sexta-feira, maio 02, 2025

MUITO MAIS QUE UMA GUERRA TARIFÁRIA OU UMA NOVA PAZ ARMADA.

Em seu livro de memórias O Mundo de Ontem (1934–42), Stefan Zweig escreveu o seguinte: “Quando tento encontrar uma fórmula simples para o período no qual cresci, antes da Primeira Guerra Mundial, espero traduzir sua plenitude chamando-o de Época de Ouro da Segurança”. A obra de Zweig, dentre muitas outras resgatadas por David Fromkin em O Último Verão Europeu, serviu ao historiador para demonstrar que, pouco antes de a Primeira Guerra eclodir e se desenvolver em um dos mais traumáticos eventos mundiais, o mundo vivia em paz — pelo menos, essa seria a sensação capturada entre os europeus. Até o início do verão de 1914, prevalecia, entre as lideranças políticas e econômicas, a crença na impossibilidade de um conflito armado entre as grandes potências. Os movimentos militares, entretanto, davam outros indícios. Justamente essa junção entre a chamada corrida armamentista e o ambiente da “época de ouro da segurança” resultou no que ficou conhecido como a “paz armada”.

O termo “paz armada”, notabilizado a partir da obra Paz e Guerra entre as Nações (1962), do historiador e diplomata francês Raymond Aron, conviveu com outro: o de “paz precária”, da historiadora Barbara Tuchman, em The Guns of August (1962). Em ambos os casos, a ideia era a de que a paz estava garantida pela elevação dos gastos em armamentos entre as potências europeias.

A “época de ouro da segurança” de Zweig, compartilhada por outras personagens da História, no entanto, não correspondia à realidade mundial; poderíamos dizer que se tratava de um “sentimento europeu”. O mundo, entre o final do século XIX e o início da Primeira Guerra, poderia ser muitas coisas, menos um lugar seguro. Se é verdade que, desde a Guerra Franco-Prussiana (1871), não havia ocorrido outro conflito armado entre duas ou mais potências europeias, isso não significa que os conflitos armados tivessem cessado no mundo — pelo contrário. As guerras coloniais seguiam a todo vapor: os britânicos deram início à Guerra Anglo-Zulu (África do Sul) em 1879 e, apesar de derrotas humilhantes como a da Batalha de Isandlwana, os colonizadores anglos venceram. Entre 1881 e 1899, a Guerra Mahdista, no Sudão, contra as tropas anglo-egípcias. A Itália, em 1895, invadiu a Etiópia na tentativa de tomar o território, no que ficou conhecido como Primeira Guerra Ítalo-Etíope (ou Guerra da Abissínia, para os italianos); o conflito terminou com a derrota dos invasores. No lado americano do Atlântico, em 1898, a Espanha travou uma guerra com os EUA, perdendo suas colônias (Cuba, Porto Rico e Filipinas) para os estadunidenses. Na virada do século (1899–1902), deu-se a Guerra dos Bôeres, na qual os britânicos dominaram os colonos holandeses (bôeres) na África do Sul, com direito até à utilização de campos de concentração contra civis bôeres.

Nas regiões da Ásia e Oceania, pelo menos três grandes conflitos merecem destaque: a Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894–1895), momento em que Taiwan foi anexada pelo Japão; a Revolta dos Boxers (1899–1901), uma reação anticolonial chinesa, massacrada pela chamada Aliança das Oito Nações (Áustria-Hungria, Império Britânico, França, Alemanha, Itália, Japão, Rússia e Estados Unidos); e a Guerra Russo-Japonesa (1904–1905), confronto iniciado pelo controle da Manchúria e da Coreia, com vitória japonesa.

O período foi marcado por diversas reações anticoloniais. Destaco aqui: a Guerra de Aceh (1873–1904), uma longa resistência do Sultanato de Aceh (Indonésia) contra os holandeses; a rebelião Maji Maji (1905–1907), em que o povo da então África Oriental Alemã (atual Tanzânia), sofrendo com o trabalho forçado, se rebelou — os alemães massacraram os “revoltosos”; estima-se que mais de cem mil foram assassinados. Por fim, a Guerra do Rif (ou Segunda Guerra Marroquina), iniciada em 1909, entre os espanhóis e os berberes (tribos rifenhas), que só terminaria com a derrota dos berberes, devido ao apoio dos franceses aos espanhóis em 1926.

