Surpreende-me
que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo que é
relacionado aos objetos, não aos indivíduos e à vida, e igualmente
que seja considerada um âmbito especialístico feito de peritos que
se chamam artistas. Mas a vida de cada indivíduo. não poderia ser
uma obra de arte? Por que uma lâmpada ou uma casa são objetos de
arte, e nossa vida não? (Michel
Foucault - 1983)
Tenho o hábito de comprar livros e
colocar a data da aquisição, dessa forma consigo saber há quantos
anos tal livro está comigo e há quanto tempo eu o li. Essa semana
fui buscar na estante um livro do Foucault, “A Hermenêutica do
Sujeito”, me deparei com a data de agosto de 2008, resolvi olhar
outros livros do autor na estante, o mais antigo é de 2005
(Microfísica do Poder), são mais de dez anos lendo Foucault. Eu
estava a procura de uma referência que achei em outro filósofo,
Giorgio Agamben, na sua obra “O uso dos corpos”, foi nesta obra
que me deparei com a ideia de “a vida como obra de arte” e a
citação de Foucault que eu coloquei acima. Dez anos lendo Foucault
e ainda sei tão pouco, como eu nunca me deparara com tal conceito?
Me lembrei de uma aula (que possivelmente também tem mais de dez
anos) com a professora e filósofa Vera Portocarreiro (UERJ), autora
de uma vasta obra. Eu, que na ocasião já havia lido uns cinco
livros de Foucault, fiz-lhe uma pergunta, do tipo pretensiosa, para
demonstrar meu conhecimento, no que ela me respondeu:
–
sou uma estudiosa de Foucault há
vinte anos e hoje posso dizer que sei um pouco, conheço pessoas que
o estudam há 30 anos e me dizem que há muito a saber. Minha
arrogância pseudointelectual ficou ali no chão daquela sala.
Giorgio
Agamben é um desses grandes estudiosos da obra de Foucault, mas é
muito mais que isso. Autor de obras que relacionam a filosofia com a
literatura e a poesia, mas, sobretudo, com a política, um dos
conceitos fundamentais de Agamben é o de homo sacer, isto é,
homem sagrado e posteriormente o de “Estado de Exceção”. Foi
lendo “Profanações” (obra publicada em 2005, que só tomei
conhecimento bem mais tarde), que passei a me interessar mais por
Agamben, o modo como ele apresentou o conceito de profanar me
capturou, o filósofo retira do direito romano, cuja função seria
de oposição a “consagrar” (tornar sagrado), isto é, “saída
das coisas do direito humano”, em contrapartida, “profanar”
designa “restituir ao uso livre dos homens”. Foi ai que me
descobri um profanador.
Em
“O uso dos corpos”, Agamben dá continuidade ao conceito de homo
sacer, uma grande questão é saber o que é vida? O que é
viver? Como tal conceito emergiu na sociedade Ocidental? Como um
filólogo, um genealogista, Agamben percebe que em Aristóteles há duas formas distintas de descrever vida: Zoè e Bios. No
primeiro caso, vida é sinônimo de seres viventes, o que inclui
todos os seres, no segundo caso, trata-se de uma particularidade que
nos diferencia enquanto espécies; o animal político.
Agamben
procura assim estabelecer uma ética da existência, o que significa
dar sentido a vida. Ao ler Foucault, encontra o debate sobre o
conceito de “sujeito”, mão não mais aquele sujeito cartesiano
do cogito ergo sum, onde o sujeito é dado a priori, o
sujeito em Foucault se constitui na relação com si e com o mundo,
trata-se de “constituir-a-si”.
Imagine
que você é um escultor, que está diante de um bloco enorme de
mármore, você não tem muita noção de quanto tempo levará para
esculpir, talvez até tenha uma ideia prévia do que vai fazer com
seus formões na rocha, mas conforme vai entalhando, vai percebendo
nuances, que levarão a outras direções, que modificarão o projeto
original. Possivelmente o tempo, as intempéries, os diálogos com
terceiros e tantas outras coisas poderão gerar novas percepções
sobre sua obra. O ser que iniciou aquele trabalho, que tinha uma
noção de como realizá-lo, agora não é mais o mesmo, é outro,
talvez tenha sobrado apenas um pequeno fragmento, uma lembrança
daquele indivíduo que deu o primeiro entalhe.
Seríamos
todos escultores de nossa própria obra? A resposta é, geralmente
não. Aqui é importante dizer que há nos grupos sociais uma série
de relações de poder (Estado, Igreja, Família, organizações
civis….), que funcionam como dispositivos de sujeição,
cuja função é nos conduzir em cada entalhe. Esse assujeitamento,
retira de nós a liberdade de contituir-a-si, estabelece
parâmetros sobre o que é a vida e padrões de como nossos corpos
devem ser utilizados. A vida como obra de arte é possível, para
tanto, faz-se necessário compreender o funcionamento das coisas,
neste caso, os gregos antigos, a filosofia, pode muito contribuir.
Não, falo de coisas do tipo “10 hábitos que vão mudar sua vida”,
estes tipos de autoajuda são mecanismos de sujeição. Filosofia de
verdade não te dá fórmulas prontas, acabadas, porque nenhum ser
humano é igual ao outro. O uso dos corpos como obra de arte é,
portanto, descobrir-se-a-si, encontrar-se com sua singularidade,
tornar-se livre-em-si, sem muletas metafísicas.
A
vida como obra de arte é como olhar para uma tela em branco e não
ter certeza alguma de como ficará ao final, mas saber que você
desfrutará de cada traço, ponto ou borras ali colocados, escolherá
livremente sua palheta de cores e variará entre pincéis e espátulas
ao seu bel prazer. A vida como obra de arte é aquela onde se tem o
máximo de consciência de escolhas e satisfação no viver, sem
preocupar-se demasiadamente com o que outros pensarão. Sem se
preocupar de atingir a perfeição, pois como disse Salvador Dali:
você nunca irá atingi-la.
Jonatas Carvalho
Jonatas Carvalho
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