sexta-feira, dezembro 30, 2022

A "ARTE" DA ESCUTA.

Uma das primeiras e mais primorosas obras sobre a audição foi escrita no início da era cristã, trata-se do Tratado da Escuta (Perì toû akoùein) de Plutarco de Queronéia que viveu entre 50 e 125 d.C. Plutarco é reconhecido como historiador e filósofo, suas obras estão dentre as mais importantes fontes sobre a cultura greco-romana. 

Mas por que haveria alguém a pensar sobre a questão da escuta há dois mil anos? Desde Sócrates o homem se torna de certa forma o ser a ser revelado. Claro, Plutarco escreveu muito sobre outras coisas, matemática, por exemplo. Escreveu também uma obra sobre Alexandre o Grande. Mas interessava a ele, assim como tantos outros discípulos de Platão e Aristóteles, desvendar o ser. 

Então ao tratar sobre os sentidos humanos, olfato, visão, tato, audição, nosso filósofo-historiador se dedica mais a este último. Mas por quê? Não seriam eles igualmente importantes? Haveria algum que se sobressairia sobre os outros? Para Plutarco a questão da escuta merece destaque, ele conclui: "Não se pode não ouvir o que ocorre ao redor de si." Significa dizer que se pode recusar olhar (fechamos os olhos), tocar algo, saborear, mas não se pode recusar ouvir. Por isso, ouvir é pathétikos, isto é, carrega uma passividade em si. Esta passividade, segundo Plutarco, pode ser perfeitamente percebida no corpo, quando este é surpreendido ou abalado pelo que se escuta. Mas o ouvir não é apenas pathétikos, é também  logikós, quer dizer, nenhum outro sentido pode apreender o lógos como o ouvir. Significa que a virtude ou as “sementes da virtude” só podem germinar em nós pela escuta. 

Não é por outra razão que as escolas pitagóricas infligiam o silêncio nos cinco primeiros anos aos iniciados. O silêncio aparece aqui como uma técnica (
tékhne - arte) da escuta, não uma arte no sentido estrito da palavra, pois é mais uma competência, uma habilidade, trata-se tão somente de apreender o lógos, escutar sem intervir, sem objetar, sem opinar, sem acrescentar, sem considerar, apenas escutar. Plutarco, por sinal, chega a conclusão que o tagarela sofre de uma anomalia curiosa: o ouvido do tagarela não se comunica com a alma, mas sim com a língua. 

O silêncio não é suficiente para uma escuta virtuosa, a passividade então dá as mãos a uma atitude, ou seja, uma postura ativa, a saber: a alma deve acolher sem perturbações a palavra (lógos) endereçada. O corpo deve reagir tranquilamente, o mais imóvel possível a fim de ponderar o que se ouviu. Quanto a esta imperturbabilidade da alma, tanto Sêneca como Epicteto deixaram muitos ensinamentos, este último, um escravo-filósofo, dissera: “quando quiseres ouvir um filósofo, não lhe perguntes: O que tens a dizer-me? Contenta-te em mostrar tua própria competência em ouvir.” 

Finalmente, essa “arte da escuta” que requer o silêncio, mas também um acolhimento sem perturbações da alma para apreender o lógos, necessita ainda de um autoexame. Plutarco usa como analogia um salão de cabeleireiro, pois nunca deixamos um salão sem ter lançado um olhar, mesmo que por vezes discreto, ao espelho para ver como ficamos. A escuta agora é também reflexiva, ela implica em verificar se o que ouvimos (aquela verdade), pode ou deve fazer sentido para si, se vai acrescentar a si, se devemos fazê-la nossa verdade. 

A relação palavra-escuta é absoluta, uma não pode ser separada da outra, é possível ouvir sons que não são palavras (a natureza por exemplo), mas esses sons só ganham “sentido” quando convertidos em signos (palavras), segundo alguns, este é nosso diferencial ante as demais espécies; ter constituído sentido para o que fazemos por meio de signos. 

