sexta-feira, dezembro 29, 2023

SOBRE O "LAR"

 Foram doze dias com eles, meus filhos, o genro e a nora, visitei meus poucos amigos, passei a noite de natal com minha irmã mais velha na casa da minha sobrinha e seu marido. 


Amo estar com meus filhos, é sempre especial. Sempre me pego pensando no quanto é incrível ver aqueles indefesos serezinhos que peguei no colo, hoje tão autônomos, que tocam suas vidas, tomam decisões sérias, sejam elas profissionais ou pessoais. 


Eu li em algum lugar nesta semana que o lar, não é apenas onde nos sentimos acolhidos, mas é o lugar em que encerramos nossas fugas, gosto dessa definição, mas gosto mesmo é da  definição romana (de onde herdamos a palavra lar), em que “lar” é onde se acende o fogo para cozinhar e para se aquecer  (a palavra lareira vem daí). 


Amo estar com meus filhos. Hoje, vivendo em outro Estado, só consigo fazer isso em momentos de férias e feriados prolongados. Mas após alguns dias, a vontade de voltar ao meu lar é gigante, sim, sou muito bem tratado pelos meus filhos, mas não tem nada que se compare ao nosso cantinho. 


O lugar de cozinhar e se aquecer, e, por isso mesmo, o lugar de compartilhar a comida e o calor com outrem, alimentando e sendo alimentado, aquecendo-se mutuamente, isto é uma dádiva. No meu caso, sou um privilegiado que com tão pouco tempo em São Paulo, posso dizer que estou com um lar em pleno desenvolvimento. 


Sim, desenvolvimento, porque lar é sempre uma construção, não uma coisa estática, mas algo vivo e em movimento (o alimento e o calor precisam ser renovados). Lar não é ausência de conflito, mas é, sobretudo, espaço de conciliação. É uma puta de uma satisfação, sentir aquela palpitação, quando estamos retornando ao lugar em que nos sentimos absolutamente à vontade, onde podemos ser nós mesmos. 


Lar é reciprocidade, ternura, mas também é revolução. Pois só é possível desenvolver um lar quando nos desprendemos de nós. Claro, isso aqui não é um texto de “faça você também como eu”, não tenho qualquer intenção de ser coach sobre nada. Trata-se de uma reflexão, minha, apenas minha, que não se roga de ser verdadeira sobre nada. 


Meus filhos estão desenvolvendo seus lares, e já se depararam com muitos obstáculos, isso porque, um lar não é projeto que se realiza só, ele é coletivo, envolve todos que  o habitam, se isso, por uma lado, pode ser mais trabalhoso, por outro, certamente, o tornará muito mais complexo, dinâmico e sólido. 


Retornarei ao meu lar hoje, quero encher de beijos e carinho minha marida, desfrutar da sua companhia que tanto me apraz, agrada, contenta, deleita, satisfaz, delicia, aprecia, alegra, regala, anima, encanta, diverte, sorri, compraz, enleva, regozija, letifica, distrai, entretém… LAR.


Obs: Meus sentimentos de pezar aos povos e grupos sociais que tiveram seus lares destruídos pela violência da ganância de alguns.   


sábado, dezembro 23, 2023

A LIMPEZA ÉTNICA, PROGRAMADA, ANUNCIADA E ASSISTIDA EM TEMPO REAL.

 

"A recente abstenção dos EUA e a aprovação de uma resolução da ONU contrária ao prosseguimento dos assentamentos judaicos em áreas palestinas não interferirá no projeto do Estado de Israel. Donald Trump que condenou a abstenção dos EUA, retomará relações com Netanyahu, os anos que se seguirão serão ainda mais terríveis para os palestinos." CARVALHO, 26/12/2016. 


Já se passaram sete anos desde que escrevi, aqui mesmo neste blog: "A NOIVA É BELA, MAS É CASADA COM OUTRO HOMEM." (clique para ler), uma análise da situação dos palestinos com os crescentes assentamentos judaicos na região da Cisjordânia. Como vocês podem ler no recorte acima, na ocasião, eu terminei o texto com uma sentença: "os anos que se seguirão serão ainda mais terríveis para os palestinos." Evidente que não se trata de profecia, aliás, nós historiadores somos compelidos a não produzir prognósticos. Eu, pessoalmente, me empenho em não cair nessas armadilhas de tentar determinar, a partir do presente, o que poderia ser o futuro. Bem, se o que escrevi em 2016 não é um prognóstico, então é o que? Eu poderia teorizar aqui a partir da Marc Bloch, sobre a incompreensão do presente e a ignorância do passado, ou mesmo sobre a repetição histórica como tragédia e depois como farsa (Marx). Nada disso é necessário, trata-se apenas de olhar o tempo histórico, os acontecimentos desde os primeiros crimes sionistas no final do XIX e início do XX, acobertados pela potência imperialista da época, a Inglaterra, até os crimes de guerra cometidos pelo Estado de Israel, acobertados pelo novo poder imperialista: os EUA, logo: é a própria história dos imperialismos.  

