quarta-feira, janeiro 23, 2019

O USO DOS CORPOS: A VIDA COMO OBRA DE ARTE


Surpreende-me que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo que é relacionado aos objetos, não aos indivíduos e à vida, e igualmente que seja considerada um âmbito especialístico feito de peritos que se chamam artistas. Mas a vida de cada indivíduo. não poderia ser uma obra de arte? Por que uma lâmpada ou uma casa são objetos de arte, e nossa vida não? (Michel Foucault - 1983)



Tenho o hábito de comprar livros e colocar a data da aquisição, dessa forma consigo saber há quantos anos tal livro está comigo e há quanto tempo eu o li. Essa semana fui buscar na estante um livro do Foucault, “A Hermenêutica do Sujeito”, me deparei com a data de agosto de 2008, resolvi olhar outros livros do autor na estante, o mais antigo é de 2005 (Microfísica do Poder), são mais de dez anos lendo Foucault. Eu estava a procura de uma referência que achei em outro filósofo, Giorgio Agamben, na sua obra “O uso dos corpos”, foi nesta obra que me deparei com a ideia de “a vida como obra de arte” e a citação de Foucault que eu coloquei acima. Dez anos lendo Foucault e ainda sei tão pouco, como eu nunca me deparara com tal conceito? Me lembrei de uma aula (que possivelmente também tem mais de dez anos) com a professora e filósofa Vera Portocarreiro (UERJ), autora de uma vasta obra. Eu, que na ocasião já havia lido uns cinco livros de Foucault, fiz-lhe uma pergunta, do tipo pretensiosa, para demonstrar meu conhecimento, no que ela me respondeu:
sou uma estudiosa de Foucault há vinte anos e hoje posso dizer que sei um pouco, conheço pessoas que o estudam há 30 anos e me dizem que há muito a saber. Minha arrogância pseudointelectual ficou ali no chão daquela sala.

Giorgio Agamben é um desses grandes estudiosos da obra de Foucault, mas é muito mais que isso. Autor de obras que relacionam a filosofia com a literatura e a poesia, mas, sobretudo, com a política, um dos conceitos fundamentais de Agamben é o de homo sacer, isto é, homem sagrado e posteriormente o de “Estado de Exceção”. Foi lendo “Profanações” (obra publicada em 2005, que só tomei conhecimento bem mais tarde), que passei a me interessar mais por Agamben, o modo como ele apresentou o conceito de profanar me capturou, o filósofo retira do direito romano, cuja função seria de oposição a “consagrar” (tornar sagrado), isto é, “saída das coisas do direito humano”, em contrapartida, “profanar” designa “restituir ao uso livre dos homens”. Foi ai que me descobri um profanador.

Em “O uso dos corpos”, Agamben dá continuidade ao conceito de homo sacer, uma grande questão é saber o que é vida? O que é viver? Como tal conceito emergiu na sociedade Ocidental? Como um filólogo, um genealogista, Agamben percebe que em Aristóteles há duas formas distintas de descrever vida: Zoè e Bios. No primeiro caso, vida é sinônimo de seres viventes, o que inclui todos os seres, no segundo caso, trata-se de uma particularidade que nos diferencia enquanto espécies; o animal político.

Agamben procura assim estabelecer uma ética da existência, o que significa dar sentido a vida. Ao ler Foucault, encontra o debate sobre o conceito de “sujeito”, mão não mais aquele sujeito cartesiano do cogito ergo sum, onde o sujeito é dado a priori, o sujeito em Foucault se constitui na relação com si e com o mundo, trata-se de “constituir-a-si”.

Imagine que você é um escultor, que está diante de um bloco enorme de mármore, você não tem muita noção de quanto tempo levará para esculpir, talvez até tenha uma ideia prévia do que vai fazer com seus formões na rocha, mas conforme vai entalhando, vai percebendo nuances, que levarão a outras direções, que modificarão o projeto original. Possivelmente o tempo, as intempéries, os diálogos com terceiros e tantas outras coisas poderão gerar novas percepções sobre sua obra. O ser que iniciou aquele trabalho, que tinha uma noção de como realizá-lo, agora não é mais o mesmo, é outro, talvez tenha sobrado apenas um pequeno fragmento, uma lembrança daquele indivíduo que deu o primeiro entalhe.

Seríamos todos escultores de nossa própria obra? A resposta é, geralmente não. Aqui é importante dizer que há nos grupos sociais uma série de relações de poder (Estado, Igreja, Família, organizações civis….), que funcionam como dispositivos de sujeição, cuja função é nos conduzir em cada entalhe. Esse assujeitamento, retira de nós a liberdade de contituir-a-si, estabelece parâmetros sobre o que é a vida e padrões de como nossos corpos devem ser utilizados. A vida como obra de arte é possível, para tanto, faz-se necessário compreender o funcionamento das coisas, neste caso, os gregos antigos, a filosofia, pode muito contribuir. Não, falo de coisas do tipo “10 hábitos que vão mudar sua vida”, estes tipos de autoajuda são mecanismos de sujeição. Filosofia de verdade não te dá fórmulas prontas, acabadas, porque nenhum ser humano é igual ao outro. O uso dos corpos como obra de arte é, portanto, descobrir-se-a-si, encontrar-se com sua singularidade, tornar-se livre-em-si, sem muletas metafísicas.

A vida como obra de arte é como olhar para uma tela em branco e não ter certeza alguma de como ficará ao final, mas saber que você desfrutará de cada traço, ponto ou borras ali colocados, escolherá livremente sua palheta de cores e variará entre pincéis e espátulas ao seu bel prazer. A vida como obra de arte é aquela onde se tem o máximo de consciência de escolhas e satisfação no viver, sem preocupar-se demasiadamente com o que outros pensarão. Sem se preocupar de atingir a perfeição, pois como disse Salvador Dali: você nunca irá atingi-la.

Jonatas Carvalho 

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