domingo, março 24, 2024

ENFIM INTEGRADOS!

O dia começou com cabeleireiro às 7h, maquiagem e tranças… tudo muito simples, nossos pequenos hábitos vivendo no centrão de Sampa, agora se contrastava com a paisagem de progresso em um bairro de privilegiados na zona sul. O que era para ser uma troca de alianças frente a um juiz de paz e depois uma churrascaria, virou um pequeno evento, nas palavras da minha marida: rústico e sofisticado. Aos poucos chegaram os familiares, os dela, uma parte vieram de Cruz Alta e Porto Alegre, os meus, do Rio de Janeiro. Tirando os filhos/filhas/filhes, irmãos/irmãs, cunhados e a mãe dela, apenas mais dois casais de amigos estavam presentes, um meu e outro dela. 

O cuidado com que minha irmã e meu cunhado prepararam o espaço, para receber no máximo umas vinte pessoas, é absolutamente indescritível e neuroticamente perfeito. Adentramos o salão de festas, fomos recepcionados com “Eu e a Brisa”, de Johnny Alf, ao som do piano, tocado pela minha sogra e do violão, tocado pelo irmão de minha marida.  Um corredor nos guiava em direção a um banner, devidamente iluminado, onde se podia ler um poema escrito ao modo gaúcho, intitulado “Mas Bah tchê, que baita casório!!”, de autoria de dois amigos da minha sogra e encomendado por ela, para nós. Após muita choradeira enquanto líamos o poema, o povo em nossa volta aplaudia e celebrava. Só mais tarde me dei conta que um verso do poema se conectava aos votos que escrevi para ocasião. Segue o trecho: 

E a vida, assim, vem à tona
quando se forma a família
é qual o amor do Jonatas
pelo amor de Maria Ercília!

Em meus votos, citei a noção de “integração”, que encontrei em Pablo Neruda, 

Depois de tudo te amarei
como se fosse sempre antes
como se de tanto esperar
sem que te visse nem chegasses
estivesses eternamente
respirando perto de mim.

Perto de mim com teus hábitos,
teu colorido e tua risada
como estão juntos os países
nas lições escolares
e duas comarcas se confundem
e há um rio perto de um rio
e crescem juntos dois vulcões.

O que eu não esperava era ver com os meus olhos, naquela mesma tarde o poema se concretizando nas interações entre nossos familiares. Pessoas tão diferentes e distintas, a maioria nunca havia se visto antes, foi o primeiro contato. Observei nossos filhos(es), noras e genros interagindo, rindo, compartilhando. Felipe e Gi, absolutamente extasiades com meu neto, João Vicente, vi meus cunhados interagindo sobre música, minhas irmãs e sobrinha trocando conversas com minha Marida, minha sogra, “coisa mais querida”, praticamente era uma atração à parte, porém completamente inserida à festa. Nossos amigos e amigas, circulavam entre nossos familiares, eu vi uma nova família se formando, um elo, criando por mim e minha marida, gente estranha, de lugares geograficamente opostos, integrando-se. Essa maravilhosa imagem me nutriu ainda mais de esperança, em tempos de cancelamentos, ódio, preconceito, integrar pessoas é por si uma ato de resistência. Espero que este tenha sido o início de uma relação de grandes amizades, camaradagens e parcerias.  

Obs.:

Quanto aos votos dela para mim, bem, eles foram escritos em letra vermelha sobre uma folha de caderno que já tinha sido dobrada e desdobrada várias vezes (sem que ela tenha arrancado aquela parte que fica presa ao espiral), mas nem isto foi suficiente para deter a emoção e as lágrimas enquanto ela pronunciava as palavras mais doces e engraçadas que já me disseram. Ela mencionou uma vida a dois, baseada em cumplicidade, honestidade, responsabilidade e claro, amor. Embora o amor tenha sido mencionado por último no seu texto, é ele que me atravessa antes de todo o resto, quando olho nos olhos dela, quando ela abre aquele sorriso. AMO VOCÊ MARIDA!!  


quarta-feira, janeiro 17, 2024

O DISCURSO MISSIONEIRO EM SÃO MIGUEL DAS MISSÕES E O NÃO-LUGAR DOS GUARANIS.

