domingo, fevereiro 28, 2016

COMO FUI DEMITIDO DE UMA ESCOLA POR CITAR DE BRINCADEIRA QUE TERIA USADO DROGAS

Geralmente eu costumo carregar meus textos com a ironia, por acreditar que ela é uma poderosa forma de nos levar a reflexões mais profundas. Mas gostaria de pedir a você leitor, que mesmo que eu lhe pareça irônico, escrevo essas linhas com a maior serenidade. 

Na última quarta-feira (24/03) fui trabalhar normalmente na escola que começara a lecionar esse ano, seria meu segundo encontro com os alunos. Para minha surpresa, verifiquei que o horário das aulas de filosofia havia mudado para um dia que eu não havia me disponibilizado. Ao procurar o coordenador vi que ele estava meio apreensivo e me pediu para conversarmos. Disse-me que estava só aguardando a direção para ver qual “deliberação seria tomada”. 

Se você está dizendo para si mesmo “não estou entendendo nada!” Eu explico. Na minha primeira aula, me apresentei para as turmas do 8º e 9º anos como pesquisador e professor. Disse-lhes brincando que amo pesquisa, mas odeio lecionar, que só fazia aquilo para complementar a renda. Em seguida disse-lhes que realizava pesquisas em duas frentes distintas, uma era sobre uma Fazenda Jesuítica do século XVII em Cabo Frio- RJ e outra sobre a criminalização das drogas no Brasil. Que sobre esse último tema eu havia escrito um livro. Voltando a brincar com eles, falei que para a realização da minha pesquisa com drogas eu precisei experimentar todas, e que havia ficado dependente, que estava me tratando e que só usava uma pedra de crack uma vez ou outra. Comentei por fim que se tratava de uma brincadeira e em seguida mencionei sobre minhas pesquisas na Fazenda na área de história das ciências. Após essa pequena apresentação iniciei minha aula inaugural, comecei com uma dinâmica que tratava sobre paradigmas, todos participaram com entusiasmo, modestamente foram duas ótimas aulas. Eu também lecionei para o 6º e 7º anos, mas não mencionei sobre minhas pesquisas me apresentei de outra maneira para os menores. 

Ao retornar para casa, feliz pela participação das turmas nas aulas, recebi um telefonema do coordenador, algumas mães apareceram na direção para se queixar que o professor de filosofia teria feito “apologia” as drogas em sala de aula. Eu expliquei ao coordenador que não se tratava disso. O dicionário define dessa forma a palavra apologia: 

substantivo feminino 1.ret discurso ou texto em que se defende, justifica ou elogia (esp. alguma doutrina, ação, obra etc.). 2 p.ext. defesa apaixonada de (alguém ou algo) [ger. pessoa singular, incomum]; elogio, enaltecimento.

Agora sim meu caro leitor, podemos voltar ao primeiro parágrafo, sem o risco de você boiar. Eu imaginei que conversaríamos sobre o assunto, que no máximo me seria pedido para não brincar mais assim. Afinal de contas eu não fiz apologia a nada, sequer discuti ou apresentei minha posição sobre o tema, mesmo tendo sido provocado por um aluno que me perguntou se eu era contra ou a favor da descriminalização. Falei que talvez pudéssemos discutir isso em outra ocasião. Mas quando verifiquei a mudança de horário no quadro de horários eu entendi que não seria só isso. Me disseram que estavam ali para me ouvir (mas já haviam tomado uma decisão), todavia, não quis sair sem parecer que me recusava a esclarecer e resolvi falar. Comecei dizendo-lhes o quanto alguns temas ainda são tabus em pleno século XXI, são temas proibidos. Lamentei o fato de sua decisão, disse-lhes que por anos fiz consultorias para escolas públicas e privadas e geralmente eu me deparava com a total falta de conhecimento dos profissionais e como resultado, um invariável número de preconceitos sobre o tema. 

A orientadora ainda me disse que uma menina (9º ano) ficou extremamente constrangida, porque eu havia dito que ela tinha cara de quem “dava um dois”....Eu disse pra ela porque era a única que não parava de rir enquanto eu contava minha história fictícia, mas no fim da aula me aproximei dela, perguntei seu nome, estendi minha mão, ela segurou e me disse o nome, eu falei que ela era uma moça muito bonita. Repeti o gesto para outras meninas, brinquei com os meninos que vieram até a mim para se desculpar por chegar atrasados em sala.

Perguntei a diretora se eles se deram o trabalho de saber como foi minha aula. Ela contou que foi em todas as turmas e que todas, sem exceção, elogiaram a aula. Por fim, ela ainda me disse que tinha certeza que eu teria muito para oferecer e enriquecer ao projeto da escola, mas que como diretora precisou responder a altura a demanda dos pais. Enquanto eu a ouvia, podia notar o constrangimento na face do coordenador. 

Nossa sociedade ainda possui um index prohibitorum, e eu resolvi escolher para pesquisar justamente um tema que está condenado. E que sequer pode-se brincar a respeito. Só estamos autorizados a falar sobre o mesmo, se for para repetir a propaganda proibicionista, de que as drogas são ruins e devemos nos afastar delas. O tipo de discurso que sustenta essa hipocrisia, sobretudo nas camadas sociais mais elevadas, como é o caso da clientela da referida escola, onde os pais podem comprar garrafas de whisky ou conseguir receituários de substâncias psicoativas controladas. (Não estou afirmando que é o caso dos pais que se queixaram). 

Ao final de nossa conversa, eu tive sensação que se houvesse um observador ali, teria notado minha cara do tipo “não acredito que vocês estão me demitindo por isso!” e a cara deles do tipo “ não acredito que você fez isso e acha que não fez nada demais!” 

Eu não os condeno pessoalmente. Eu lamento que esses tabus ainda não tenham sido superados, que haja palavras ainda tão temidas de serem mencionadas em sala de aula. Lamento a total falta de tolerância, talvez se eu tivesse roubado um lápis de um aluno eu teria sido advertido, mas continuaria lá. Se eu tivesse xingado um aluno de acéfalo, eu seria advertido, mas a situação seria administrada pela coordenação. Mas eu mencionei a palavra proibida. Se eu tivesse dado uma cantada na diretora ou outra professora....sei lá....quantas merdas eu já testemunhei por ai nesses anos todos e que foram toleradas, foram resolvidas com diálogo. Ainda ouvi a diretora afirmar que justamente a filosofia que teve tantos candidatos (algo que me soou como: e escolhemos logo um louco), eu, embora tenha pensado, não lhe disse que não fui contratado pelos meus belos olhos, mas porque tinha um currículo que não se encontrava em qualquer esquina. Meu currículo, no entanto, foi insuficiente para me manter empregado. 

Jonatas Carvalho
Autor do livro: Regulamentação e criminalização das drogas no Brasil:A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes - 1936-1946 - Editora Multifoco.
É pesquisador nível A pelo CNPq no projeto Espaço Charles Darwin
Professor há alguns anos.