Não menos importante, na América do Sul, dois conflitos merecem ser lembrados aqui. O primeiro é a Guerra do Pacífico (1879–1884), envolvendo a disputa por minerais no Deserto do Atacama, terminando com o Chile vencendo a aliança boliviana-peruana; o outro foi a Revolução Mexicana (1910–1920), liderada por Emiliano Zapata e Francisco Villa contra a ditadura de Porfírio Díaz.

Como se pode verificar, na longa introdução acima, a chamada “época de ouro da segurança”, esse sentimento compartilhado entre os europeus após a Guerra Franco-Prussiana, reflete a percepção que estes tinham de si mesmos: sua superioridade civilizatória. Os conflitos enumerados acima eram, nesse sentido, vistos como parte do “fardo do homem branco” (Rudyard Kipling – 1899). Todos esses conflitos, impetrados pelos ocidentais fora do terreno europeu, não produziam qualquer sentimento de insegurança. A Europa se extasiava com o liberalismo. David Fromkin cita a admiração de John Maynard Keynes por esse período sem controles comerciais e alfândegas: “você podia entrar com o que quisesse na Grã-Bretanha ou mandar qualquer coisa para fora.” O historiador A. J. P. Taylor (História da Inglaterra – 1914–1945) escreveu que “até 1914, um inglês sensível e obediente à lei podia passar pela vida sem notar a existência do Estado.” Ainda assim, as guerras e massacres por parte das potências ocidentais nunca deixaram de ocorrer.

Algo semelhante foi construído no pós-Guerra Fria (1991) — por sinal, outro título ilusório, atribuído a George Orwell, mas, na verdade, cunhado pelo multimilionário e conselheiro presidencial estadunidense Bernard Baruch —: uma espécie de “sentimento” de paz estava sendo produzido desde a criação da La Colombe, a pomba branca que Pablo Picasso pintou sob encomenda da então recém-criada ONU, na ocasião do Congresso Mundial da Paz, em Paris, em 1949. O fim do “mundo bipolar” — mais um termo que não define o mundo — tinha, em sua propaganda, o fim dos conflitos, ou o fim da história, como sugeriu Fukuyama em 1992. O novo mundo monopolar capitalista, baseado em regras, resultaria na paz duradoura. Mais uma vez, tal discurso não correspondia à realidade.

Só na década de 1990, tivemos pelo menos três grandes conflitos armados: a Guerra do Golfo (1990–1991), em que os EUA expulsam o Iraque do Kuwait; as Guerras da Iugoslávia (1991–2001) — incluindo Bósnia (1992–1995) e Kosovo (1998–1999); e a Primeira Guerra da Chechênia (1994–1996), terminando com a independência da Chechênia diante da Rússia. Na virada para o século XXI, aqueles que imaginaram que, depois de tantos conflitos, os homens finalmente atingiriam a sensatez tiveram uma grande decepção. O onze de setembro inaugurou a chamada “Guerra ao Terror”: já em 2001 teve início a invasão dos EUA ao Afeganistão, uma guerra de vinte anos; em 2003, foi a vez dos estadunidenses invadir o Iraque, e sob a falsa alegação de armas de destruição em massa, massacraram os iraquianos. Na Segunda Guerra da Chechênia (1999–2009), a Rússia, já sob a liderança de Putin, retomou a Chechênia; e, não menos drástica, em 2006, Israel invadiu o Líbano — Robert Fisk, autor de Pity the Nation: Lebanon at War (1990), cobriu por décadas diversos momentos de destruição do Líbano, incluindo uma invasão anterior de Israel, em 1982, como o massacre de Sabra e Shatila.

É certo que, para quem acompanha as emissoras ocidentais, aparentemente, no mundo hoje temos apenas dois problemas: a guerra Rússia x Ucrânia e a guerra tarifária entre EUA e China. O Ocidente, por sua vez, ofusca brutalmente a limpeza étnica do povo palestino. Vimos de relance, recentemente, a derrubada de Bashar al-Assad, mas não sabemos quase nada da guerra civil na Síria, que ocorre desde 2011. Também vem ocorrendo uma guerra civil no Iêmen, iniciada em 2014, agravada pelo apoio da resistência dos Houthis à causa palestina, atacando navios em direção a Israel no Mar Vermelho e no Golfo de Áden.