Esta é uma história que as gerações futuras, olharão e se perguntarão: como normalizamos isso? Como fazemos hoje quando pensamos na escravização das sociedades africanas por quatro séculos, ficamos aterrorizados com os argumentos pró-escravização no século XIX.  Em um futuro não muito distante, nossos sucessores olharão as fontes... jornalistas, historiadores, sociólogos e outros, se depararão com a obviedade: tratava-se de uma limpeza étnica, até então, sem precedentes na história. Mas se era tão óbvio, até para nós do presente, por que permitimos? A resposta não é simples, mas escolherei aqui uma abordagem: trata-se de uma das mais bem sucedidas tecnologias de poder dos últimos tempos, que a filósofa e psicanalista Suely Rolnik chamou de “antropofagia neoliberal”; um instrumento de produzir subjetividades absolutamente voltadas para si, cujo maior efeito é nos manter tão egoisticamente mergulhados nas nossas questões, que somos incapazes de nos articular em função do outro. No máximo, nos engajamos via redes sociais, fazemos vaquinhas, ações que pouco modificam a realidade, mas que ajudam a diminuir a culpa que sentimos. Como zumbis, devoramos apenas o que serve ao nosso ego consumista.  

Os motivos dessa limpeza étnica eu já abordei aqui (uma perspectiva) em OS SENHORES DO CÁLCULO, DA GUERRA E DA FOME, já quanto aos requintes de crueldade com que o Estado de Israel elimina os palestinos, nos lembra os colonialismos dos grandes Impérios como a Grã-Bretanha na Índia ou o Congo sob o domínio de Leopoldo II. O deslocamento de massas populacionais, a destruição de bairros inteiros, até mesmo cidades. O que é pior, a destruição de unidades hospitalares, impedindo que os feridos sejam tratados, o bloqueio de luz, de água e comida. Mas o bárbaro é o outro. Quando escrevi "O SENHOR DA GUERRA NÃO GOSTA DE CRIANÇAS" (10/11), Gaza, já sofria com os bombardeios por parte de Israel por um pouco mais de 30 dias, a contabilidade, na ocasião, era de 4 mil crianças mortas. Desde então, passados 42 dias, mais 3,7 mil crianças morreram, ao todo são quase 8 mil crianças. Em que uma criança palestina é diferente de uma criança israelense? Como o massacre e o extermínio de um povo não resulta em total paralisação do mundo?  

Foto: Monitor do Oriente. 

Se a limpeza étnica dos palestinos foi programada e anunciada, ela também foi combinada com os conglomerados de comunicação (co-partícipes-financiados dos conglomerados das guerras), a ocultação de informações se converte na ocultação do massacre e de um mar de cadáveres. A adoção do título Israel X Hamas, para “cobrir” jornalisticamente o que vem ocorrendo na Palestina, tem por objetivo desinformar, por meio de um viés puramente favorável ao projeto colonial sionista. O caso do Congo, também pode ser um grande exemplo, o que sabemos sobre o que ocorre por lá? Quem são os grupos privados a financiar a “República Democrática de Congo” que está promovendo o maior deslocamento humano do século XXI? Estamos falando de mais de 6 milhões de deslocamentos internos e 1 milhão de refugiados. São informações que sequer aparecem nas notas dos jornais. Por quê?  

Os conglomerados das guerras investem milhões em armas, parte desses investimentos são provenientes de recursos públicos (isto é, dinheiro público) como vem ocorrendo nos EUA, cujo congresso aprova milhões “destinados à Ucrânia”, mas 90% do valor liberado vai para as empresas estadunidenses. Outro fator interessante é que, por um lado, os conglomerados das guerras financiam a destruição de outros povos, tomam o território e controlam a geração de riqueza natural-mineral, por outro, os sobreviventes deslocados, os campos de refugiados, são mantidos precariamente com ajuda dos governos e organismos multilaterais (mais dinheiro público), que estão a serviço destes mesmos conglomerados. Ao fim, os lucros são repartidos entre os conglomerados, já a destruição e os custos dela, são compartilhados entre os Estados-Nação e a sociedade civil, como Cruz Vermelha, Médicos sem Fronteira… 

Voltemos mais uma vez à questão: por que não há uma grande comoção social sobre o que ocorre na Palestina? Os conglomerados que financiam e lucram com as guerras, não contam apenas com as grandes redes de comunicação do mundo, contam, também, com as redes de entretenimento, como Hollywood e, claro, as Big Techs. Mas não apenas isto, eles financiam ainda a indústria de fomento em ciência, pesquisa e tecnologia. Vladimir Safatle, nos chamou a atenção para o silêncio dos intelectuais diante do que vem ocorrendo na Palestina. Após a emergência e fortalecimento do debate anticolonial e decolonial no Brasil, como se justifica o silêncio de grandes intelectuais brasileiros diante de um caso absolutamente clássico de colonialismo? A resposta? O poder econômico que os conglomerados sionistas possuem é capaz de inviabilizar tanto a carreira artística, quanto a acadêmica de quem ousar utilizar sua imagem famosa para criticar o massacre dos palestinos. Poucos corajosos se atreveram, alguns já estão pagando o preço. 