A razão iluminista sequestrou a palavra (razão), transferindo o poder de dizer a verdade apenas ao homem branco ocidental e bem nascido, aos demais humanos, caberia apenas ouvir essa verdade que se pretendia única e universal. Freud surge nessa sociedade, em que por exemplo, o médico era o único detentor da verdade sobre a doença, caberia a ele observar e diagnosticar o paciente, sem sequer ouvi-lo. Ele subverte esta medicina niilista por uma proposta que implica duas ações: escutar as palavras do outro e produzir palavras que iriam ao encontro das demandas do outro. A psicanálise subverte a medicina ao considerar as singularidades humanas, o “paciente” passa a ser “ativo” no que tange a cura. 

Ao introduzir a noção de inconsciente a fala é deslocada para um lugar outro, não mais aquele da razão, mas um lugar em que a fala se expressa para além das palavras, o corpo se comunica, diz ou deixa de dizer, o que também é um dizer. Mas o que nos importa aqui, onde Fred dialoga com o que escrevi até aqui, é como ele propõe uma escuta treinada, ou um “método da escuta''. Segundo ele, o domínio técnico para uma boa escuta só pode ser alcançado com a experiência clínica, o que significa muito mais que clinicar, tem a ver com a “escuta de si”, isto é, uma análise pessoal, um autoanalisar-se. 

Sabemos o quanto os gregos foram importante para Freud, sabemos como os mitos gregos instrumentaram seus escritos. A tragédia grega exprimia as origens dos sentimentos humanos, dos nossos desejos mais sórdidos e de nossa vilania. A moral e a religião são o núcleo de todas as neuroses. Em 1933 ele escreveu: “A teoria dos instintos é, por assim dizer, nossa mitologia. Os instintos são entidades míticas, magníficos em sua imprecisão. Em nosso trabalho, não podemos desprezá-los,nem por um só momento, de vez que nunca estamos seguros de os estarmos vendo claramente”.  

Claramente o ouvir o outro é o princípio fundamental para se estabelecer laços e estreitamentos. Podemos saber de alguém observando suas atitudes, o modo como reagimos a vida revela muito sobre nós, mas só se conhece alguém, só é possível saber as necessidades do outro ouvindo-o. Isto exige de nós pelo menos duas qualidades básicas, a da alteridade, isto é, saber que o outro é diferente de você, logo, ele reage ao mundo de modo igualmente diferente, nem melhor, nem pior, apenas diferente. A outra é a empatia, ou seja, a capacidade de apreender do modo como o outro aprende, isto é mais que compreender, trata-se de se colocar no lugar mesmo do outro, sem senãos, sem pré-juízos, apenas estar lá “junto-com” e “sentir-com”. Em tempos em que somos mediatizados por milhões de imagens e palavras, quando muito se quer falar, mas não escutar, que possamos fazer um movimento de voltar a ouvir com mais qualidade. 


* A história de Plutarco e a sua obra sobre a escuta me apropriei da obra de Foucault " A Hermenêutica do Sujeito" 1981-1982.

 

terça-feira, dezembro 27, 2022

SAUDADE DE TI

Sinto saudade de ti como a lua sente do sol, 

com a cuia sente da bomba, 

como o colibri sente da flor, 

como a terra sente da chuva. 

Tenho saudade de ti, 

como as marés tem da areia da praia, 

como o palhaço tem da criança, 

como o orvalho tem da folha. 

A saudade de ti me consome, 

como o fogo faz com a madeira seca, 

como o mar ressacado faz com a costa, 

como as horas faz com o dia. 

A saudade de ti me dá esperança, 

como a paz nos tempos de guerra, 

como a justiça ao condenado, 

como flor a espera do sol para desabrochar,

como a vida que acabou de ser concebida. 

Sinto saudade do teu sorriro largo e generoso, 

da tua boca insaciável em beijar, 

dos teus olhos atentos, 

das tuas mãos fortes e meigas,

da tua barriga...

ai que saudade de ti. 

Jcarval. 

segunda-feira, dezembro 26, 2022

AS INFÂNCIAS ROUBADAS NO BRASIL: "MENINOS 23"

Hoje se celebra o natal nas sociedades ocidentais, eu poderia escrever muitas coisas sobre essa data, mas não seria nenhuma novidade, muito já se escreveu sobre como essa tradição foi construída, como a igreja romana se apropriou de certas celebrações politeístas e depois como uma empresa de refrigerantes “inventou” um velhinho presenteador, transformando a celebração em um grande festival de consumo.