No continente africano, tivemos uma guerra civil na Etiópia (2020–2022), com mais de 85 mil mortes e centenas de milhares de deslocados — um conflito mal resolvido que pode reacender a qualquer momento. Na região do Sahel, área de influência da França — que inclui dez países: Mauritânia, Senegal, Mali, Burkina Faso, Níger, Nigéria, Chade, Sudão, Eritreia e Etiópia —, mais de 4 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas. Na Somália, a guerra civil (em curso desde 2006) intensificou-se em 2022. E, certamente, um dos mais graves conflitos armados no continente africano: a guerra entre a República Democrática do Congo e o movimento 23 de Março (M23), com forças ruandesas aliadas avançando para Goma e Bukavu. Esse conflito sofre forte interferência das grandes empresas ocidentais, ávidas pelo controle das minas de cobre e cobalto do Congo — sim, a transição energética para carros elétricos está sendo realizada às custas da morte por contaminação de milhares de mulheres e crianças congolesas.

Para além de uma guerra tarifária, enquanto escrevo este ensaio, diversos movimentos são executados em várias partes do mundo na direção de mais e mais belicismo. Os gastos militares em 2024 chegaram perto dos 2,5 trilhões. A União Europeia propôs um plano (ReArm Europe) para ampliar seus “investimentos em defesa”, na ordem de 800 bilhões de euros. A China também ampliou seus gastos em defesa em mais de 7%. Além disso, outros movimentos deliberados em direção a conflitos diretos estão em plena atividade. É o caso da tensão entre a Moldávia e a Transnístria, como parte da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Outra importante zona de tensão (e não é de hoje), a Caxemira, tem levado tropas de duas potências nucleares (Índia e Paquistão) para as fronteiras, à beira de um conflito que pode ser devastador.

Trump discursou recentemente em uma formatura na Universidade do Alabama, afirmando: “Vocês são a primeira turma de formandos da era de ouro da América.” Nunca houve uma época de ouro ou de segurança no mundo. O discurso idílico, evidente, produz seus efeitos, mas, quando se olha com mais atenção, o que vemos são os senhores da guerra, enquanto devoram carnes raras e vinhos caríssimos — que a maioria de nós jamais chegará perto —, com seus talheres de ouro, decidem quais outras partes do mundo poderão fazer emergir um novo conflito armado. O mundo não é a La Colombe, é Guernica. 

Jonatas Carvalho 

Historiador e Doutor em Sociologia e Direito


domingo, abril 20, 2025

A PESTE DE FREUD NA ERA DE OURO DE TRUMP

Entre agosto e setembro de 1909, Sigmund Freud, na companhia de Carl Jung e Sandor Ferenczi, a convite de Granville Stanley Hall, proferiu um ciclo de conferências que ficaram conhecidas como "Cinco Lições da Psicanálise" na Clark University em Worcester, Massachusetts. 

A viagem do Dr. Freud aos EUA já foi foco de muitas pesquisas e interpretações, incluindo o livro (Freud, Jung and Hall the king-marker: the expedition to America, 1909), de Saul Rosenzweig, professor emérito de psicologia e psiquiatria da Universidade de Washington em St. Louis. Ernst Jones, biógrafo de Freud, também menciou a viagem. 

Mas teria sido Lacan, em 1955, a revelar um diálogo entre Freud e Jung, ainda dentro do navio, que ao avistar a estátua da liberdade, Freud teria dito: "Não sabem que estamos lhes trazendo a peste!". Lacan, estava em Viena, a interpretação dominante sobre a frase de mestre dizia que se tratava do caráter subversivo da psicanálise. A psicanálise seria assim uma “peste”, por, ao ir de encontro às convenções morais de então, representaria um perigo. Mas Lacan, tinha concluído que a psicanálise “não foi uma revolução para a América na realidade, a América é que tinha devorado sua doutrina" (CHINALLI,2010).  

