Em seu livro de memórias O Mundo de Ontem (1934–42), Stefan Zweig escreveu o seguinte: “Quando tento encontrar uma fórmula simples para o período no qual cresci, antes da Primeira Guerra Mundial, espero traduzir sua plenitude chamando-o de Época de Ouro da Segurança”. A obra de Zweig, dentre muitas outras resgatadas por David Fromkin em O Último Verão Europeu, serviu ao historiador para demonstrar que, pouco antes de a Primeira Guerra eclodir e se desenvolver em um dos mais traumáticos eventos mundiais, o mundo vivia em paz — pelo menos, essa seria a sensação capturada entre os europeus. Até o início do verão de 1914, prevalecia, entre as lideranças políticas e econômicas, a crença na impossibilidade de um conflito armado entre as grandes potências. Os movimentos militares, entretanto, davam outros indícios. Justamente essa junção entre a chamada corrida armamentista e o ambiente da “época de ouro da segurança” resultou no que ficou conhecido como a “paz armada”.
O termo “paz armada”, notabilizado a partir da obra Paz e Guerra entre as Nações (1962), do historiador e diplomata francês Raymond Aron, conviveu com outro: o de “paz precária”, da historiadora Barbara Tuchman, em The Guns of August (1962). Em ambos os casos, a ideia era a de que a paz estava garantida pela elevação dos gastos em armamentos entre as potências europeias.
A “época de ouro da segurança” de Zweig, compartilhada por outras personagens da História, no entanto, não correspondia à realidade mundial; poderíamos dizer que se tratava de um “sentimento europeu”. O mundo, entre o final do século XIX e o início da Primeira Guerra, poderia ser muitas coisas, menos um lugar seguro. Se é verdade que, desde a Guerra Franco-Prussiana (1871), não havia ocorrido outro conflito armado entre duas ou mais potências europeias, isso não significa que os conflitos armados tivessem cessado no mundo — pelo contrário. As guerras coloniais seguiam a todo vapor: os britânicos deram início à Guerra Anglo-Zulu (África do Sul) em 1879 e, apesar de derrotas humilhantes como a da Batalha de Isandlwana, os colonizadores anglos venceram. Entre 1881 e 1899, a Guerra Mahdista, no Sudão, contra as tropas anglo-egípcias. A Itália, em 1895, invadiu a Etiópia na tentativa de tomar o território, no que ficou conhecido como Primeira Guerra Ítalo-Etíope (ou Guerra da Abissínia, para os italianos); o conflito terminou com a derrota dos invasores. No lado americano do Atlântico, em 1898, a Espanha travou uma guerra com os EUA, perdendo suas colônias (Cuba, Porto Rico e Filipinas) para os estadunidenses. Na virada do século (1899–1902), deu-se a Guerra dos Bôeres, na qual os britânicos dominaram os colonos holandeses (bôeres) na África do Sul, com direito até à utilização de campos de concentração contra civis bôeres.
Nas regiões da Ásia e Oceania, pelo menos três grandes conflitos merecem destaque: a Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894–1895), momento em que Taiwan foi anexada pelo Japão; a Revolta dos Boxers (1899–1901), uma reação anticolonial chinesa, massacrada pela chamada Aliança das Oito Nações (Áustria-Hungria, Império Britânico, França, Alemanha, Itália, Japão, Rússia e Estados Unidos); e a Guerra Russo-Japonesa (1904–1905), confronto iniciado pelo controle da Manchúria e da Coreia, com vitória japonesa.
O período foi marcado por diversas reações anticoloniais. Destaco aqui: a Guerra de Aceh (1873–1904), uma longa resistência do Sultanato de Aceh (Indonésia) contra os holandeses; a rebelião Maji Maji (1905–1907), em que o povo da então África Oriental Alemã (atual Tanzânia), sofrendo com o trabalho forçado, se rebelou — os alemães massacraram os “revoltosos”; estima-se que mais de cem mil foram assassinados. Por fim, a Guerra do Rif (ou Segunda Guerra Marroquina), iniciada em 1909, entre os espanhóis e os berberes (tribos rifenhas), que só terminaria com a derrota dos berberes, devido ao apoio dos franceses aos espanhóis em 1926.
Não menos importante, na América do Sul, dois conflitos merecem ser lembrados aqui. O primeiro é a Guerra do Pacífico (1879–1884), envolvendo a disputa por minerais no Deserto do Atacama, terminando com o Chile vencendo a aliança boliviana-peruana; o outro foi a Revolução Mexicana (1910–1920), liderada por Emiliano Zapata e Francisco Villa contra a ditadura de Porfírio Díaz.
Como se pode verificar, na longa introdução acima, a chamada “época de ouro da segurança”, esse sentimento compartilhado entre os europeus após a Guerra Franco-Prussiana, reflete a percepção que estes tinham de si mesmos: sua superioridade civilizatória. Os conflitos enumerados acima eram, nesse sentido, vistos como parte do “fardo do homem branco” (Rudyard Kipling – 1899). Todos esses conflitos, impetrados pelos ocidentais fora do terreno europeu, não produziam qualquer sentimento de insegurança. A Europa se extasiava com o liberalismo. David Fromkin cita a admiração de John Maynard Keynes por esse período sem controles comerciais e alfândegas: “você podia entrar com o que quisesse na Grã-Bretanha ou mandar qualquer coisa para fora.” O historiador A. J. P. Taylor (História da Inglaterra – 1914–1945) escreveu que “até 1914, um inglês sensível e obediente à lei podia passar pela vida sem notar a existência do Estado.” Ainda assim, as guerras e massacres por parte das potências ocidentais nunca deixaram de ocorrer.
