sábado, junho 10, 2017

O MILAGRE NA CELA

O milagre na cela é uma peça de teatro escrita por Jorge de Andrade em 1970, contudo devido a seu caráter contestador, em um Brasil que havia recém decretado o AI5, a peça só foi liberada em 1977 após muitas andanças pelas gavetas da censura. A trama, uma espécie de drama erótico, conta a história de Joana, uma freira que vai parar nos porões da ditadura.

A freira fora presa na Boca do Lixo, uma favela em São Paulo, onde atuava junto a uma pastoral como educadora. Levada de um cárcere clandestino a outro, a religiosa sofreu vários tipos de tortura a mando do delegado Daniel, um agente da repressão. Os diálogos são significativos para demonstrar os ideais que permeavam a mentalidade da polícia, cujo código de conduta era a Doutrina de Segurança Nacional.  




Daniel — Finalmente a ilustre educadora está em minhas mãos. O que ninguém conseguiu provar, vou provar agora. 
Joana — Posso saber pelo menos qual o motivo da minha prisão? 
Daniel — Você é um elemento ativista da dita igreja progressista. 
Joana — E isto por acaso é crime?! Daniel — Pra mim é. 
Joana — (Firme) Até agora não me mostrou nenhum documento que determinasse a diligência em meu escritório e minha prisão, assinado por autoridade policial ou judicial. Daniel — (Áspero) Não preciso mostrar merda nenhum. A autoridade sou eu. 

A trama revela como a autoridade policial revestiu-se de autoridade judicial, fazendo o papel  de prender, julgar e punir. 

Nos porões joana conhece Jupira, uma prostituta com quem fará amizade e de quem vai receber conselhos preciosos: 
Jupira — (...) Gostei de você. Vou te ensinar uns macetes pra agüentar a parada. A barra aqui é pesada. Comece fazendo ginástica pra agüentar a porrada. (...) Agora.., importante mesmo é trepar. Saber trepar! É o que quer esses filhos da puta. E é o que precisa fazer, se tem amor na vida.

Nas paredes do cárcere, Joana escreve sobre suas dores e esperança em forma de poesia:

Sobre meus olhos, minha pele,
se tece esta muralha de silêncios.
Sei que se faz hoje mais espessa:
há um nome a mais gravado em sua noite.
Há nomes que não cicatrizam,
sangram de sua sombra
lentas gotas de amanhã.
E canta: 
 É preciso sobreviver, E sobreviveremos Para o amanhã que virá. Não importa o cerrar da boca, ou que a voz caminhe incerta na garganta dolorida, se amanhã o protesto sairá da boca de milhões. Ficou a crença no amanhã, hoje proibido! É preciso sobreviver, Para o amanhã que virá! 

Daniel é o típico agente da repressão, fora do trabalho é um honrado pai de família, bom marido, bom vizinho. Quando está no trabalho seu papel social de torturador aparece latente: 

Daniel — Pode ser que seja freira. Mas se for, é mulher como outra qualquer. Sofre, grita e geme da mesma maneira. Mas eu quero ter o prazer de dobrar pouco a pouco, de mansinho.(,..) Não tenho pressa. Quanto mais lentamente sai o grito, mais profunda a dor... e mais satisfação eu sinto de conseguir o que quero. Vou começar pela fórmula 1. E não deixe ela dormir. Leve-a para a sala de interrogatório. 
A peça de Jorge de Andrade foi adaptada para o cinema por Ozualdo R. Candeias, com o título " A freira e a tortura". Estrelado por Vera Gimenez (Joana) e David Cardoso (Daniel). Produzido em 1983 só foi lançado nos cinemas em setembro de 1984 devido a censura. Em pleno momento das Diretas Já, é o primeiro filme erótico de produção popular a receber o apoio da elite política e intelectual.  O filme pode ser visto  no site da Rede Brasil: 

http://canalbrasil.globo.com/programas/como-era-gostoso/videos/2206441.htm

Jonatas Carvalho
Historiador.

Referências:

http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/candeias/filmes/longas/04_03_08.php

Milagre na Cela - Estudo Crítico - Marly Amarilha de Oliveira
https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/viewFile/18164/17053



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