Fonte: The New York Times. 
É fato, que mesmo tendo Freud se animado com o convite de Stanley Hall, em sua autobiografia em 1925, escreveu que havia sido a primeira vez que sentira que a psicanálise ganhara algum reconhecimento. Ainda assim, Freud, não só nunca retornou aos EUA, como observava com desconfiança o que se fazia com ela por lá. 

Não é difícil compreender que na terra do “time is money” , do “fast food”  e do behaviorismo, a psicanálise não renderia grandes frutos, caso não passasse por uma mercantilização da prática clínica. Ainda assim, na terra do “Tio Sam”, a psicanálise está afastada dos centros universitários, com raras exceções. Por outro lado, a propaganda sobre medicamentos indicados para os mais diversos “transtornos mentais” compete os espaços (outdoors) públicos ao lado dos hambúrgueres. 

Meu ponto, porém, em relação a “peste” de Freud, é outro. Uma vez que a grande questão da psicanálise é que esta tem em seu fundamento que o homem não é senhor pleno de seus pensamentos e ações. Como escreveu Franklin L Baumer (1977), “o ego (razão), não dirige a vontade e todo o trabalho do espírito.” Neste sentido, a psicanálise é uma “peste” nos EUA porque ela contrasta com o "American Way of Life", a mensagem da psicanálise é que o “Sonho Americano” é impossível, pois não há como satisfazer plenamente o desejo. 

O “tarifaço” de Donald Trump procura de certa forma exatamente isto, restituir o desejo ao máximo. A queda brutal do poder de compra da classe média estadunidense foi acompanhada, evidentemente, pelo crescimento da pobreza. Pior que isto, ao “mande Brazil”, um abismo sócio-econômico vem consumindo o solo das classes, como se fosse um buraco negro. As famílias oligárquicas da Costa Leste estão ainda mais ricas, um pequeno império emergente se destaca (das BigTechs), enquanto o restante, vê a precarização crescer feito uma bola de neve que desce a montanha. 

Ao orientar-se pela perspectiva da "America First", Trump, imagina resgatar o “Sonho Americano”, retomar os altos índices de consumo, mais que isto, instaurar uma "Era de Ouro". Essa intensificação do desejo, o “eu quero, eu posso”, diante da nova reorganização da economia mundial, como os BRICS, em especial a China, o “Tio Sam”, vem se deparando com algo inesperado; o limite. O Sul Global, me parece, irá se encarregar dessa grande lição aos estadunidenses, que é, “vocês não podem tudo!”. Haverá muitos traumas. 

Jônatas Carvalho. 
Historiador - Doutor em Sociologia e Direito. 

Notas: 
Myriam Chinalli. A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Veja também: https://appoa.org.br/correio/edicao/334/psicanalise_da_peste_a_viralizacao/1312 
Uma leitura de uma psicanalista brasileira nos EUA. https://appoa.org.br/correio/edicao/325/notas_de_uma_psicanalista_brasileira_nos_estados_unidos/1169 Franklin L. Baumer. O pensamento europeu moderno, Vol. II, p. 192.  
 

domingo, abril 06, 2025

A DIREITA ECONÔMICA BRASILEIRA E O FIM DE BOLSONARO.

    Neste domingo de frio em São Paulo, o DataFolha publica uma pesquisa que esfria ainda mais a vida política de Bolsonaro. A matéria que chama a atenção para a pesquisa tem o seguinte título: "67% afirmam que Bolsonaro deveria abrir mão da candidatura." No subtítulo, o instituto revela que "Michelle e Tarcísio são os nomes mais citados" entre os possíveis candidatos que o ex-presidente deveria apoiar.

    Uma manchete aparentemente informativa é, na verdade, parte da máquina de propaganda que a direita econômica (por direita econômica, refiro-me aos conglomerados de mídia, agroexportação e especulação financeira) vem produzindo já faz algum tempo. Quando, em fevereiro deste ano, o Fantástico dedicou uma longa matéria expondo "áudios inéditos" sobre a trama do golpe para matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes, eu não tinha mais dúvidas de que Bolsonaro havia sido abandonado.