Eu escrevi aqui, há dias atrás, sobre minha perplexidade na recém estada no Rio Grande do Sul, diante das palavras e expressões dos gaúchos e gaúchas. Foi uma crónica anedótica, um retrato caricaturado, que não tinha qualquer intenção de reduzir os nossos compatriotas das bandas de baixo do país, que é um povo acolhedor, amável e alegre.

Mas ocultei, propositalmente, suas contradições (que também são nossas), o conservadorismo, o reacionarismo, o preconceito de gênero e o racismo, também são dignos de nota daquela região. Não vou me estender aqui, há uma significativa produção textual sobre isso nos centros de produção acadêmicas e de pesquisa por lá. Este texto, é apenas uma reflexão sobre minhas impressões no evento “SOM E LUZ” em São Miguel das Missões.

Chegamos às ruínas de São Miguel Arcanjo no final da tarde, tivemos pouco tempo para contemplá-las à luz do dia, mas uma das primeiras coisas que notei foram duas nativas guaranis, uma senhora e uma moça, recolhendo seus objetos que se achavam sobre um pano estendido ao chão. As ruínas são magníficas, uma impactante obra de genialidade dos arquitetos inacianos e, claro, dos guaranis. Para os interessados no site do IPHAN há maiores detalhes.

Mas foi o conteúdo do espetáculo SOM E LUZ, sem dúvida belíssimo e de enorme qualidade técnica, que mais me impactou. Em especial o roteiro, interpretado por vozes de famosos atores e atrizes nacionais, escrito por um descendente de italianos de Caxias do Sul, Henrique Grazziotin Gazzana, formado em medicina e letras. A ideia do roteiro, sem dúvida é criativa, as ruínas e a terra narram os acontecimentos. Um texto que condena a ganância dos colonos e dos impérios espanhol e português, que engrandece o Guarani, mas acima de tudo é um louvor aos jesuítas. De acordo com o texto, os inacianos ajudaram a enriquecer ainda mais a cultura guarani, sem corrompê-los. Como se a cristianização dos povos indígenas por si só, não fosse uma corrupção. O discurso missioneiro do texto, isenta a Cia de Jesus, ignora que a riqueza produzida pelos inacianos foi gerada pela exploração do trabalho dos povos originários das Américas. Os inacianos são apresentados como as salvaguardas do bom selvagem, como se o projeto jesuítico não almejasse mais nada.

Foto do autor.
Se escrevo isto, não o faço com ausência de fontes, como historiador pesquisei por seis anos as fazendas jesuíticas do Rio de Janeiro, em especial, a Fazenda Campos Novos, sobre a qual escrevi diversos artigos. A Cia de Jesus, tornou-se uma potência mundial, uma empresa moderna, envolvida em toda ordem de exploração, um braço fundamental do projeto colonizador. É claro, que havia inacianos bem intencionados, que de fato se envolveram com os nativos, mas isso não elimina o etnocentrismo.

O roteiro do espetáculo SOM E LUZ, escrito em 1978, reflete esse etnocentrismo, que se traduz ainda hoje na exclusão dos Guaranis, se não a exclusão total, pelo menos o seu papel secundário. Ao olhar o entorno do projeto de São Miguel das Missões, não vemos o nativo em nenhum espaço de poder, as lojas de artesanato ao redor, são de gente branca, os profissionais que atuam no projeto, são gente branca, aos guaranis, sobrou, o pano no chão com sua peças artesanais.



sábado, janeiro 13, 2024

UMA CRÔNICA GAÚCHA - PARA ALÉM DO BAH E O TCHÊ.

Sou um fluminense que vive em São Paulo com uma gaúcha. Nossos primeiros diálogos foram preenchidos de muitas risadas, geralmente, de minha parte, surpreendido por  termos que só tem no Sul. 

Monumento à Cuia - Cruz Alta
Bahhh, eu não devia me surpreender tanto néé, já que morei no Sul e transitei por váaarias cidaaades gaúchas, mas isso faz muito tempo gurizada. 


