Uma das primeiras e mais primorosas obras sobre a audição foi escrita no início da era cristã, trata-se do Tratado da Escuta (Perì toû akoùein) de Plutarco de Queronéia que viveu entre 50 e 125 d.C. Plutarco é reconhecido como historiador e filósofo, suas obras estão dentre as mais importantes fontes sobre a cultura greco-romana.
Mas por que haveria alguém a pensar sobre a questão da escuta há dois mil anos? Desde Sócrates o homem se torna de certa forma o ser a ser revelado. Claro, Plutarco escreveu muito sobre outras coisas, matemática, por exemplo. Escreveu também uma obra sobre Alexandre o Grande. Mas interessava a ele, assim como tantos outros discípulos de Platão e Aristóteles, desvendar o ser.
Então ao tratar sobre os sentidos humanos, olfato, visão, tato, audição, nosso filósofo-historiador se dedica mais a este último. Mas por quê? Não seriam eles igualmente importantes? Haveria algum que se sobressairia sobre os outros? Para Plutarco a questão da escuta merece destaque, ele conclui: "Não se pode não ouvir o que ocorre ao redor de si." Significa dizer que se pode recusar olhar (fechamos os olhos), tocar algo, saborear, mas não se pode recusar ouvir. Por isso, ouvir é pathétikos, isto é, carrega uma passividade em si. Esta passividade, segundo Plutarco, pode ser perfeitamente percebida no corpo, quando este é surpreendido ou abalado pelo que se escuta. Mas o ouvir não é apenas pathétikos, é também logikós, quer dizer, nenhum outro sentido pode apreender o lógos como o ouvir. Significa que a virtude ou as “sementes da virtude” só podem germinar em nós pela escuta.
Não é por outra razão que as escolas pitagóricas infligiam o silêncio nos cinco primeiros anos aos iniciados. O silêncio aparece aqui como uma técnica (tékhne - arte) da escuta, não uma arte no sentido estrito da palavra, pois é mais uma competência, uma habilidade, trata-se tão somente de apreender o lógos, escutar sem intervir, sem objetar, sem opinar, sem acrescentar, sem considerar, apenas escutar. Plutarco, por sinal, chega a conclusão que o tagarela sofre de uma anomalia curiosa: o ouvido do tagarela não se comunica com a alma, mas sim com a língua.
O silêncio não é suficiente para uma escuta virtuosa, a passividade então dá as mãos a uma atitude, ou seja, uma postura ativa, a saber: a alma deve acolher sem perturbações a palavra (lógos) endereçada. O corpo deve reagir tranquilamente, o mais imóvel possível a fim de ponderar o que se ouviu. Quanto a esta imperturbabilidade da alma, tanto Sêneca como Epicteto deixaram muitos ensinamentos, este último, um escravo-filósofo, dissera: “quando quiseres ouvir um filósofo, não lhe perguntes: O que tens a dizer-me? Contenta-te em mostrar tua própria competência em ouvir.”
Finalmente, essa “arte da escuta” que requer o silêncio, mas também um acolhimento sem perturbações da alma para apreender o lógos, necessita ainda de um autoexame. Plutarco usa como analogia um salão de cabeleireiro, pois nunca deixamos um salão sem ter lançado um olhar, mesmo que por vezes discreto, ao espelho para ver como ficamos. A escuta agora é também reflexiva, ela implica em verificar se o que ouvimos (aquela verdade), pode ou deve fazer sentido para si, se vai acrescentar a si, se devemos fazê-la nossa verdade.
A relação palavra-escuta é absoluta, uma não pode ser separada da outra, é possível ouvir sons que não são palavras (a natureza por exemplo), mas esses sons só ganham “sentido” quando convertidos em signos (palavras), segundo alguns, este é nosso diferencial ante as demais espécies; ter constituído sentido para o que fazemos por meio de signos.
A razão iluminista sequestrou a palavra (razão), transferindo o poder de dizer a verdade apenas ao homem branco ocidental e bem nascido, aos demais humanos, caberia apenas ouvir essa verdade que se pretendia única e universal. Freud surge nessa sociedade, em que por exemplo, o médico era o único detentor da verdade sobre a doença, caberia a ele observar e diagnosticar o paciente, sem sequer ouvi-lo. Ele subverte esta medicina niilista por uma proposta que implica duas ações: escutar as palavras do outro e produzir palavras que iriam ao encontro das demandas do outro. A psicanálise subverte a medicina ao considerar as singularidades humanas, o “paciente” passa a ser “ativo” no que tange a cura.
Ao introduzir a noção de inconsciente a fala é deslocada para um lugar outro, não mais aquele da razão, mas um lugar em que a fala se expressa para além das palavras, o corpo se comunica, diz ou deixa de dizer, o que também é um dizer. Mas o que nos importa aqui, onde Fred dialoga com o que escrevi até aqui, é como ele propõe uma escuta treinada, ou um “método da escuta''. Segundo ele, o domínio técnico para uma boa escuta só pode ser alcançado com a experiência clínica, o que significa muito mais que clinicar, tem a ver com a “escuta de si”, isto é, uma análise pessoal, um autoanalisar-se.
Sabemos o quanto os gregos foram importante para Freud, sabemos como os mitos gregos instrumentaram seus escritos. A tragédia grega exprimia as origens dos sentimentos humanos, dos nossos desejos mais sórdidos e de nossa vilania. A moral e a religião são o núcleo de todas as neuroses. Em 1933 ele escreveu: “A teoria dos instintos é, por assim dizer, nossa mitologia. Os instintos são entidades míticas, magníficos em sua imprecisão. Em nosso trabalho, não podemos desprezá-los,nem por um só momento, de vez que nunca estamos seguros de os estarmos vendo claramente”.
Claramente o ouvir o outro é o princípio fundamental para se estabelecer laços e estreitamentos. Podemos saber de alguém observando suas atitudes, o modo como reagimos a vida revela muito sobre nós, mas só se conhece alguém, só é possível saber as necessidades do outro ouvindo-o. Isto exige de nós pelo menos duas qualidades básicas, a da alteridade, isto é, saber que o outro é diferente de você, logo, ele reage ao mundo de modo igualmente diferente, nem melhor, nem pior, apenas diferente. A outra é a empatia, ou seja, a capacidade de apreender do modo como o outro aprende, isto é mais que compreender, trata-se de se colocar no lugar mesmo do outro, sem senãos, sem pré-juízos, apenas estar lá “junto-com” e “sentir-com”. Em tempos em que somos mediatizados por milhões de imagens e palavras, quando muito se quer falar, mas não escutar, que possamos fazer um movimento de voltar a ouvir com mais qualidade.
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