    Ao longo dos dois últimos anos, a direita econômica esteve lado a lado com Tarcísio de Freitas, com um apoio poucas vezes visto. O governador de São Paulo recebe as benesses d**'O** Folha e d**'O** Estadão diariamente. O PIG (Partido da Imprensa Golpista), para relembrar um velho jornalista, não permite que qualquer mancha de sangue (da corrupção e associações criminosas do governador) chegue aos seus leitores.

Fonte: ICL - (Foto: EVARISTO SA / AFP)
    Nesta semana, duas novas personagens emergiram no cenário para lançar luz sobre a opção por Tarcísio. A primeira, José Dirceu (PT), em um evento sobre o Golpe de 1964, afirmou que a "Elite de São Paulo" já havia abraçado Tarcísio. Do outro lado, o senador Ciro Nogueira (PP), em conversa com representantes da Faria Lima que estavam preocupados com a possibilidade de terem que contribuir mais com o imposto de renda, alegou que "uma candidatura de Tarcísio de Freitas com o apoio de Bolsonaro, inelegível, venceria até no Nordeste".

    Mas, para Tarcísio ascender, é preciso lançar Bolsonaro ao precipício. Na minha avaliação, este é o grande jogo, com muitas peças e movimentações. Enumerarei aqui algumas: um movimento eu já destaquei acima, isto é, trata-se de elevar a imagem de Tarcísio como um político moderado e competente; seus "sucessos" como governador do Estado mais poderoso do Brasil o colocariam como o mais preparado para a presidência. Por outro lado, é necessário abrir candidaturas à direita em outros Estados. O discurso de Caiado, Ratinho Júnior ou mesmo Zema contra Lula e o PT será fundamental para não permitir uma recuperação da aprovação do governo petista. No tempo certo, esses pré-candidatos da direita se uniriam numa aliança pró-Tarcísio.

    Finalmente, um movimento absolutamente fundamental: a aceitação da Primeira Turma do STF em tornar Bolsonaro (e seu staff) réus. Ao longo de 2025, o ex-presidente irá sofrer enormes perdas de popularidade; o PIG trará inúmeras reportagens especiais revelando as imundícies da família do ex-presidente e o pressionará a se render a Tarcísio. Para não haver dúvidas, não estou sugerindo que o STF será usado como uma peça que a Direita Econômica utilizará – ao contrário, estou sugerindo que o Supremo é parte integral do jogo. Não creio que eu precise lembrá-los de que este é o mesmo Supremo que manteve Lula preso e o impediu de disputar uma eleição em que ele liderava nas pesquisas, só porque, na ocasião, esta mesma Direita Econômica havia optado por Bolsonaro e Paulo Guedes.


quinta-feira, janeiro 16, 2025

DITADURAS E RESISTÊNCIAS LATINOAMERICANAS: MEMÓRIA, HISTÓRIA E ARTE.

Eu e minha marida assistimos "Ainda estou aqui", alguns dias antes de Fernanda Torres ser premiada. Faz poucos dias que escrevi aqui um texto refletindo sobre os papéis do 6 e o 8 de janeiro, respectivamente nos EUA e no Brasil. O fato é que os eventos históricos, independente dos atores sociais envolvidos, tornam-se espaços de lutas pela memória que acabará prevalecendo (mesmo que não prevaleça eternamente, ocasionalmente memórias são resignificadas). É assim que surgem os heróis e vilões nacionais (é assim que alguns heróis são convertidos em vilões e vice-versa). Estes são construídos discursivamente, neste sentido, a memória é produzida pelas relações de poder, logo, aqueles que detêm o poder econômico-político, cujas forças controlam os meios de comunicação e produção de conhecimento, tendem a determinar que memórias devem ser memoradas e de que forma elas devem ser memoradas.. É aí que entra a história, o ofício da pesquisa histórica (também sociológica, geográfica, antropológica, arqueológicas entre outras), sua busca pelas fontes documentais, materiais e orais, podem re-significar certas memórias.

