domingo, fevereiro 16, 2020

O CRISTIANISMO VERTIGINOSO NO BRASIL


"No cristianismo, nem a moral nem a religião têm qualquer ponto de contado com a realidade. São oferecidas causas puramente imaginárias (“Deus”, “alma”, “eu”, “espírito”, “livre arbítrio” – ou mesmo o “não-livre”) e efeitos puramente imaginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “punição”, “remissão dos pecados”)." Friedrich Nietzsche. O Anticristo, 1895.

É preciso contemporizar Nietzsche, seus ataques ao cristianismo podem parecer agressivos e desrespeitosos, mas o cristianismo que Nietzsche conheceu era muito diferente deste que hoje está vinculado à imagem do papa Francisco. O filólogo alemão não só conheceu um cristianismo permeado de crenças, hoje consideradas fantasiosas, mas estudou vigorosamente a história cristã, até a sua imbricação com o platonismo. 

Da junção platonismo e cristianismo costurada por Agostinho de Hipona e sustentada em Lutero, emergiu uma sociedade cuja moral e religião fora pautada em elementos imaginários, diz Nietzsche. Convictos de que estavam ao lado da mais pura verdade a cristandade ocidental incumbiu a si mesma de espalhar tal verdade pelo mundo afora, demonizando toda e qualquer outra possibilidade de crença e religião. As guerras santas se espalharam ora verbalmente declaradas, ora ocultas e silenciosas. O cristianismo (católico ou protestante) justificou os colonialismos (nas Américas, Ásia e África) e a escravização de uma "raça" em um continente específico, utilizando-se de um bom argumento bíblico. 

Os cristãos católicos dos séculos XVI ao XVIII implementaram nas Américas um projeto evangelizador de aldeamentos que eram resultados das chamadas "guerras justa". Tribunais de Inquisição instalados na América Latina e Central varriam as "redes de feitiçaria" para o inferno. No Brasil a "alma indígena" tornou-se monopólio dos jesuítas. Entre os séculos XIX e XX, no sul dos EUA, bons cristãos protestantes se organizaram para combater o mal negro pós abolição. Cidadãos brancos de bem queimavam residências, linchavam e algumas vezes enforcavam sem julgamento negros suspeitos de crimes, mulheres e meninas eram violentadas. Somente em 1995, a Convenção Batista do Sul, admitiu sua omissão e colaboração com a segregação, 32 anos depois de Martin Luther King escrever da penitenciária de Birminghan uma carta chamando a atenção da igreja para o fato. Em 1910 o papa Pio X criou as chamadas Prefeituras Apostólicas no Brasil, no total de três, todas no território Amazônico. 

O cristianismo passou por transformações sérias e importantes a partir da metade do século XX. Correntes de pensamento humanistas, libertárias, ecumênicas promoveram a difusão de um cristianismo mais tolerante e mais próximo do cristo dos evangelhos. A Teologia da Libertação, possivelmente o evento mais significativo na história da igreja após a Reforma, conectou a igreja com os homens e mulheres simples, e mais importante, mostrou-lhes uma fé que preconizava a autonomia e denunciava a opressão. Uma espécie de contrarreforma emergiu fincada na teologia da prosperidade e nos movimentos carismáticos acusando a teologia da libertação de vínculos com o marxismo. 

O estado brasileiro laico por longas décadas manteve elos em todos seus aparelhos com o cristianismo católico, agora se conecta a fé neopentecostalista, liderada pela Igreja Universal do Reino de Deus. O crescimento da bancada evangélica de cunho neopentecostal nas últimas décadas e o controle de partidos como o PRB permitiu a interiorização de um tipo de pensamento cristão nos mais diversos setores da estrutura pública. Na área da segurança pública a igreja de Edir Macedo atua estrategicamente por meio do projeto Universal nas Forças Policiais (UFP), na área da saúde os ideólogos neopentecostais tomam a agenda da sexualidade, buscando eliminar até mesmo os casos de aborto garantidos por lei (estupro, risco de morte para a mãe e anencefalia). O Plano Nacional de Prevenção ao Risco Sexual Precoce, elaborado pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, cuja Ministra é uma pastora neopentecostal, prevê campanhas pelo país pregando a abstinência sexual, proposta esta questionada por diversos cientistas. Nos EUA um enorme volume de instituições religiosas recebem verbas federais para promover políticas de "abstinence only". 

