da tarde desmentiram. 

O fake news não nasceu na época da internet, ele tem a idade do homem. A história da domesticação do homem, da submissão dos povos a governos, do estabelecimento dos impérios é permeada por uma incontável produção de verdades inventadas. Desde a carta de Constantino, documento falso que a igreja utilizou para se dizer proprietária do Império Romano Ocidental, ao discurso do papa Urbano II em 1095 sobre a "ameaça" dos infiéis muçulmano a terra santa, que resultou nas cruzadas. Ao longo dos séculos, das grandes navegações ao neocolonialismo, para invadir um território habitado ou mesmo ocupar um continente inteiro (como a África), a produção de verdades inventadas foi o elemento fundamental, aquilo que permitia, autorizava, justificava. As verdades inventadas produzia os inimigos, caracterizava sua condição de selvageria, crueldade. Muitas verdades foram inventadas para se estabelecer os controle populacional, para manter as força de trabalho produzindo, para justificar a escravidão. 

A história das guerras é também uma história de fake news. os Estados Nacionais contaram com o apoio jornalístico e publicitário para produzir verdades inventadas, cito aqui apenas a foto de Joseph Rosenthal, ganhadora do Pulitzer, reproduzida por todo o Ocidente, Rosenthal registrou a vitória dos soldados estadunidenses na ilha japonesa de Iwo Jima em 1945. A foto de soldados hasteando a bandeira dos EUA no topo da ilha tornou-se um dos maiores fakes da história, os soldados que percorreram  o país, identificados como os heróis que hastearam a bandeira em Iwo Jima e ajudaram na propaganda para arrecadar fundos para a guerra, não eram os mesmos da foto, um dos verdadeiros hasteadores morreu sem reivindicar sua condição de hasteador. 



No Brasil, o fake news chegou junto com a colonização, do império a constituição da república toda sorte de verdades foram inventadas visando a garantia do poder pelas oligarquias locais. Nos primeiros anos de república as disputas pelo poder entre grupos políticos que levaram a uma sucessão de golpes que só foram possíveis graças as verdades inventadas. Getúlio que usou o assassinato de João Pessoa tomar o poder (após perder as eleições) em 1930, anos depois foi vítima de uma enorme quantidade de acusações, dentre elas a do atentado contra a vida de Lacerda em 1954. A imprensa nacional durante décadas foi a grande produtora de verdades inventadas, prestando um enorme serviço aos militares nos anos de chumbo, contribuindo para a invenção da categoria criminosa do "sujeito subversivo". 

Se as redes sociais não inventaram o fake news, contribuíram significativamente para sua popularização em tempo real. Talvez o dado novo que aqui se percebe, é que até então se pensava que a produção de verdades inventadas era resultado da ganância dos poderosos, hoje descobrimos que um indivíduo qualquer em um lugar qualquer é capaz de usar seu celular como arma de propaganda enganosa e encontrará eco nas redes sociais de milhares de outros indivíduos que replicarão tal informação. O direito a opinião, outrora reservada apenas aos "ilustrados", tornou-se práticas dos "comuns". muito embora não anula o que Pierre Bourdieu disse em "Tempos Modernos" publicado em 1973: "A opinião pública não existe". (Link no final da página) 

A rede social possibilitou-nos a sensação estarmos integrados ao mundo, isto pode ser notado de várias formas, quando uma doméstica, moradora da Rocinha, vê que sua patroa do Leblon compartilhou sua publicação sobre culinária ou o motorista de caminhão que recebe mensagens do patrão via aplicativo, enobrecendo o trabalho e o mérito no grupo  da empresa. Por outro lado, o ambiente virtual revelou-nos também uma série manifestações que ultrapassam o limite da opinião, subvertendo preconceitos de toda ordem como forma de opinião, como é ocorre nos discursos de ódio. O ódio, ou o discurso de ódio, também não é uma invenção das redes sociais. Nossa espécie, por sinal, é a única capaz de cultivar ódio. Nossa história com o ódio e a violência é de longa data, temos o 4º trânsito mais violento do mundo, somos líder mundial em violência rural, nossa violência urbana possui taxas de violência acima de países em guerra e recentemente alcançamos o status da 3º maior população carcerária do mundo. Para piorar, matamos mais gays e policiais que qualquer outro pais. Toda essa violência reflete nas opiniões na rede social, é possível que em breve estejamos também liderando mundialmente nesse quesito.