Cito um exemplo bem recente e prático, a Folha(SP) publicou em novembro de 2024, uma matéria sobre a retirada de luminárias japonesas no "beco dos aflitos" no bairro da Liberdade. Por tratar-se de um bairro amplamente conhecido como “bairro japonês” — se você "der um google", vai ver que a maioria absoluta das informações sobre o bairro estão ligadas a cultura japonesa, o mesmo ocorre com os bairros Bela Vista e Mooca em relação aos italianos — não faltaram críticas, chegaram a falar em tentativa de apagamento da memória japonesa, um "jornalista" do Gazeta do Povo, falou em discurso da militância do movimento negro. Quando na verdade, e aí a documentação é fundamental, o bairro da Liberdade, não tem esse nome a toa, mas por ser historicamente um bairro negro. A Capela do Aflitos, inaugurada no século XVIII, assim como o cemitério dos Aflitos e o Largos do Enforcados (também conhecido como morro da forca, onde se construiu a igreja de Santa Cruz das Almas dos Enforcados), são alguns exemplos da presença negra na liberdade é anterior a japonesa.O que ocorreu foi uma sobreposição de memória, isto é, a construção de uma memória sobre outra, como escreveu o historiador Paolo Rossi, em Memória e Esquecimento (2010), não esquecemos por apagamento puro e simples, ao contrário, esquecemos por sobreposição, isto é, não é por ausências que ocorrem os apagamentos, mas sim as presenças e novas simbioses.
               Painel: Memorial da Resistência

Não é diferente com nossa história sobre o regime ditatorial, as tentativas de negar duas décadas de supressão de direitos, censura, repressão, sequestros, torturas e assassinatos é uma produção discursiva que procura se sobrepor a memória da ditadura, instaurando novas presenças que ignoram fontes históricas ou as deturpam. Entretanto, tais tentativas são suportadas por um arcabouço frágil, um pequeno gigante de pés de barro, que não aguenta uma hora de debate sem se repetir.


Eu e minha marida estivemos na semana passada na Pina Estação, onde, em caráter permanente foi montado o Memorial da Resistência, um lugar com uma farta documentação sobre os espaços de tortura construídos no Brasil ao longo dos anos da ditadura. É emocionante (pesado) visitar as celas onde nossos presos políticos viveram (ou morreram) grandes sessões de terror. Mas não para por aí, há outra exposição no mesmo espaço, porém itinerantes, chamada Uma Vertigem Visionária — Brasil: Nunca Mais, com curadoria do pesquisador e professor Diego Matos; novamente, uma farta documentação. O Brasil: Nunca Mais, produziu e sistematizou cópias de mais de 1 milhão de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal Militar (STM), revelando a extensão da repressão política do Brasil no período. A documentação foi toda digitalizada e está disponível no site https://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. E se os os duvidosos não ficarem satisfeitos, — digo duvidosos, porque os negacionistas se recusam a enxergar, estão convencidos, e, como escreveu Nietzsche, o convicto é mais perigoso que o mentiroso, pois o primeiro tem a certeza de que está com a verdade, — temos mais uma exposição, tão impactante quantos as outras, trata-se de Memória argentina para o mundo: o Centro Clandestino ESMA. O ESMA (antiga Escola de Mecânica da Marinha), onde atualmente funciona o Museu Sítio de Memória, era um Centro Clandestino de Detenção, Tortura e Extermínio, em Buenos Aires (AR). Dos 30 mil presos e desaparecidos da Ditadura Argentina, entre os anos de 1976 e 1983, cerca de 5 mil foram enviados para a ESMA, o que fez do espaço o maior centro de tortura do país. A documentação apresentada na exposição é impressionante, particularmente, ainda mais tocante são os depoimentos das mulheres por lá presas e torturadas. Ao todo, se colocarmos os documentos em linha, são 5 quilômetros em papéis que revelam a desumanização e a barbárie por parte da ditadura argentina.

Estes espaços seguem sob a mira furiosa daqueles que querem destruir tais memórias, no exato momento em que escrevo este texto, não por coincidência, o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, em péssimas condições de preservação, foi fechado pelo governador Cláudio Castro. O ex-diretor do Arquivo, Victor Travancas, exonerado após denunciar as más condições gerais do arquivo, alertou sobre o comprometimento da conservação da documentação, incluindo uma vasta documentação do período da ditadura no Brasil. Algo semelhante ocorre com a ESMA, o atual presidente Javier Milei, segundo a Folha (SP), pretende enxugar a política de memória na Argentina, quando na verdade o que se pretende é tornar tal espaço cada vez mais inacessível ao público.