Por falar em abstinência, as políticas de drogas no país foram entregues às comunidades terapêuticas, instituições ligadas em sua maioria a igrejas neopentecostais e comandadas por parlamentares nas câmaras estaduais e federal. A nova política de drogas brasileira se negou a seguir os exemplos cientificamente comprovados e aplicados na maioria dos países, como a redução de danos, e instituiu a abstinência como única solução viável para o tratamento das drogas. 
A relação entre este tipo de cristianismo e o estado brasileiro se tornou ainda mais contundente com a eleição de Bolsonaro. O atual presidente é declaradamente ligado a tal fé, possuindo estreitos laços com Edir Macedo e outras lideranças religiosas que compartilham de tais ideais. Em contrapartida, recebe o apoio incondicional da TV Record que no ano passado, com uma audiência de 15% na TV aberta, a emissora de Edir Macedo recebeu 7,9 milhões do governo federal, isto é, 35% da verba disponível em publicidade. 

A estreita relação entre a presidência e a fé pentecostalista tem promovido nomeações de cargos estratégicos na tentativa de transformar o país em uma república teocrática, o próprio presidente já manifestou seu desejo de escolher alguém terrivelmente evangélico para o cargo de ministro do STF. Enquanto isso não ocorre, um pastor terrivelmente catequizador foi nomeado para assumir a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai. O pastor Ricardo Lopes Dias , ligado a Missão Novas Tribos do Brasil, organização estadunidense, foi indicado pela liderança da organização, cujo presidente, o pastor Edward Gomes da Luz, foi gravado dizendo: “A pessoa ou vai
ajoelhar voluntariamente, adorando [ao deus cristão] , ou vai ajoelhar obrigatoriamente, temendo [ao deus cristão]", a fala do líder religioso foi vazada para o The Intercept Brasil.

Outro exemplo é o caso do novo presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que assumirá a fundação após decisão da justiça (STJ) ter garantido a nomeação do Presidente da República. Sérgio Camargo foi indicado para o cargo pela reverenda Jane Silva, que chegou a ocupar o cargo de Secretária da Diversidade Cultural, mas fora recentemente exonerada pela ministra da pasta da Cultura, Regina Duarte. A atriz assumiu a pasta após a demissão do seu antecessor Roberto Alvim, um cristão que fez um pronunciamento imitando o ministro da comunicação de Hitler. Camargo é negro e cristão, nega que haja racismo no Brasil e é terminantemente contra o dia da consciência negra. 

Finalmente, é fundamental aqui dizer que este texto não é direcionado a atacar aos milhares de homens e mulheres que compartilham da fé cristã evangélica ou católica. Faço aqui referência a um projeto de poder que se utiliza da religião e da fé para atingir seus objetivos. Um Estado cooptado pelo fanatismo religioso seja ele qual for, utilizará de seus instrumentos para perseguir e punir aqueles que não se enquadram na respectiva fé. Não é por outro motivo que o número de ataques as religiões de matriz africanas cresceu em 50% nos últimos anos. Ao Estado cabe garantir a pluralidade da fé e das manifestações religiosas, seu papel é promover a tolerância entre todos os credos, condenar enfaticamente ataques a minorias, mantendo um distanciamento saudável ao mesmo tempo de todos os credos na sua condição sine qua non de laico. 

Me aproprio aqui com o devido respeito do título do documentário "Democracia em Vertigem", de Petra Costa, para dizer que os eventos apresentados acima demonstram minimamente um cristianismo vertiginoso em ação no Brasil. Por vertiginoso entende-se ações arrebatadoras capazes de causar danos e desiquilíbrio. Nossa democracia não está sob ameaça como alguns apregoam, ela já foi tomada por um tipo de aparelhamento religioso, cujas convicções numa economia neoliberal e uma sociedade conservadora devem prevalecer sobre toda e qualquer outra forma de conceber a vida social. Para Nietzsche, as convicções são mais inimigas da verdade que a mentira, pois quem mente sabe que está mentindo, mas o convicto guarda a certeza em si de que apenas a sua verdade é o caminho. 

         Jonatas Carvalho. 
PPGSD - INCT-InEAC/UFF.