Mas eu não quero me deter nisto, quero refletir sobre esse tema a partir do documentário “Menino 23: infâncias perdidas no Brasil”, dirigido por Belisário Franca, baseado na investigação histórica de Sidney Aguilar. Não vou evitar o famoso "spoiler", o documentário é de 2016 e de toda forma não dá para descrever com palavras seu conteúdo, quem quiser assistir eis o Link

Não vou fazer grandes elaborações, apesar de desejar, não me sinto preparado para tanto. Imagino que muita gente boa já tenha escrito sobre, sem contar a tese do próprio Sidney: Educação, Autoritarismo e Eugenia: Exploração do Trabalho e violência à infância no Brasil (1930-45) - USP -2011.

Por ter assistido esse documentário só agora, semana passada, tão perto das nossas festividades de final de ano, comecei a pensar no subtítulo do documentário “infâncias perdidas”, devo confessar que mesmo tendo sido profundamente impactado pelo roteiro e imagens, de ter achado perfeito em todos os sentidos, não consigo concordar com esse subtítulo, explicarei.

A história, mais um capítulo absurdo da nossa herança escravagista, revela como uma família poderosa de rica (os Rocha Miranda), “adotaram” junto a uma Santa Casa de Misericórdia, CINQUENTA MENINOS NEGROS para viver em uma fazenda com a promessa de que eles seriam educados, mas foram mesmo é escravizados por anos. A fazenda era um tipo de campo de concentração para negros, o gado nelore era marcado com o símbolo da suástica, os tijolos feitos na fazenda também traziam o mesmo símbolo. Com o Brasil entrando na Guerra (2ª Guerra), ao lado dos Aliados, a situação para os nazistas por aqui começou ficar apertada, os Rocha Miranda fecharam a fazenda e despejaram os meninos (agora adolescentes). Anos em um orfanato (porque ninguém queria adotar crianças negras), depois trabalhando como escravos, agora soltos no mundo sem saber o que fazer, para onde ir... outra abolição.

Mas essas infâncias não foram perdidas, foram roubadas. Roubadas pela elite branca, racista e eugenista, cujos herdeiros ainda gozam das grandes propriedades e patrimônios, enquanto vomitam moralidades meritocráticas.

Gabriel, 12 anos. Foto de João
Paulo Guimarães 
Fiquei pensando em quantos natais esses meninos passaram na condição de escravos, meninos que sequer nome tinham, eram numerados, por isso o 23 (seu nome de batismo era Aloízio Silva). Isso me faz pensar quantas crianças nestes Brasil ainda têm suas infâncias roubadas. Será que as crianças que se acham dormindo sob os viadutos urbanos não se enquadram nesses termos? O que significa ter uma infância perdida? Você nasce pobre e desde cedo tem que trabalhar na pequena porção de terra que sua família tem para subsistência….acho que pode ser uma possibilidade, mas não fecho questão. Você nasce em uma família abastada e esta família resolve fazer de você uma pop star, então você não tem tempo a perder, desde cedo tem dezenas de compromissos… outra possibilidade, mas sigo não fechando questão. Mas quando você vive nas ruas, catando coisas dos lixões, vendendo paçoca nos sinais ou água nas praias… sua infância foi sim roubada.

O modelo de sociedade que vivemos, onde nós somos responsáveis integrais pelos nossos sucessos e fracassos, a criança que vive na rua não é um problema nosso, ela é fruto do fracasso de quem a gerou, pouco importa se quem a gerou também teve sua infância roubada. O capitalismo teve como um de seus grandes tentáculos ideológicos a produção do individualismo. Não sendo responsabilidade nossa, essas crianças vagam pelas ruas das cidades como fantasmas, invisíveis, apenas são notadas quando representam alguma ameaça aos cidadãos e cidadãs de bem. Mas se elas não são nosso problema, são ao mesmo tempo exploradas por nós, porque quando compramos água de uma criança na praia, não estamos ajudando-a, estamos explorando-a. Há milhões de “meninos 23” ainda neste país, crianças invisibilizadas que estão tendo sua infância roubada sim, porque se nós enquanto sociedade seguimos ignorando suas condições, contribuímos para a exploração de suas infâncias quando não as tiramos de lá.




terça-feira, dezembro 13, 2022

A INTENSIDADE DO ENVELHECER.