O historiador Rodolfo Costa Machado, da PUC-SP, investigou os “arquivos do terror” do Paraguai, tais arquivos foram revelados pelo advogado e ativista Martín Almada, preso político da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989). A mulher de Almada, morreu de infarto em prisão domiciliar, porque os militares ligavam pra ela e a obrigavam a escutar as sessões de tortura do marido. Rodolfo Machado, fez parte da Comissão da Verdade no Brasil, seu grupo de trabalho investigou a documentação sobre a participação do grande empresariado, são muitas, dentre elas podemos citar a Volkswagen, Paranapanema, Folha de São Paulo, Fiat, Aracruz e muitas outras. Mas foi René Armand Dreifuss, em sua robusta obra, “1964: A Conquista do Estado” (1981), que revelou a participação do capital estangeiro nos golpes militares pela América Latina, especialmente, a participação da “ADELA”, acrônimo para Atlantic Community Development Group for Latin America, grupo multibilionário formado em 1962, encabeçado pelo vice-presidente do grupo Rockfeller, reunia cerca de 240 empresas industriais e bancos. No Brasil, os interesses econômicos do “ADELA” estavam representados em think tanks como o Ipes [Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais], o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), ambos ligados à Escola Superior de Guerra (ESG). Mais recentemente, outro historiador, Pedro Henrique Campos, em sua tese “Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar”, demonstra como as conhecidas Queiroz Galvão, Camargo Correa, Andrade Gutierrez e Odebrecht, só tornaram-se grandes conglomerados devido ao apoio aos generais. Outras empresas, por não se alinharem aos generais, como a Panair, a TV Excelsior, os jornais Correio da Manhã e Última Hora, ao contrário, foram fortemente perseguidas até serem entregues aos grupos que apoiavam a ditadura. As empresas investigadas, violaram todas as formas de direitos, perseguiram trabalhadores, torturavam dentro de seus estabelecimentos e fizeram uso do trabalho escravo, como foi o caso da fazenda da Volkswagen no Pará e a Paranapanema, que utilizou mão de obra indígena na construção da Transamazônica. A Volkswagen assinou, em 2020, um acordo na ordem de 36 milhões junto ao Ministério Público de São Paulo. Trata-se do primeiro caso de reparação empresarial em razão da prática de crime de violação de direitos humanos.

A produção acadêmica-científica sobre o período das ditaduras na América Latina cresce anualmente, aos poucos novas documentações vão sendo reveladas. Rodolfo Costa Machado, em sua tese de doutorado (2017-2022), se debruçou nos arquivos dos EUA, especialmente sobre a operação Condor. Ainda há muita documentação escondida, protegida e desaparecida, no entanto, o que está disponível para investigação já soma uma quantidade significativa e inconteste dos absurdos cometidos sob alegação enganosa de combater o comunismo. Mesmo que o governo Lula III, se recuse a dar prosseguimento aos processos iniciados pela CNV, preferindo uma forma de “conciliação por cima”, beneficiando as elites militares e civis, não falta disposição em outras esferas da sociedade para seguir em frente e esclarecer este passado obscurecido. Por exemplo, o Relatório da Comissão da Verdade Indígena, segundo o qual, mais de 8 mil indígenas foram mortos na Ditadura, mais de 30 mil sofreram todo o tipo de violação. A reparação aos indígenas, sequer iniciada, é entre tantos casos, algo que não pode ficar no esquecimento. A decisão de Lula pela conciliação, isto é, não querer mexer na ferida, é uma acinte aos parentes dos mortos e desaparecidos tanto do campo, quanto da cidade.
 

   

terça-feira, janeiro 07, 2025

ENTRE O 6 E O 8 DE JANEIRO: AINDA ESTAMOS AQUI.

Acordei às 6h novamente. Um professor em recesso escolar, cujo relógio biológico não entra em recesso (ou é só a velhice chegando mesmo), acaba se dedicando a leituras diversas. Li algumas notícias, mas optei por compartilhar minha percepção sobre duas matérias.