Ao chegarmos em Porto Alegre fui direto na locadora de automóveis, enquanto concluía o contrato, o homem do outro lado do balcão me perguntou: — E a gerentee não vai pilotar também? Eu só entendi quando ele olhou para o lado, então percebi que a gerente deveria ser a minha marida. 


A noite, o cunhado e sua companheira nos receberam com muito carinho em um apartamento aconchegante no centro de POA, depois de uma churrascada e muita cerveja, foi o momento da música, meu cunhado é especializado nos ritmos regionais, como o vanerão, a milonga, a chacarera e a rancheira. Foi tudo tri, mar eu, já à meia guampa achei que era hora de abrir a barba.

  

Na manhã seguinte enrolamos o poncho e com o pé no estribo, ganhamos na estrada para Cruz Alta, quase cinco horas de viagem, não fomos de vereda,  fizemos algumas paradas para bolear a perna. A estrada cinzenta cortava cidades e mais cidades verdes de soja. 

 

Ao chegar em Cruz Alta, finalmente conheci minha sogra pessoalmente, Dona Beti. Eu precisava ter esse encontro, temia que ela achasse que eu estava a escanteando, mas a verdade é que Dona Beti é mulher de agalhas, de fazer o costado, não é mulher de lagartear, com ela é tiro dado e bugio deitado, ainda assim, ela não perdeu tempo e tratou logo de lamber a cria. 


Assistir minha marida e minha sogra conversando foi de cair os butiás do bolso, uma quantidade incrível de palavras e expressões que só um gaudério compreenderia, mas eu, fiquei mesmo é faceiro que nem guri de calça nova. 

 

As duas não são lá muito dadas a lamber as esporas, gostavam mesmo é de meter a catana sem dar changui, mãe e filha, tão diferentes, tão semelhantes…às vezes uma acusava a outra de estar louqueando. Minha marida não nega as semelhanças, embora fique abichornada com algumas, mas sabem como dizem né? Filha de tigre sai pintada.

  

A casa de Dona Beti é uma espécie de centro de memórias que remontam o Brasil colonial, império e as primeiras décadas da república. A  farroupilha, a guerra civil de 1923 e a “revolução de 1930” ainda estão bem presentes na memória local. Fora isso, Cruz Alta é a cidade de Érico Veríssimo, cheia  de casarios do início do século XX, aqui, o Tempo e o Vento, passam lentamente. 


Mas se vocês pensam que essa viagem foi pura erva-caúna, capaz! Aqui não tem essa de embarrar o pastel, tratamos de campear toda a região. Nosso primeiro destino, São Miguel das Missões, eu e minha marida conhecemos as ruínas de São Miguel Arcanjo, terra Guarani (no próximo texto eu comentarei minhas impressões). Trata-se de uma cidade com um pouco mais de sete mil habitantes, ainda assim me perdi, abordei três guris que caminhavam pela rua, com latas de cervejas nas mãos, perguntei: 

— Vocês sabem como faço para ir pro centro da cidade?  

— Segue em frente até a rotatória, daí! Eu retruquei:

— Até a rotatória e depois? A resposta veio com risos por parte dos guris: 

— A rotatória é o centro, daí! 


No dia seguinte estivemos em Boa Vista do Cadeado e Ijuí. A primeira pequininha, menos de três mil habitantes, com meia hora de carro a gente percorreu o lugar, um cenário de interior. A segunda, maior até que Cruz Alta, mas com poucos pontos turísticos, visitamos um parque natural e comemos em uma churrascaria gaúcha. De volta a Cruz Alta, comi uma Marta Rocha que é marca de estância velha por essas bandas.  


No mais, em quatro paletadas eu já estava dobrando o cotovelo, porque carioca é assim mesmo, como dizem os gaúchos, nós aguentamos o tirão e não somos muito de juntar o torresmo. Agora tá na hora de encerrar essa conversa, pois os mosquitos estão me charqueando e os cupinchas então me esperando para aquela mateada. 


Bahhhh!!