O ódio disseminado tal como está, revela uma sociedade esquizofrênica, um prato cheio para os eruditos da psicologia social, milhões de perfis reais (e falsos) fomentando diariamente "opiniões" odiosas sobre tudo. Mas não apenas isso, o ódio é fabricado, plantado por meio da produção das verdades inventadas, isso também não é novo, mas ganha dimensão desmedida pela velocidade que tais verdades se proliferam. Se de fato existe opinião pública (algo que Churchill discordava, para ele o que havia é opinião publicada), esta encontra-se hoje esfacelada pela pós verdade, onde o "fato" é menos relevante, influencia menos que as crenças individuais. 

Tomando como exemplo a situação brasileira recente, a rede social, utilizada cada vez mais como um espaço de disputa para a produção de verdades inventadas cujo discurso de ódio é destilado no âmbito extremo da direita e da esquerda na desqualificação do outro pela simples diferença de ideias e, por conseguinte, na construção de um inimigo que deve ser compelido, quem sabe, até  extirpado da sociedade. Isso pode ser percebido em eventos drásticos recentes, na execução de Marielle Franco, poucas horas depois de tomar os noticiários, já havia publicações na rede ligando a vereadora a Marcinho VP, condenado a 36 anos por tráfico de drogas. atacaram sua sexualidade, atacaram sua cor de pele. Outro caso recente, foi o incêndio no museu nacional, algumas horas depois acusações surgiram na rede social acusando a UFRJ de ter recebido 21 milhões do BNDES para reformas e que tal dinheiro desapareceu, outro dizia que o governo gastara 60 milhões com a Lei Rouanet, ambas inventadas. No outro lado da polarização, dezenas de montagens circularam na internet mostrando a facada a Jair Bolsonaro como fraude, claro, ocorreram também montagens associando o atentado ao PT. O que é surpreendente nisso tudo é que a polícia sequer havia tido tempo de interrogar o suposto agressor, diversas versões já circulavam pela rede. 

A possibilidade de criar um "fato" novo (breaking news), tendo as mãos um smartphone que permite editar imagens, propicia a um indivíduo que sequer tenha qualquer ideologia política ocupar-se de produzir verdades inventadas de todas as formas apenas por diversão. Os partidos perderam o controle sobre a manipulação das informações, o que não quer dizer que pararam de manipulá-las, a grande imprensa idem, a justiça, sobretudo a eleitoral está perdida sobre como punir os produtores de verdades inventadas. Nessas eleições poderemos bater todos os recordes de fake news e você que compartilha sem medo as informações que lhe chegam, é mais uma peça manipulável nesse jogo de verdades inventadas. 

Jonatas Carvalho.   

   






sábado, agosto 04, 2018

JUVENTUDE TRANSVIADA SIM, MAS CONSCIENTIZADA.

“Os velhos desconfiam da juventude porque foram jovens.” (William Shakespeare)

"Nossa juventude adora o luxo, é mal educada, caçoa da autoridade e não tem o menor respeito pelos mais velhos. Nossos filhos hoje são verdadeiros tiranos. Eles não se levantam quando uma pessoa idosa entra, respondem a seus pais e são simplesmente maus." (......?)

Neste último sábado (04/08/18), tive a enorme satisfação de participar de um evento no Pensi Teresópolis. Uma espécie de mostra temática desenvolvida a partir de uma disciplina que permeia todas as séries cujo nome é muito interessante: Laboratório de Inteligência de Vida (LIV). A mostra ficou por conta do ensino médio que partiu do conceito de família para abordar questões que ainda são incômodas, quando não silenciadas na vida social. 

Foi em 1955 que Nicholas Ray produziu para o cinema o filme “Rebel Without a Cause”, aqui no Brasil traduzido por “Juventude Transviada”, uma história que mostra os conflitos da geração da Primeira Guerra e da Crise de 1929 com aquela do pós Segunda Guerra, a geração do ator James Dean (protagonista do filme que morreu neste mesmo ano ainda muito jovem). Em 1975, Luis Melodia, compôs para uma novela (Pecado Capital) uma canção com o mesmo título do filme que acabei de citar... “eu entendo a juventude transviada e o auxílio luxuoso de um pandeiro” 

Há anos que escuto comentários sobre o quanto a juventude de hoje está perdida, não têm conteúdo, são irresponsáveis e frequentemente suscetíveis às más influências. Sempre que ouço isso (em algumas ocasiões em sala de professores), me pergunto se haveria momento mais propício na vida para se experimentar as mais variadas vivências e sensações do que a juventude.