Algo semelhante foi construído no pós-Guerra Fria (1991) — por sinal, outro título ilusório, atribuído a George Orwell, mas, na verdade, cunhado pelo multimilionário e conselheiro presidencial estadunidense Bernard Baruch —: uma espécie de “sentimento” de paz estava sendo produzido desde a criação da La Colombe, a pomba branca que Pablo Picasso pintou sob encomenda da então recém-criada ONU, na ocasião do Congresso Mundial da Paz, em Paris, em 1949. O fim do “mundo bipolar” — mais um termo que não define o mundo — tinha, em sua propaganda, o fim dos conflitos, ou o fim da história, como sugeriu Fukuyama em 1992. O novo mundo monopolar capitalista, baseado em regras, resultaria na paz duradoura. Mais uma vez, tal discurso não correspondia à realidade.
Só na década de 1990, tivemos pelo menos três grandes conflitos armados: a Guerra do Golfo (1990–1991), em que os EUA expulsam o Iraque do Kuwait; as Guerras da Iugoslávia (1991–2001) — incluindo Bósnia (1992–1995) e Kosovo (1998–1999); e a Primeira Guerra da Chechênia (1994–1996), terminando com a independência da Chechênia diante da Rússia. Na virada para o século XXI, aqueles que imaginaram que, depois de tantos conflitos, os homens finalmente atingiriam a sensatez tiveram uma grande decepção. O onze de setembro inaugurou a chamada “Guerra ao Terror”: já em 2001 teve início a invasão dos EUA ao Afeganistão, uma guerra de vinte anos; em 2003, foi a vez dos estadunidenses invadir o Iraque, e sob a falsa alegação de armas de destruição em massa, massacraram os iraquianos. Na Segunda Guerra da Chechênia (1999–2009), a Rússia, já sob a liderança de Putin, retomou a Chechênia; e, não menos drástica, em 2006, Israel invadiu o Líbano — Robert Fisk, autor de Pity the Nation: Lebanon at War (1990), cobriu por décadas diversos momentos de destruição do Líbano, incluindo uma invasão anterior de Israel, em 1982, como o massacre de Sabra e Shatila.
É certo que, para quem acompanha as emissoras ocidentais, aparentemente, no mundo hoje temos apenas dois problemas: a guerra Rússia x Ucrânia e a guerra tarifária entre EUA e China. O Ocidente, por sua vez, ofusca brutalmente a limpeza étnica do povo palestino. Vimos de relance, recentemente, a derrubada de Bashar al-Assad, mas não sabemos quase nada da guerra civil na Síria, que ocorre desde 2011. Também vem ocorrendo uma guerra civil no Iêmen, iniciada em 2014, agravada pelo apoio da resistência dos Houthis à causa palestina, atacando navios em direção a Israel no Mar Vermelho e no Golfo de Áden.
No continente africano, tivemos uma guerra civil na Etiópia (2020–2022), com mais de 85 mil mortes e centenas de milhares de deslocados — um conflito mal resolvido que pode reacender a qualquer momento. Na região do Sahel, área de influência da França — que inclui dez países: Mauritânia, Senegal, Mali, Burkina Faso, Níger, Nigéria, Chade, Sudão, Eritreia e Etiópia —, mais de 4 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas. Na Somália, a guerra civil (em curso desde 2006) intensificou-se em 2022. E, certamente, um dos mais graves conflitos armados no continente africano: a guerra entre a República Democrática do Congo e o movimento 23 de Março (M23), com forças ruandesas aliadas avançando para Goma e Bukavu. Esse conflito sofre forte interferência das grandes empresas ocidentais, ávidas pelo controle das minas de cobre e cobalto do Congo — sim, a transição energética para carros elétricos está sendo realizada às custas da morte por contaminação de milhares de mulheres e crianças congolesas.
Para além de uma guerra tarifária, enquanto escrevo este ensaio, diversos movimentos são executados em várias partes do mundo na direção de mais e mais belicismo. Os gastos militares em 2024 chegaram perto dos 2,5 trilhões. A União Europeia propôs um plano (ReArm Europe) para ampliar seus “investimentos em defesa”, na ordem de 800 bilhões de euros. A China também ampliou seus gastos em defesa em mais de 7%. Além disso, outros movimentos deliberados em direção a conflitos diretos estão em plena atividade. É o caso da tensão entre a Moldávia e a Transnístria, como parte da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Outra importante zona de tensão (e não é de hoje), a Caxemira, tem levado tropas de duas potências nucleares (Índia e Paquistão) para as fronteiras, à beira de um conflito que pode ser devastador.
Trump discursou recentemente em uma formatura na Universidade do Alabama, afirmando: “Vocês são a primeira turma de formandos da era de ouro da América.” Nunca houve uma época de ouro ou de segurança no mundo. O discurso idílico, evidente, produz seus efeitos, mas, quando se olha com mais atenção, o que vemos são os senhores da guerra, enquanto devoram carnes raras e vinhos caríssimos — que a maioria de nós jamais chegará perto —, com seus talheres de ouro, decidem quais outras partes do mundo poderão fazer emergir um novo conflito armado. O mundo não é a La Colombe, é Guernica.
Jonatas Carvalho
Historiador e Doutor em Sociologia e Direito