QUE A RESISTÊNCIA do povo PALESTINO nos encoraje a lutar contra toda forma de colonialismo, sionismo ou imperialismo. Estejam eles ocorrendo na Palestina, no Congo, ou mesmo em Maceió, Rio de Janeiro, São Paulo…. 

Jonatas Carvalho 

Historiador/Professor. 


domingo, dezembro 10, 2023

O PODER DA FALA E DA ESCUTA.

Na manhã deste domingo, eu e minha marida caminhávamos pela Augusta, então surgiu um homem atrás de nós, ele esbravejava, uma situação que vemos com alguma frequência quando se caminha pelo centro, mas então ele quebrou algo de vidro, não vimos exatamente o que era, mas ficamos alertas, ele xingava muito.

Preocupado eu propus que virássemos à esquina, na esperança de que ele seguisse em frente, mas ele virou também e em seguida nos abordou. Era nitidamente alguém em situação de rua, estava alterado, falou algo sobre pagar um prato de comida. Eu calmamente disse-lhe que que estávamos caminhando e não tínhamos nada conosco, então ele me interrompeu e disse:

— Calma, eu não tô pedindo nada ao Sr, estou explicando. E seguiu andando ao nosso lado.
— Eu entrei no bar ali em cima, perguntei se alguém podia me pagar um almoço, o garçom, que não era dono nem nada, me esculachou e me deu uma porrada na cara. O Sr. acha isso certo?
— Eu não acho não. Respondi.
— Ele falou que eu era um merda… falou mais algumas coisas das quais eu não lembro exatamente. Eu o interrompi.
— Desculpe, mas qual é o seu nome?
— É Odair.
— Odair, eu realmente sinto muito que você tenha passado por isso. Ele acenou e continuou:
— Eu não sou ladrão não, já roubei, mas nunca roubei pobre. Hoje eu odeio ladrão. Tenho quatro filhos esperando que eu leve algo pra eles comerem. O cara não sabe quem eu sou e acha que pode me dar um soco na cara porque eu tô pedindo comida?
Concordei com ele, e o interrompi novamente.
— Eu lamento muito por você Odair, desculpe não poder lhe ajudar.
— Tá tudo certo Sr. bom dia pra vocês.
— Espero que o restante do seu dia seja melhor.
— Obrigado. Odair seguiu seu caminho.

Minha marida, Ercília, estudante de psicanálise, assistiu a tudo calada, então fez uma observação fascinante.
— Como a escuta é terapêutica, né? Veja como ele, depois de falar sobre sua dor, agora segue seu caminho mais tranquilo, não está mais esbravejando e gesticulando como antes. É claro que ele ainda está ferido, mas já está mais calmo. Só porque alguém se dispôs a escutá-lo.

Eu concordei. Discutimos um pouco se o “poder terapêutico” se achava na escuta ou na fala, concluímos que era a combinação de ambos, ou seja, o falante precisa sentir que quem o escuta lhe escuta com atenção. Mesmo não sendo uma escuta treinada, preparada, às vezes, o simples fato pararmos para ouvir alguém, já produz efeitos terapêuticos naquele que fala, e, em muitos casos, naquele que ouve também.

Nós, inicialmente, vimos o Odair como mais um dos milhares de indivíduos em situação de rua, pensávamos que ele estava alterado devido ao álcool ou outra substância, mas era um ser humano (como todos os outros que vivem em condições semelhantes e ele), passando por um enorme sofrimento, e se não bastasse toda a dor que é viver nessas condições, ele ainda tem que lidar com a violenta desumanização cotidiana.

Escrevo esta história horas depois do ocorrido, passamos o dia na casa da filha da minha marida, comemos, bebemos, como em um domingo qualquer, mas não consegui tirar Odair da cabeça.

Odair me fez lembrar do tempo em que eu vivi na rua, muitas vezes eu sofri essa desumanização, só consegui sair dessa situação de rua com ajuda. Eu lamento mesmo é por essas pessoas que insistem em desumanizar os outros, pobres de espírito e péssimos seres humanos. Já os Odairs da vida, estes, têm muito a nos ensinar.