O chamado conflito de gerações é uma constante nas sociedades desde Sócrates (470/399 a.C.)... sim, Sócrates é o autor do segundo texto acima entre aspas! Desde então filósofos, pedagogos e outros pensadores destilaram suas críticas sobre esses “seres incompreendidos”. Talvez Shakespeare estivesse certo, toda essa desconfiança reside no fato de que já fomos jovens, já fomos inconsequentes suficientemente para não querer que nossos filhos corram os mesmos riscos que estivemos sujeitos um dia. Queremos protegê-los das frustrações, decepções, das experiências impróprias e de tantas outras “ameaças”. Por isso, sempre os julgamos despreparados para serem autônomos.

Mas o que vimos hoje na mostra desconstrói esse tipo de ideia que nós pais temos da geração y (ou yy - yz). Na mostra de hoje o que vimos foi um espetáculo de autonomia, informação com base em conhecimentos sólidos, habilidades de trabalho em equipe, consciência social e muita disposição. O resultado? Pais, professores e equipe pedagógica impactados, emocionados, deslumbrados. 

Sim eles transviaram, romperam com décadas de hipocrisia e preconceitos, demonstraram que não se iludem mais com mitos como o da “família de comercial de margarina”, sabem que laços de afeto são tão fundamentais (em muitos casos mais) que o chamado laços de sangue, ampliaram o conceito de família ao ilimitado. Eles transviaram com a intolerância sexista em detrimento do ser humano, nos mostraram que não se pode medir caráter a partir da sexualidade de quem quer que seja. Eles transviaram o determinismo familiar da escolha sobre o que serão no futuro, são senhores do seu amanhã. Transviaram não da moral, mas de um tipo de moral; a patriarcalista. Eles não são suscetíveis, só estão mais abertos às mudanças sociais, praticando o desapego a todo tipo de tradição que nega a pluralidade e tolerância. Transviar não é afastar-se do bom caminho é construir outros caminhos quando o que existe já não nos atende como sujeitos do conhecimento. 

O nosso papel, como geração anterior não é o de guiá-los, pois eles já sabem onde querem ir, acima de tudo o que querem e o que não querem ser, cabe-nos apenas a orientação sábia, serena, amiga, cabe-nos acima de tudo, o apoio, a confiança e a parceria. Foi isso também que vi nessa bela e jovem equipe pedagógica. Termino minha homenagem a estes jovens com um trecho da canção de Flávio Venturini….”nossa linda juventude, página de um livro bom, canta que te quero cais e calor, claro como o sol raiou”. 

Jonatas Carvalho é professor de história da arte no Pensi.

terça-feira, junho 26, 2018

LIBERALISMO DESEMBESTADO À BRASILEIRA


Passei alguns dias lendo alguns autores liberais, alguns clássicos (como John Stuart Mill), alguns intelectuais (como Mario Vargas Llosa), na busca pelo pensamento liberal no Brasil me deparei com um site chamado Academia do Liberalismo Econômico (Link-https://aleconomico.org.br/quem-somos/). O site, ao que parece, recebe colaboração de voluntários, que traduzem textos de liberais nos EUA, Inglaterra dentre outros, sobretudo, trata-se de um site que reproduz o pensamento econômico da escola austríaca, como é o caso de Ludwig Heinrich Edler von Mises. A Academia do Liberalismo Econômico tem um objetivo óbvio, lutar contra a “escolarização de esquerda”, alimentando assim a ideia de que o pensamento de esquerda é predominante no ambiente escolar. (tese esta nunca comprovada, mas persistente no Escola sem Partido).
O projeto da Academia do Liberalismo não é um caso isolado, há outros, como, por exemplo, Mises Brasil (Veja aqui: https://www.mises.org.br/Default.aspx), trata-se de deliberadamente preparar a juventude brasileira na defesa do liberalismo. Não que nossos jovens não devam ter contato com o pensamento liberal, pelo contrário, creio que seja essencial, mas os sites que citei acima, defendem um liberalismo ortodoxo, a escola austríaca e, sobretudo, Mises, são exemplos de uma certa radicalidade.
As publicações do Academia do Liberalismo Econômico são voltadas para criticar políticas de caráter intervencionista, defensores vorazes do Livre Mercado, os autores apresentam trabalhos com pouco teor teórico, salvo algumas exceções. Entre os “artigos” é possível verificar todo tipo de incongruência como é o caso de “O capitalismo é bom para os pobres”, de Steven Horwitz, liberal da escola austríaca. Neste “artigo”, podemos encontrar proposições que fariam Adan Smith revirar no túmulo:

