domingo, dezembro 08, 2019

O PROJETO DE OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA E O TRABALHO DE ESCRAVIDÃO POR DÍVIDA.

As poucas linhas que porei abaixo, em parte por minha limitação de conhecimento sobre o tema, em parte por se tratar de um recorte muito específico que terá como referência um capítulo do livro "Fronteira: a degradação do Outro nos confins humanos" de José de Souza Martins. Antes, penso ser importante escrever algo sobre o autor, José de Souza Martins é sociólogo, professor titular aposentado do Departamento de Sociologia e professor emérito da faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Foi vencedor de um prêmio Jabuti na categoria Ciências Humanas ao escrever "Subúrbio" em 1994. Com uma vasta obra e uma diversidade de temas de pesquisa, José de Souza Martins deixa um legado intelectual sobre a vida social no Brasil como poucos. 

No que diz respeito as condições do trabalho no Brasil, as contribuições do cientista social são enormes, autor de "O cativeiro da terra", publicado pela primeira vez em 1979 (hoje se encontra na 9º edição pela editora Contexto), Martins propõe que a chamada transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado não ocorreu como se imaginou após o fim da escravidão em 1888, e parte da "Lei de Terras" (1850), para demonstrar como as elites agrárias planejaram tal transição. Na prática, o trabalho escravo segue existindo por lógicas que segundo o autor estão associadas a um modelo específico de acumulação de capital, sobretudo, nas áreas rurais do país. 

Voltando ao "Fronteira" (2009), também pela editora Contexto (utilizo aqui a 2ª edição de 2018), um livro que o autor aborda temas delicados da vida de quem habita os "confins do humano", isto é,  as regiões fronteiriças do Brasil. O primeiro capítulo "A captura do Outro" é dedicado a questão do rapto de humanos, especialmente de indígenas, Martins trabalha com 150 casos de raptos entre 1930 e 1996, histórias que envolvem principalmente mulheres e crianças. O capítulo seguinte, e que me fez escrever estas linhas, intitulado "A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da escravidão", onde retoma em parte a discussão iniciada em "O cativeiro da terra". Seu ponto de partida é o projeto "Operação Amazônia", projeto este estratégico de ocupação da Amazônia levado a cabo ao longo dos governos ditatoriais, iniciado em 1966, portanto, na metade da gestão de Castelo Branco. 

A Operação Amazônia, que teve como lema "integrar para não entregar", propagou que o Brasil iria se empenhar em ocupar os "espaços vazios" para salvaguardar o território nacional das "supostas e gananciosas potencias estrangeiras" (p.74). Não há como deixar de relacionar estes tempos com o recente projeto de governo de Jair Bolsonaro, mesmo com certas distinções discursivas por parte dos generais do capitão (Mourão e Heleno), é impressionante as semelhanças, o inimigo é outro (as Ongs), mas a ameaça continua. Semelhante é também o projeto de ocupação, a saber: a expansão dos latifundiários voltados para o agronegócio as custas da dizimação das nações indígenas que por lá habitam há séculos. Para entender melhor essa história recente, recomendo o belíssimo texto da jornalista Fernanda Wenzel, publicado na https://www.oeco.org.br/

Voltando a 1966, a ocupação efetivou-se por uma série de projetos, dentre os quais se previa a geração de quarenta mil empregos, para isso o governo ditatorial apostara nos incentivos fiscais como meio de atrair grandes empresários das outras regiões brasileiras. Assim, restruturam o Banco da Amazônia, e transformaram a a Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA), em Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). A grosso modo, a ideia era a seguinte, o governo ofereceu 50% de desconto no imposto de renda das empresas que tinham negócio no país, esse dinheiro era depositado no Banco da Amazônia para a criação de um fundo de investimentos. Aqueles que estivessem dispostos a investir na ocupação do território, teriam que apresentar  um projeto ao banco e, se aprovado, sairia dali com 75%  do capital necessário, cabendo aos empresários arcar com os outros 25%. O resultado foi desastroso para a região, até a Volkswagen resolveu criar gado em uma fazenda com 140 mil hectares no sul do Pará. O projeto "gado do futuro" da empresa não deu os resultados esperados, sobretudo, após uma série de denúncias sobre as condições dos trabalhadores (aproximadamente 400), essa história está muito bem documentada no obra "Volkswagen in the Amazon: The Tragedy of Global Development in Modern Brazil (Global and International History)" de Antoine Akcer

