sexta-feira, março 03, 2017

O PENSAMENTO NEGRO E OS TEÓRICOS AFRICANOS

"Há sempre um negro, um judeu, um chinês, um mongol, um ariano, no delírio" Gilles Deleuze.
    AO adentrarmos na escola, desde os primeiros anos até a conclusão do ensino médio, tudo o que aprendemos sobre a negritude está relacionado a sua condição de sujeito colonizado. A África só aparece nos livros didáticos quando se fala da expansão européia. Nos primeiros anos, quando abordamos as sociedades hidráulicas, o Egito aparece, mas ele é branco assim como nos filmes de Faraós e na minissérie José do Egito da Record. O negro é assim, ensinado nas escolas como alguém que só conheceu sua condição de escravo, sua cultura é exótica, suas crenças são primitivas, são criaturas de um mundo subdesenvolvido. Esse "conhecimento" sobre a África e seus povos seguem durante a faculdade, a menos que você tenha escolhido fazer ciências humanas, mesmo assim, é possível que você se forme sem nunca ter lido um texto de um pensador oriundo do continente Africano, vou logo avisando que Mia Couto não vale, apesar de eu ser fã de "Venenos de Deus e Remédios do Diabo".

    É possível pensar em inúmeros artistas, músicos e cantores negros, claro, esse número reduziria se a referência fosse "negro africano", de qualquer modo, não temos quaisquer dificuldades em reconhecer a contribuição negra no jazz, no blues e no samba. Quem não é fã de Morgan Freeman, Denzel Washington, Viola Davis, Jammie Foxx, Whoopi Goldberg, Grande Otelo, Pixinguinha, Milton Gonçalves, Tony Tornado, Leci Brandão, Seu Jorge....? Mas quando alguém pergunta sobre um intelectual negro, um filósofo, historiador, físico, em quem você pensaria?  A grande maioria das pessoas iriam pensar, pensar e não responder a essa pergunta. A molecada mais antenada lembraria de Neil deGrasse Tyson, astrofísico estadunidense, afinal ele é o novo Carl Sagan, só que é negro. O Neurocientista Carl Hart, destacou-se no mundo com suas pesquisas sobre drogas e é muito conhecido por seus dreads, Hart foi o primeiro professor titular de neurociências negro na Universidade de Colúmbia, no entanto, assim como Tyson, ele também é afrodescendente. Nossos alunos nunca ouviram falar de Abadias Nascimento, Clóvis Moura ou Lélia Gonzalez (talvez tenham ouvido alguma coisa sobre Milton Santos nas aulas de geografia), todos afrodescendentes brasileiros. Quando pergunto nas salas de aula sobre um exemplo de negro que tenha se destacado na história as respostas giram em torno de Pelé, Martin Luther King e Mohamad Ali. Já Zumbi, para os meninos do MBL não passava de um Hitler negro.

Acima à esquerda: Achille Mbembe e ao seu lado Cheikh Anta Diop. Abaixo à esquerda: Frantz Fanon  e ao lado Valentin Mudimbe. 

    A que se deve esse total desconhecimento sobre pensadores africanos? Passamos nossa vida escolar e acadêmica em contato com pensadores ocidentais, uma educação ainda eurocêntrica, aprendemos sobre Kant, Hegel, Nietzsche, Foucault, Sartre, intelectuais de origem russa como Bakunin, Dostoiévski, Tolstoi, italianos como Benedetto Croce, Giorgio Agambem, Antonio Gramsci. Mas por que nunca tivemos contato com o pensamento de Valentin Mudimbe, Achille Mbembe, Abel Kouvouana, Mogobe Ramose ou Cheikh Anta Diop? 

     O único modo de entender esse fenômeno, e é importante que se diga que não se trata de um fenômeno natural, ou seja, algo que ocorre pela força da natureza, mas ao contrário, trata-se de um processo construído socialmente, processo esse que procurou silenciar e ocultar o pensamento negro africano. Voltando, o único modo de entender tal questão é ler os pensadores africanos, são eles que irão nos ensinar porque nada sabemos de suas bases de pensamento, nada sabemos da África, senão sobre a África colonizada. É bem possível que você ao ler as obras de Alberto da Costa e Silva, acabará se deparando com uma África totalmente desconhecida, mas não é disso que eu estou falando, sei bem que o conhecimento sobre a África hoje já é muito mais avançado, embora essa realidade nas escolas ainda sejam pontuais, mesmo após a lei de 2003 que colocou no currículo do ensino fundamental o conhecimento sobre a história e cultura afro-brasileira e africana, ainda assim há que notar as mudanças. 

    Eu, porém, insisto que a única forma de compreendermos tamanho desconhecimento é lendo os africanos. Cito aqui, por exemplo, "A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento", de Valentin Mudimbe, nascido no antigo Congo Belga, atual República Democrática do Congo. Mudimbe procurou demonstrar, valendo-se da arquelogia foucaultiana e do percurso traçado por Edward Saïd em seu "Orientalismo", quais foram as condições de possibilidade para a emergência de um determinado discurso sobre a África. Na obra de Mudimbe verificamos que a construção desse tipo de discurso, sobre o sujeito africano, precisava anular sua condição de ser pensante para que se pudesse alimentar a ideia do selvagem e, portanto, sujeitado a uma espécie humana mais evoluída; o homem branco.  O discurso aqui, é um conjunto de elementos que envolve uma série de conhecimentos e técnicas que construirão um tipo de saber específico sobre um determinado sujeito/objeto. No caso do sujeito africano, Mudimbe nos mostra como que por meio das narrativas dos viajantes, das pinturas dos artistas, dos relatos dos missionários, se construiu a África exótica e selvagem, logo, desprovida de conhecimento. A África tal qual nós conhecemos é uma invenção ocidental. 

    A construção desse discurso também contou firmemente com a filosofia e as ciências da época, assim como o estatuto do direito. Na filosofia, o historiador camaronês, Achille Mbembe, autor de "Crítica da razão negra", relembra Hegel, para quem, os negros africanos eram "estátuas sem linguagem ou consciência de si". Mbembe irá se debruçar sobre o devir-negro do mundo, por meio da problematização do conceito de raça, uma construção fantasiosa que procurou distinguir tudo aquilo que não era europeu. O "hemisfério ocidental", diz Mbembe, desejou ser o bairro mais civilizado de todos, "só ele deu origem a uma ideia de ser humano com direitos civis e políticos, permitindo-lhe desenvolver os seus poderes privados e públicos como pessoa, como cidadão que pertence ao gênero humano, (...) só ele codificou um rol de costumes aceitos por diferentes povos, que abrangem os rituais diplomáticos, as leis da guerra, os direitos da conquista, a moral pública e as boas maneiras." (pp. 27-28). Nesse caso, o negro é o outro o dessemelhante, um símbolo acabado da vida vegetal e limitada. Como disse Frantz Fanon, um ícone do pensamento libertário, psiquiatra nascido na Martinica, "para o negro há somente um destino e ele é branco." 

Jonatas Carvalho. 

  








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