“Hoje, os pobres em países capitalistas vivem como reis, graças em maior parte à liberdade de trabalhar e à habilidade em acumular capital que torna o trabalho mais produtivo e enriquece até os mais pobres de todos.”

Outro “artigo”, que traz como título “Como o livre mercado atua sobre a pobreza”, escrito por Thiago Serpa Alves, vemos a seguinte proposição:

"Ao longo dos últimos 200 anos houve diminuição gradativa da situação de pobreza extrema presente no mundo. De 1820 a 2015 a população mundial passou de cerca de 1,1 para 7 bilhões de habitantes, porém a quantidade de pessoas em situação de pobreza extrema caiu de cerca de 1 bilhão em 1820, para aproximadamente 700 milhões em 2015."

O jovem liberal utiliza o índice GINI para produzir gráficos demonstrativos dessa afirmação.
Lendo um pouco mais, encontrei o “artigo” de Felipe Lungov, presidente da Academia do Liberalismo Econômico, cujo título é “O lucro faz mal para a sociedade?” Para o economista com formação na USP, o lucro é um fenômeno natural, benéfico a sociedade como um todo. Quanto mais lucrar uma empresa, mais justiça social haverá, recorto aqui uma proposição:

"O lucro é o atestado inviolável de que seu portador conseguiu encontrar pessoas que estavam pagando demais em produtos cujos produtores estavam ganhando de menos. E tem mais: quanto maior for o lucro obtido, (a) mais defasada estava a renda do trabalhador em relação ao preço pago pelo consumidor, e/ou (b) maior foi o número de trocas realizadas que beneficiaram essas pessoas todas. Ou, nas palavras de Robert Murphy, lamentar que um capitalista esteja tendo lucro muito alto é como reclamar de um cirurgião por salvar muitas vidas”.

A produção desses argumentos de caráter pouco crítico, que naturaliza o capitalismo e o livre mercado, estão se disseminando nas redes sociais e encontrando reverberação na juventude brasileira, sobretudo, nos filhos da classe média. O sintoma mais agudo desse tipo de liberalismo é a organização de grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL), grupos esses de olho em investidores estrangeiros dispostos a propagar o liberalismo (como a Open Society Fundations de George Soros). Outro sintoma é a criação de partidos liberais como o Partido Novo, que terá como candidato as eleições de 2018 um de seus fundadores, João Amoedo. Defensor ferrenho de um Estado Mínimo, Amoedo prega uma privatização geral no país como solução de reduzir o tamanho do Estado.

As diferenças ideológicas entre os liberais são enormes, seria um erro grave colocá-los todos no mesmo saco, há liberais cujas pautas políticas estão conectadas com parte da esquerda no que tange as liberdades civis, como legalização do aborto, descriminalização das drogas, casamento homoafetivo e adoção de crianças por esses casais. Mas o tipo de liberalismo que está de disseminando entre nossos jovens é conservador no que diz respeito as liberdades individuais, idolatram o livre mercado, mas são patrulheiros morais. Para esses novos liberais, demanda e oferta são deuses do olimpo, não devem ser questionados, se o mercado quiser nossos recursos naturais (nossas águas, petróleo….) que seja, ainda que para isso use de estratégias que coloque o país em crise financeira para depois comprar nossas riquezas a preço de banana. Esses jovens liberais, não viram qualquer problema em romper com o sistema democrático em 2016 ao apoiar figuras como Eduardo Cunha e Michel Temer, mas acham um absurdo, uma degradação a arte contemporânea brasileira. Agora disseminam ideias como a de que o salário-mínimo é gerador de desemprego, ou que política de igualdade salarial é um equívoco, como defende Jefferson Shupe, segundo ele:

Claramente existem mulheres que ganham menos do que um homem na mesma função, mas também existem mulheres ganhando mais do que um homem na mesma função. Se estas leis igualitárias passarem, estou certo de que muitas mulheres, além de homens, teriam seus rendimentos cortados para igualar as coisas.