Neste ponto está a importância da pesquisa de José de Souza Martins, para ele o fato dos novos proprietários de terra na Amazônia terem tradição nos negócios urbanos (como a Volkswagen), não os impediu de reproduzir em suas fazendas modelos de trabalhos em condições análogas a de trabalho escravo. Em sua pesquisa, são citadas 431 fazendas em que ocorreram denúncias de trabalho escravo, entre os anos de 1970 e 1993, destas 308 eram na Amazônia, a pesquisa também indicou que neste período, somadas as denúncias, houve mais de 85 mil trabalhadores escravizados. Todavia, o número que já assusta, na verdade está longe da realidade, uma vez que muitos casos nunca foram denunciados, Martins aponta outros estudos onde o volume de peões trabalhando na estação da seca na Amazônia na década de 1970 poderia variar entre 250 e 400 mil. (p.77). 

Foto - CNBB
Em maior parte (72%), os trabalhadores eram contratados no desmatamento para abertura de áreas (fazendas) para a agropecuária, outro dado alarmante é que 53% dos peões escravizados, foram empregados nesta função. Significa dizer que a construção dos latifúndios na chamada Amazônia Legal foram em sua grande maioria estabelecidos por meio do trabalho de dívida, isto é, os trabalhadores eram recrutados em outras regiões (principalmente no nordeste) e eram submetidos a duras jornadas de trabalho sem quaisquer condições de abandonar o "emprego", uma vez que o custo de sua estadia (moradia e alimentação) superava o de seu salário. 

O negócio do trabalho escravo ainda contava (e conta) com uma significativa rede de comércio (legal e ilegal), e porque não dizer, um complexo sistema de pequenos negócios que se alimentam do trabalho escravo.  Martins (p.89), cita alguns, como os traficantes (responsáveis pelo recrutamentos dos trabalhadores), os donos de prostíbulos (cujas prostitutas vivem em condições semelhantes aos peões, isto é, trabalho por dívida), onde os peões que conseguem algum saldo o gasta com tal diversão, há ainda os vendedores de roupas e bugigangas (rádios, pilhas, relógios, outros), Martins inclui também, a polícia que prende forasteiros e aventureiros e lhes confiscam tudo, restando-lhes a "peonagem", por fim, os pistoleiros empregados por traficantes e capatazes das fazendas para o serviços de vigilâncias e disciplinas dos peões além da captura dos fujões. 

Um levantamento realizado pelo Ministério Público do Trabalho e a Pastoral da Terra, divulgados pela Comissão Nacional de Justiça (CNJ) no início deste ano, apontavam que entre 1995 e 2018, 53,609 trabalhadores foram resgatados nas mais de 2 mil operações realizadas no período. Os números, embora ainda impressionantes, apontam para uma redução deste tipo de trabalho quando comparado aos 85 mil da série anterior. Trata-se ainda de verificar que ao longo desse último período, mais precisamente entre 1995 e 2007 os índices de desmatamento na Amazônia seguiram alarmantes (média de quase 20 mil km²), o que nos faz pensar que os números do trabalho escravo no Brasil seguem não representando a realidade.  O desmonte das estruturas de fiscalização tanto do Ministério do Trabalho, da Funai, do Ibama, contribuirão ainda mais para o renascimento desta prática. Em 2019 o desmatamento atingiu sua maior série histórica dos últimos 10 anos (9.762 Km²), isso não seria possível sem a mão de obra do trabalho por endividamento ou outros modelos semelhantes e análogos ao trabalho escravo.   

                                     Jonatas Carvalho
Historiador e Doutorando em Sociologia e Direito pela UFF