Há muitas boas análises sobre o envelhecimento, possivelmente nenhuma delas devem ser tomadas como a "mais pura verdade", pois os humanos absorvem a velhice de modo muito diferente. Esses modos diferentes dependem ainda, de como as sociedades em diferentes épocas estabelecem o valor (moral) para a "velhice". Há sociedades em que a velhice é consagrada, os mais velhos (anciãos), são absolutamente respeitados, são ouvidos e considerados, nada é decidido sem que se escute o mais sábio. Por esses motivos, os mais velhos recebem cuidados especiais e são reverenciados. Em outras sociedades a velhice é tomada como algo senil, os mais velhos são excluídos das decisões, são retratos da debilidade e do atraso, não têm o que oferecer de novo. Nessas sociedades cuidar dos mais velhos é algo que se terceiriza, porque é uma fardo, não há tempo para se dedicar a velhice, aquele que cuidou e zelou por nós, é condenado a passar o resto de seus dias em um asilo, uma instituição que é um dos maiores símbolos de uma sociedade narcísica. Esse é o nosso caso, Gustav Klimt já denunciava como nossa sociedade tem vergonha da velhice, em sua obra "As três idades da mulher" (1905), quando a mulher velha tem seu rosto encoberto pelos cabelos. 

Por que escrevo sobre a velhice? Porque hoje estou mais perto dela do que já estive antes. Ao concluir 53 anos, sabemos que uma vez tendo ultrapassado o meio século, não há mais retorno, o caminho em direção a morte é cada vez mais certo. Mas isso há razão para se angustiar, carrego comigo a máxima epicurista sobre morrer, "se a morte é o fim das sensações, ela não pode ser fisicamente dolorosa, e, se é o fim da consciência, não pode causar dor emocional. Ou seja, não há nada a temer."

Quanto à velhice, me pego sempre pensando nela, em como desfrutar desse tempus fugit. Passei minha vida inteira sendo um profanador, dessacralizando tudo que se considera sagrado, desnaturalizando tudo que foi naturalizado, sempre resistindo aos dogmatismos, nunca me rendendo às imposições sociais. Portanto, não serei um velhinho adaptado aos padrões da velhice, farei com a minha velhice o que minha mente mandar e se meu coração não aguentar então paciência... não vejo sentido nesse culto a uma longevidade, quero intensidade, quero amor fati.

Quero viver plenamente a metanóia junguiana, um diálogo aberto entre todas minhas personas e minhas sombras. Como Rubem Alves, não penso na velhice como processo biológico, penso como acontecimento estético, que diferente da beleza das manhãs, envelhecer é crepúsculo. Cito um trecho:

No crepúsculo tomamos consciência do tempo. Nas manhãs o céu é como um mar azul, imóvel. No crepúsculo as cores se põem em movimento: o azul vira verde, o verde vira amarelo, o amarelo vira abóbora, o abóbora vira vermelho, o vermelho vira roxo – tudo rapidamente. Ao sentir a passagem do tempo nos apercebemos que é preciso viver o momento intensamente.

Intensidade não significa viver aloprando, trata-se da crítica de lobão sobre a Decadence avec elegance, mas não é sobre viver "10 anos a mil do que mil anos a dez". A intensidade não é oposição a extensão ou a duração, ela é vibração do ser no presente, é a potência própria de toda sensibilidade. É sobre se permitir encantar com o vento no rosto, com o efeito da luz sobre um tronco de árvore, com a melodia da chuva ou o ritmo dos sabiás. A intensidade pode ser experimentada nos detalhes da existência, desde o sorriso de uma criança, até no abanar de rabo de um cão ou no ronronar de um gato. Há intensidade no ato de compartilhar, ao dividir o almoço ou um lençol, ao trocar com outro poemas e músicas. E como escreveu Drummond "Eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata."

Carpe Diem,
Jonatas Carvalho.