Termino aqui com uma citação de Adan Smith em “A riqueza das nações”: "Onde há grande propriedade, há grande desigualdade. Para um muito rico, há no mínimo quinhentos pobres, e a riqueza de poucos presume da indigência de muitos."

Jonatas Carvalho.

domingo, maio 13, 2018

SEGUNDO DOMINGO DE MAIO DE 2018.


– Hoje é dia das mães! Disse a profetisa!
Todos acenaram positivamente.
– As redes sociais estão tomadas de mensagens, poemas....
É! Exclamavam....compartilhavam...
A profetisa fechou os olhos e continuou.
– Mas não se esqueçam da rosa, da rosa...
– Eu comprei um buquê! Bradou alguém na multidão.
– Lembrem-se das mães sírias, palestinas, curdas, congolesas....
Silêncio na multidão.
– Lembrem-se das mães negras, faveladas, periféricas.
Uma pequena dispersão na multidão.
– Lembrem-se das mães dos encarcerados, dos desaparecidos, dos injustiçados.
– Lembrem-se das mães agredidas, das que pariram na rua, nas prisões,
 Lembrem-se das mães abortivas, desnutridas, estupradas, incestadas, humilhadas.
– Lembrem-se das mães interditadas, da bala perdida, da dispensa esvaziada.
– Lembrem-se das mães que hoje não poderão almoçar no shopping, que não porão à mesa, que não ganharão sequer uma flor.
No que abre os olhos, a profetisa só vê uma menina de pé a sua frente.
– Para onde foram todos?
– Embora. Respondeu a menina.
– Por que você também não foi?
– Porque a senhora estava falando da minha mãe. E sorriu.

Jonatas Carvalho.


quarta-feira, fevereiro 21, 2018

INTERVENÇÃO PRA QUÊ...PRA QUEM?



Há ainda muito o que se revelar no que diz respeito as intenções desse projeto, caso a segunda turma do STF o "autorize" (Gilmar mendes já o fez por conta própria), será a primeira intervenção federal desde 1988, com Supremo com tudo. Isto porque a câmara dos deputados já o fez por 340 X 72 e ontem o senado também 55 X 13. Nossa história de fracassos acumulados com intervenções federais ou projetos afins são inúmeras e em alguns casos irrisórias, como nos lembrou Felipe Betim do El País, o atual ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência e um dos idealizadores da atual intervenção federal, (Wellington) Moreira Franco, também conhecido pelas listas da Odebrecht de Angorá, venceu as eleições de 1986 para governador do Estado do Rio prometendo acabar em seis meses com a violência, mas na prática só conseguiu mesmo foi acabar com os CIEPS. 
Sobre a legitimidade da Intervenção, o Decreto Nº 9.288/2018 é vago quanto a sua constitucionalidade, confunde “ordem pública” (a que se refere o artigo 34 da constituição) com “segurança pública”, questões muito distintas, mas em um país onde “atos de ofícios indeterminados” são validados em segunda instância isso não faz muita diferença.  
Quais serão os verdadeiros motivos da intervenção? A violência no Rio?  O 11º anuário de Segurança Pública no Brasil traz uma série de dados sobre a violência no Brasil, segundo o qual em 2017 a cidade do Rio de Janeiro registrou uma taxa de 32,5 por 100 mil habitantes, enquanto, Porto Alegre que alcançou o terceiro lugar no ranking, perdendo apenas para Aracaju e Belém, registrou 64,1 por 100 mil. Há pelo menos 6 capitais no país cujo número de homicídios estão acima de 50/100 mil habitantes. Sim, é evidente que a violência no Rio chama mais atenção que em Aracaju ou Pernambuco, mas isso não muda o fato que a violência é um fenômeno brasileiro e não específico de um Estado da Federação, por isso não se justifica a intervenção federal, não pelas alegações do governo pelo menos.
Minhas leituras sobre as verdadeiras razões me conduziram para caminhos que nada tem a ver com a violência em si. Vamos a elas: a estratégia de intervir no Estado ESTÁ DIRETAMENTE associada as Eleições 2018. Temer tenta com isso seu pulo do gato para ousar uma “reeleição” (palavra entre muitas aspas, dado sua ilegitimidade no cargo), a proposta vai ao encontro do maior clamor da população, já demonstrado em pesquisas. Caso as taxas de desemprego caiam e as operações sejam aprovadas pelo público sua popularidade pode aumentar. Sem Lula na disputa (pois não creio que a justiça autorize que Lula participe do processo), o processo está aberto, mesmo para Temer. Se o termômetro eleitoral do "Vampirão" não subir o suficiente para participar na disputa presidencial, pode ao menos dar ao PMDB mais força para uma aliança com o PSDB. Caso as operações sejam desastrosas, se jogará a responsabilidade nos militares, na falta de diálogo com o Estado do Rio e as forças policiais.
É preciso lembrar ainda que uma intervenção federal aciona uma série de “dispositivos legais” na União que afetam Estados e Municípios. Como suspender o pagamento de dívidas do Estado, o que inclui repasses deste aos municípios. Mas o foco dessa intervenção em particular é mesmo a reforma da previdência. Como assim?  Você perguntaria. É simples, com a intervenção federal, a Câmara e o Senado não podem fazer alterações na Constituição, logo, para aprovar a reforma da previdência seria necessário suspender a intervenção para que se vote o projeto. A estratégia do Governo seria pressionar para que o texto da reforma enviado aos parlamentares seja aprovado sem que haja emendas dos deputados. Se a estratégia vai funcionar é outra coisa, o risco é enorme, mas caso a intervenção esteja agradando o povo e nisso a grande imprensa irá certamente colaborar, será possível que Temer e seu bando consiga terminar esse mandato com chave de ouro.
O que nos cabe fazer diante disto? Denunciar a maledicência desta ação. É momento de demonstrar aos nossos velhos e jovens que tal projeto não tem relação com segurança pública, mas com política do mais baixo nível. Ao que parece a classe média já se convenceu de que tal medida é necessária, mas a população afetada de verdade, essa que ganha até três salários mínimos e que corresponde a 70% dos brasileiros, estes viverão dias de terror.