A primeira é um texto do Xico Sá para o Diário do Nordeste, em que o jornalista e escritor coloca lado a lado a história de duas mulheres brilhantes: Eunice Paiva e Elisabeth Teixeira. A primeira passou a ser conhecida especialmente após o prêmio a Fernanda Torres pela brilhante atuação no papel da esposa de Rubens Paiva, ex-deputado paulista, capturado, torturado e assassinado em 1971 dentro de um quartel militar. A segunda, creio eu, é absolutamente desconhecida ainda entre nós, mesmo após o sucesso do documentário produzido por Eduardo Coutinho, "Cabra Marcado para Morrer", lançado em 1984. Xico nos lembra a história de Elisabeth, trabalhadora rural da Paraíba, casada com João Pedro Teixeira, mãe de onze filhos, perseguida pela ditadura militar. Ela precisou espalhar seus filhos e desaparecer por um bom tempo, mas Elisabeth está viva, ainda está aqui.

A segunda matéria foi escrita por Joel Pinheiro Fonseca, filho do economista Eduardo Giannetti, para a Folha de São Paulo. O título me chamou a atenção: "Neste oito de janeiro, lembre-se: o PT não é a democracia". O economista liberal argumenta que a direita não pode deixar a esquerda sequestrar a pauta da democracia, como teria feito com outros temas. Para tanto, caberia à direita combater veementemente a crítica à fraude eleitoral das urnas eletrônicas. A base de seu argumento é que, dois anos após os atos de 8 de janeiro de 2023, 86% dos brasileiros desaprovam as invasões nos prédios públicos de Brasília. O que significa, segundo o economista e filósofo, que, embora a direita tenha votado em Bolsonaro, apenas um bando de radicais se aventurou na loucura da invasão, no delírio de uma intervenção militar, enquanto a maior parte é moderada. 

O jornalista liberal pode até ter razão ao afirmar que o PT não é a democracia, isto é, a democracia não é produto de um só partido. Mas, por outro lado, não lhe ocorre que a direita historicamente se alinhou com os fascismos quando lhes convinha deter os avanços das classes trabalhadoras. Os liberais de Washington (democratas e republicanos), com seus poderosos conglomerados, desde a Doutrina Monroe, patrocinam e sustentam golpes de estado no mundo todo. A direita brasileira apoiou a ditadura militar, que perseguiu, sequestrou e torturou mulheres como Eunice Paiva e Elisabeth Teixeira. Quanto ao PT, o caro colunista da Folha ignora a participação fundamental do partido contra a ditadura, assim como seu papel nos avanços da classe trabalhadora deste país. Avanços estes que a direita e a extrema direita vêm destruindo desde a reforma trabalhista em 2017.

Eunice e Elisabeth 

Joel Pinheiro é um liberal que defende uma sociedade "baseada em regras", desde que estas sejam as regras liberais, podendo ser até um "bolsonarismo moderado", que verdadeiramente jogue nas "quatro linhas" do livre-mercado (as aspas são minhas). A democracia é um valor máximo, mesmo com seus defeitos, afirma Joel, não existe alternativa melhor. Fico na dúvida se o filho do grande economista liberal realmente acredita no mundo encantado das liberdades individuais e da livre iniciativa, ou se ele apenas se vende para divulgar tais propagandas. É de bom tom deixar claro que a nossa "redemocratização", tão aclamada pelos liberais, só chegou para as classes privilegiadas. As classes desfavorecidas (pobres, pretas e periféricas) continuam lidando com um Estado de Exceção. A classe trabalhadora, como a categoria "professor(a)", segue sofrendo ataques ininterruptos (com direito a violência policial) pelos "liberais moderados" como os governadores Tarcísio de Freitas (SP) e Cláudio Castro (RJ). Os mesmos liberais moderados que se recusam a taxar os bilionários, mas não hesitam em manter uma taxa de juros abusiva, pois entre deter a inflação e aumentar o desemprego, escolhem o último.

Entre o 6 e o 8 de janeiro, nós que lutamos por justiça social, por reparação histórica e não por uma democracia liberal, ainda estamos aqui.