Na manhã deste domingo, eu e minha marida caminhávamos pela Augusta, então surgiu um homem atrás de nós, ele esbravejava, uma situação que vemos com alguma frequência quando se caminha pelo centro, mas então ele quebrou algo de vidro, não vimos exatamente o que era, mas ficamos alertas, ele xingava muito.
Preocupado eu propus que virássemos à esquina, na esperança de que ele seguisse em frente, mas ele virou também e em seguida nos abordou. Era nitidamente alguém em situação de rua, estava alterado, falou algo sobre pagar um prato de comida. Eu calmamente disse-lhe que que estávamos caminhando e não tínhamos nada conosco, então ele me interrompeu e disse:
— Calma, eu não tô pedindo nada ao Sr, estou explicando. E seguiu andando ao nosso lado.
— Eu entrei no bar ali em cima, perguntei se alguém podia me pagar um almoço, o garçom, que não era dono nem nada, me esculachou e me deu uma porrada na cara. O Sr. acha isso certo?
— Eu não acho não. Respondi.
— Ele falou que eu era um merda… falou mais algumas coisas das quais eu não lembro exatamente. Eu o interrompi.
— Desculpe, mas qual é o seu nome?
— É Odair.
— Odair, eu realmente sinto muito que você tenha passado por isso. Ele acenou e continuou:
— Eu não sou ladrão não, já roubei, mas nunca roubei pobre. Hoje eu odeio ladrão. Tenho quatro filhos esperando que eu leve algo pra eles comerem. O cara não sabe quem eu sou e acha que pode me dar um soco na cara porque eu tô pedindo comida?
Concordei com ele, e o interrompi novamente.
— Eu lamento muito por você Odair, desculpe não poder lhe ajudar.
— Tá tudo certo Sr. bom dia pra vocês.
— Espero que o restante do seu dia seja melhor.
— Obrigado. Odair seguiu seu caminho.
Minha marida, Ercília, estudante de psicanálise, assistiu a tudo calada, então fez uma observação fascinante.
— Como a escuta é terapêutica, né? Veja como ele, depois de falar sobre sua dor, agora segue seu caminho mais tranquilo, não está mais esbravejando e gesticulando como antes. É claro que ele ainda está ferido, mas já está mais calmo. Só porque alguém se dispôs a escutá-lo.
Eu concordei. Discutimos um pouco se o “poder terapêutico” se achava na escuta ou na fala, concluímos que era a combinação de ambos, ou seja, o falante precisa sentir que quem o escuta lhe escuta com atenção. Mesmo não sendo uma escuta treinada, preparada, às vezes, o simples fato pararmos para ouvir alguém, já produz efeitos terapêuticos naquele que fala, e, em muitos casos, naquele que ouve também.
Nós, inicialmente, vimos o Odair como mais um dos milhares de indivíduos em situação de rua, pensávamos que ele estava alterado devido ao álcool ou outra substância, mas era um ser humano (como todos os outros que vivem em condições semelhantes e ele), passando por um enorme sofrimento, e se não bastasse toda a dor que é viver nessas condições, ele ainda tem que lidar com a violenta desumanização cotidiana.
Escrevo esta história horas depois do ocorrido, passamos o dia na casa da filha da minha marida, comemos, bebemos, como em um domingo qualquer, mas não consegui tirar Odair da cabeça.
Odair me fez lembrar do tempo em que eu vivi na rua, muitas vezes eu sofri essa desumanização, só consegui sair dessa situação de rua com ajuda. Eu lamento mesmo é por essas pessoas que insistem em desumanizar os outros, pobres de espírito e péssimos seres humanos. Já os Odairs da vida, estes, têm muito a nos ensinar.
Um comentário:
🙌🏻🙌🏻🙌🏻 grande Odair
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