Jonatas Carvalho
Historiador.

terça-feira, janeiro 30, 2018

A CIA E O LSD - A HISTÓRIA DE FRANK OLSON.

Madrugada de 28 de novembro de 1953, Hotel Pennsylvania, Nova Iorque, o relógio marcava 2;30h em ponto, Robert Lashbrook lentamente senta-se à beira da cama e mira seu companheiro de quarto por uns segundos. Levanta-se vai em direção a porta destrava-a e segue para o banheiro. Senta-se no vaso, acende um cigarro enquanto escuta o som da porta do quarto se abrir ao mesmo tempo que por baixo da porta do banheiro observa o clarão que invadiu o quarto vindo do corredor. O som que se seguiu foi o de duas pancadas e depois de vidros quebrando. 

Na calçada da sétima avenida o subgerente do hotel fitava um corpo, atônico olhou para cima e viu as cortinas balançarem para fora da janela do décimo andar. O corpo era do hóspede do hotel, tratava-se de Frank Olson, um cientista especializado em bacteriologia e armas biológicas que trabalhava para a CIA. A informação oficial sobre a morte de Olson na época foi de que ele havia se jogado do quarto 1018-A, que vinha apresentando um quadro de depressão e a Agência o havia levado para Nova Iorque para tratamento médico.

Em 1975 após a renúncia de Nixon, auge da Guerra Fria, a vergonha da derrota do Vietnã, o chamado RELATÓRIO ROCKEFELLER revelara uma série de segredos da CIA, espionagem doméstica, grampos telefônicos, experimentos como hipnose, controle mental e métodos de interrogatórios com indução de morfina. O caso de Frank Olson foi alterado, a Agência se desculpou, lamentou a fatalidade e alegou que Frank havia feito uso de LSD no Projeto MKULTRA, o que o levou a um surto paranoico e por fim o suicídio. 

O filho de Frank, Eric Olson, um menino na época da morte do pai, cresceu sem nunca ter acreditado na história do suicídio. Em 1994 conseguiu exumar o corpo de Frank e o maior perito forense dos EUA James Starrs encontrou dois grandes hematomas no corpo, um na cabeça e outro no peito, um caso de suicídio agora virara um caso de homicídio. Mas quem matara Frank Olson e por que? 

