Eu estou escrevendo um artigo sobre drogas e comunidade terapêuticas com minha amiga Beatriz Brandão (já é nossa terceira parceria), estamos analisando os cenários da cracolândia e as propostas de intervenção nas gestões do PSDB E PT. Resolvi voltar no tempo e verificar cenários anteriores, uma época de que me lembro bem, a dos meninos de rua que consumiam cola de sapateiro para se anestesiar de sua dura realidade. Fui olhar as manchetes de jornais daquela época, foi ai que me veio à lembrança de uma experiência que vivi com R (vou chamá-lo assim), um menino que tinha 14 anos, 8 passagens pela polícia e algumas internações.
Ele apareceu no conselho tutelar da minha cidade pedindo ajuda, queria mudar, mas a instituição não sabia o que fazer, naquele tempo era muito difícil internar adolescentes, os centros de recuperação em geral eram para adultos. Eu fui até lá, conversei com ele, R ameaçou tirar a própria vida se não o ajudasse, estava desesperado. Eu fiz algumas ligações, mas não achei nada, apenas alguns “vou ver o que posso fazer”. Propus a R que fosse para minha casa, que dormisse lá e que no dia seguinte eu resolveria seu caso, ele me deu esse crédito, mas disse que se eu não o ajudasse no dia seguinte iria fazer muita merda.
Eu o levei até o carro, mas ele fez uma parada no caminho, apanhou um saco que escondera por trás do muro do conselho, sem que eu perguntasse ele se adiantou: – tio, eu preciso disso, se não eu piro, só assim eu consigo ficar de boa até amanhã. Não respondi, apenas consenti com a cabeça. R foi dando umas baforadas na cola de sapateiro dentro do carro, eu o vi se transformar, sua tensão foi toda embora, passamos a falar de coisas banais e ríamos. Ele me contou como foi sua infância (ou como não foi), disse-me que o pai matara a mãe e que desde os oito anos de idade vivia nas ruas. Percebi a emoção lhe preencher ao tocar no nome da mãe, mas ele engoliu aquilo como se não quisesse demonstrar fraqueza. R tinha passado por experiência inimagináveis para qualquer criança normal na sua idade e, embora, dissesse não ter medo da morte, estava ali comigo lutando pela vida.
Ao chegar em casa, minha então esposa (hoje amiga), fez uma cara de surpresa (acho que ela nunca se acostumou como minhas surpresas), R era pequeno para sua idade, quase raquítico, mas já tinha um homicídio nas costas dentre outros crimes. Graças a cola (que eu escondi por perto caos necessitasse novamente) ele estava sereno, mandamos ele para um banho, cedemos roupas novas, quando ele saiu ficou brincando com meu filho João que tinha a metade de sua idade, enquanto eu ajudava na preparação do jantar. Minha esposa pedia que eu os olhasse em curtos intervalos preocupava com nossa cria, teve um momento que encontrei os dois deitados em volta de um trenzinho no piso do quarto do meu filho, ambos estavam rindo não sei de que. R jantou conosco, comeu como se fosse sua última refeição, conversamos mais um pouco, meu filho João lhe fazia perguntas curiosas de uma criança na sua idade: onde você dorme? O que você come? Você não vai à escola? O jovem "delinquente" se comportou educadamente, não me pediu para usar mais cola e dormiu como uma criança.
No dia seguinte me levantei cedo e fui trabalhar, retornei a fazer ligações em busca de uma solução para R, nada. Por volta das 10h minha esposa ligou preocupada, R estava nervoso, queria falar comigo, ameaçou ir embora, queria saber onde eu havia escondido sua cola. Pedi a ele que se acalmasse, falei com minha esposa onde a cola estava, mas R estava sem controle e minha esposa o deixou ir. Alguns dias depois eu tive notícias dele, fora baleado com alguns tiros no peito e morreu. Mas antes de ir, ele nos deixou um bilhete que minha esposa só encontrou depois, sua caligrafia era ruim, as palavras escritas erradas, mas foi suficiente para entendermos a mensagem: a vida só me deu porrada, tudo que eu queria era ter uma família.
Muitas são as maneiras de se roubar a infância neste mundo, nos jornais que eu li para preparar o artigo que me referi acima, encontrei execuções de crianças no Rio e em São paulo nos anos de 1970 e 1980. Uma CPI parlamentar em 1979 elaborou um documento dizendo que havia 25 mil de crianças "menores abandonados" em todo o país naquela época. Nas mesmas páginas desses jornais essas crianças ganhavam nomes sociais que lhes tiravam a individualidade para virar estatística, "trombadinhas" "pivetes", "marginais mirins", "menores delinquentes"... Hoje, 24 anos após o massacre da Candelária, 24 mil crianças vivem em situação de rua no país, no mundo todo são 150 milhões. Aqueles que acham que a solução é amarrar esses "marginais" no poste e surrá-los, sequer fazem ideia de quantas surras físicas e emocionais muitos desses adolescentes já passaram, de que já lhes destruíram a infância, agora só lhes restam roubar-lhes a possibilidade de uma vida adulta.
Jonatas Carvalho.
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