As investigações levaram a um caminho sombrio e ultrassecreto, Frank havia descoberto que seu país estava usando armas biológicas na Guerra da Coréia (1950-1953) e começou a manifestar sua indignação com isso. Em 18 de novembro de 1953, convidado para participar de uma reunião com outros colegas em Deep Creeck área rural de Maryland, foi submetido sem seu consentimento a experimentos com LSD. Sob efeito da substância revelou sua insatisfação, a droga na época era utilizada como um soro da verdade. Frank tornara-se um problema para a Agência, um cientista que sabia demais e estava decepcionado com os métodos do governo e de suas instituições. 

Eric Olson, passou 40 anos de sua vida tentando provar o assassinato de seu pai, chegou a convencer Seymour Myron ou "Cy" Hersh como era conhecido, vencedor de um Pulitzer em 1970, Cy nunca chegou a escrever sobre os fatos que levaram ao homicídio de Frank Olson, alegando que isso implicaria revelar suas fontes. Eric, hoje já com mais de 60 anos não acredita mais que um dia a verdade virá à tona, mas não tem dúvidas de que seu pai foi assassinado com permissão dos chefões da CIA. 

Uma forma de conhecer mais essa história é por meio da série documentário WORMWOOD (Absinto) produzida pela Netflix, criada por Errol Morris. 



Jonatas Carvalho.

segunda-feira, janeiro 22, 2018

SOBRE LEIS INJUSTAS E INJUSTIÇAS PRATICADAS DENTRO DA LEI; O CASO LULA.


Um indivíduo tem a responsabilidade moral de desobedecer leis injustas... Martin Luther King Jr.


A frase acima é muita conhecida nas páginas de facebook e outras mídias sociais, poucos sabem, porém, que trata-se de um trecho da chamada Carta da Prisão de Birmingham, prisão que Luther King passou um tempo em 1963, acusado de infringir a lei segregacionista do Estado do Alabama. A carta é uma resposta à oito líderes religiosos que se pronunciaram alegando que as ações do pastor negro eram “inoportunas”. Na prisão, King viu de perto a diferença entre lei e justiça, em outro trecho de sua carta, esse menos conhecido, escreve: Uma lei injusta é um código que um grupo, majoritário, força uma minoria a obedecer, sem que alguém seja responsabilizado (…) um indivíduo que viola uma lei injusta deve fazê-lo abertamente, amorosamente e disposto a aceitar as penalidades. Acusado de extremista entre os seus, sofreu todo tipo de perseguição, muitas com bases legais. King chegou a receber uma carta anônima em 1964 (que hoje sabemos fora enviada de dentro do escritório do FBI de J. Edgar Hoover), cujo conteúdo dizia que ele era uma “besta maléfica anormal”, a carta sugeria que ele se suicidasse caso contrário, revelariam seus casos extraconjugais. Hoover, o grande chefe do FBI acreditava que King sofrera influência do comunismo.

A história da infidelidade conjugal de Martin Luther King é francamente discutida pelos seus biógrafos, mas cheia de controvérsias. Ele fora acusado de ser um “ativista sexual”, de usar dinheiro de dízimo para financiar orgias, de curtir prostitutas brancas dentre outras. Mas o fato é que o FBI nunca usou suas “provas” contra ele, alguns biógrafos dizem que chegaram a mandar a gravação de uma noitada em um hotel para sua esposa, mas que esta se negou a reconhecer se a voz era de seu marido. O fato aqui é: um dos personagens mais importantes dos direitos civis estadunidense não era nada santo.
  
Escrevo isso como modo de responder a uma série de conteúdos que vi essa semana que condenavam a fala da senadora e presidente do PT, Gleisi Hoffman, que em fala recente afirmara que não aceitaria a condenação de Lula. Diversos grupos e indivíduos se manifestaram contra a senadora, disseram: então a senhora não respeita a justiça?

Não estou aqui para defender a senadora ou o Lula, não sou petista, nunca fui...votei em Lula? Sim, duas vezes. Recentemente escrevi um artigo em parceria com a colega, doutora em antropologia, Beatriz Brandão, onde fizemos críticas ao “Estado Penal” na gestão do PT e ao seu “neoliberalismo social”, demonstramos ali como a lei de drogas do governo Lula em 2006 foi injusta ao dizer que reduziria as penas a usuários e aumentaria as dos traficantes... condenando milhares de pessoas por tráfico sem de fato serem, elevando a população carcerária brasileira ao posto de a 3ª maior do mundo.

Combato essa lei injusta, assim como combato a Lei Seca e tantas outras leis que como Luther King escreveu tenho a responsabilidade moral de desobedece-las. Muita injustiça já foi praticada em nome da lei. Homens e mulheres comuns todos os dias são penalizados injustamente com base em leis, por outro lado, a impunidade para os ricos reina por entre artigos, parágrafos únicos e incisos.

Você poderá me questionar, estás comparando a lei segregacionista do Alabama com a lei de responsabilidade fiscal, ou outras leis de combate a corrupção no Brasil? Evidente que não. Há leis injustas e há aplicações injustas de leis justas. Foi Deleuze que disse em entrevista a Toni Negri: “é a jurisprudência a verdadeira criadora do direito; ela não deveria ser confiada aos juízes”. Me lembro das tentativas estapafúrdias para não dizer vergonhosas de deputados ligados ao direito tentando justificar (seria melhor dizer: inventar) uma jurisprudência para o “crime” de Dilma durante o debate na comissão que optou por seu impedimento. Para ao fim, ouvirmos falas como a do senador Cristóvam Buarque que ela não “tinha condições de governar”, como se vivesse em um sistema parlamentarista. Aquele Frankenstein de Janaína Pascoal e Miguel Reale Jr, foi  construído, também, com mãos do legislativo, judiciário, imprensa, sendo transformada na maior peça de ficção jurídica brasileira ao fazer de Dilma a primeira, a única e a última condenada pelo crime de “pedaladas fiscais”.  

Não tenho dúvidas que o TRF4 irá manter a condenação de Lula, não nos termos que Moro estabeleceu, com penalizações mais brandas, suficiente para comprometê-lo eleitoralmente. Significa que Lula é culpado? A questão mais apropriada aqui seria: sobre quais dispositivos legais haverão de culpar o Lula? Que provas concretas serão apresentadas referente a acusação? Elas serão ocultadas do povo brasileiros? Que outros cerceamentos lhe serão impostos após uma segunda condenação?

Se formos mais combativos deveríamos perguntar mesmo é como um caso de tríplex no Guarujá (SP), foi parar nas mãos de um juiz de primeira instância em Curitiba. Isto é, que manipulações legais foram necessárias para levar Lula a Moro? Vários juristas no Brasil e no mundo vem denunciando a fraude disfarçada de legalidade na ação contra Lula, para citar apenas um, o jurista italiano Luigi Ferrajoli, apontou três “traços da deformação do processo contra Lula.” O primeiro seria a confusão entre a acusação e a justiça, o que significa dizer que o juiz instrutor de um processo não pode e não deve fazer parte da equipe de acusação, pois desta forma ele perde sua condição de juiz isento que analisará com o mesmo cuidado as provas e as contraprovas. O segundo traço é o que ele chamou de hipótese acusatória, a hipótese aqui em questão é sobre a propriedade de um tríplex ATRIBUÍDO a Lula, imóvel esse que recentemente sofreu um pedido de penhora da 2ª vara de execuções de títulos. A juíza que mandou executar a penhora alegou que a ordem de penhora não “emite juízo de valores sobre a propriedade do tríplex”, mas a penhora é para a “satisfação” de dividas da OAS e não de Lula. Voltando ao Luigi Ferrajoli, o terceiro traço de deformação do referido processo é a “espetacularização do processo”, onde Juiz e Ministério Público aparecem na mídia, dão palestras (e até cobram por elas), vão a talk shows, manifestam-se sobre o caso e vazam informações sigilosas para a grande imprensa. São muitas as investidas contra a lei feitas por representantes da lei para se alcançar um objetivo; derrubar o Lula.

Dia 24 de janeiro de 2018 entrará para a História (juntamente com o dia 31 de agosto de 2016 - dia do impeachment de Dilma), como mais uma data onde a justiça, o direito e a democracia  brasileira foram envergados e contorcidos para atender aos interesses internacionais sobre o nosso petróleo (que já não é mais nosso e sim da Shell), pois a maior ameaça a esses interesses atende pelo sobrenome de da Silva e sustenta até aqui a liderança nas pesquisas presidenciais.



Jonatas Carvalho.