segunda-feira, outubro 27, 2025

O BIG STICK ALOPRADO E A DIPLOMACIA DAS CANHONEIRAS: TRUMP E A TENTATIVA DE REFAZER DA AMÉRICA LATINA A ZONA DE INFLUÊNCIA DOS EUA.

A Doutrina Monroe (1823): "A América para os Americanos", uma frase que carrega um duplo sentido, afastar definitivamente os impérios europeus do continente americano e garantir a hegemonia estadunidense na região. Foi por meio desta justificativa que os EUA apoiaram os cubanos em 1898 a expulsarem os espanhóis da ilha. O preço da "independência" dos cubanos foi alto, tiveram que incorporar a Emenda Platt (1901) à sua constituição, cedendo ao seu novo "protetor" a Baía de Guantánamo (1903), onde os EUA construíram uma base militar.  A Emenda Platt, permitiria que o governo estadunidense interferisse militarmente sempre que achasse necessário na ilha, além disso, passaram a controlar a política externa dos cubanos, todos os tratados deveriam passar pelo senado em Washington, por fim, dava aos interventores o direito de arrendar terras. A Emenda Platt teve validade até 1934, quando Fulgêncio Batista assumiu o poder da ilha com apoio dos EUA, mas Guantánamo continua servindo aos governos estadunidenses ainda hoje.

Theodore Roosevelt (1904), adicionou à Doutrina Monroe, um novo elemento intervencionista: a possibilidade de intervir preventivamente diante de uma ameaça europeia na América. Denominado de o "Corolário Roosevelt" tal política externa ficou popularmente conhecida como sua política de "Big Stick", isto porque o próprio Roosevelt gostava de repetir um velho provérbio africano que dizia: "Fale baixo e carregue um grande porrete; você irá longe". Roosevelt expandiu as forças navais e afugentou as embarcações europeias do lado de cá do Atlântico, o que lhe permitiu assumir o projeto do Canal do Panamá, mas como o congresso da Colômbia se recusou a ratificar o tratado Hay-Herran (1903), o presidente estadunidense incentivou um movimento de independência no país, colocando o canhoneiro U.S.S. Nashville em águas panamenhas como forma de dissuadir uma reação do governo colombiano. 

Com base no "Corolário Roosevelt", os EUA realizaram diversas intervenções diretas em seus vizinhos mais próximos na primeira metade do século XX, além de Cuba e Panamá, o Big Stick foi utilizado para intervir na Nicarágua (1912-1926), Haiti (1915-1934) e República Dominicana (1916-1924). Mas coube a Honduras carregar o estereótipo clássico de "República das Bananas", o país sofreu intervenção direta dos EUA em 1903, 1907, 1911, 1919, 1924 e 1925. Todas essas intervenções foram realizadas para atender os interesses da United Fruit. Em 1954, a mesma empresa, contou com a CIA para depor o presidente guatemalteco, Jacobo Arbenz, devido sua proposta de reforma agrária.

Em tese, a política do falar baixo carregando um grande porrete foi substituída pela "Política da Boa Vizinhança", instaurada por Franklin D. Roosevelt em 1934. O jeito democrata de ser, trocou a diplomacia canhoneira por Hollywood, no Brasil o intercâmbio cultural via o Office of Inter-American Affairs (OCIAA), permitiu que artistas como Carmen Miranda e produções como o desenho de Walt Disney, Alô, Amigos (1942), fossem usados para criar uma imagem positiva dos EUA e difundir a cultura americana. No campo econômico, Getúlio Vargas conseguiu empréstimos para criar a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). 

O Escritório de Assuntos Americanos, uma espécie de USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), da época, foi responsável pela dominação cultural dos EUA nas Américas, inicialmente, dedicou-se a promover uma enorme propaganda antinazista em parceria com Reuters e a Associated Press. Com o fim da II Guerra Mundial, a OCIAA, comandada por Nelson Rockefeller, foi descontinuada, com início da Guerra Fria a política externa estadunidense foi efetivada pelo Departamento de Estado, que por sua vez, passou a utilizar a OEA (Organização dos Estados Americanos), criada em 1948 para manter o continente americano sob a influência dos EUA. 

Só na década de 1960, com os acirramentos entre os EUA e a URSS que outras duas estruturas fundamentais foram criadas: a USAID (1961), originalmente um braço de desenvolvimento econômico e o Comando SUL (1963), um braço militar, responsável pelas operações militares e de segurança na América Central e do Sul. 

Ao final da Guerra Fria, o combate ao Comunismo foi dando lugar ao combate ao tráfico internacional de drogas ilícitas. A difusão do conceito "Narcoterrorismo", criado pelo então presidente do Peru, Fernando Belaúnde Terry, foi utilizado sem qualquer pudor pela administração Reagan (1981-1989). A primeira grande operação na América Latina por parte dos EUA foi a Blast Furnace (Forno de Fusão), em 1986, na Bolívia. A partir daí novas intervenções na América Latina sob o pretexto do combate ao narcoterrorismo foram comandadas pelo DEA e o Comando Sul. A Operação Just Cause (1989), que culminou com a invasão do Panamá para prender o então presidente Manuel Noriega, sob acusação de chefiar o narcotráfico no país, pode ser considerada um marco da militarização do combate às drogas. A partir daí novas interferências foram instauradas, a chamada “Iniciativa Andina”, iniciada em 1990, no governo de H.W. Bush, um programa focado na Colômbia, Bolívia e Peru, tinha por objetivo erradicar as plantações de coca nestes países. Enquanto o Comando Sul, liderava as operações e treinava as forças de segurança nacionais dos referidos países, a USAID entrava com o projeto de desenvolvimento econômico visando a substituição da cultura da coca por outras. O projeto fracassou terrivelmente, na Colômbia (Plano Colômbia - 1999), por exemplo, foi intensificado a prática da fumigação de glifosato (herbicida), com o objetivo de destruir as plantações de coca. A iniciativa foi desastrosa, comprometeu o solo, a água, impedindo o plantio de novas culturas e gerou enormes consequências de saúde pública para os agricultores locais, além disso, os cultivos de coca foram deslocados para áreas mais remotas. 

Peço desculpas pela longa introdução, nós historiadores somos forjados para contextualizar ao máximo as ações do presente. Entendemos que a história não se repete, claro, mas o passado pode elucidar certas práticas no presente e nos ajudar compreender que tais práticas podem ser "atualizações" ou "reformulações" combinado com "continuações" de práticas passadas. Vejamos o caso mais recente, a saber: as ameaças de interferência direta por parte do presidente dos EUA, Donald Trump, a diversos países da América Latina (Panamá, México, Venezuela e agora a Colômbia). O que há nesse caso que se encaixaria em continuidades, reformulações ou atualizações? 

Se lembrarmos bem, o próprio Trump recorreu a certas práticas do passado, em março de 2025 ele mencionou a chamada Lei dos Inimigos Estrangeiros de 1798, para justificar a intensificação de sua política anti-imigração. Eu não negaria, portanto, que ao mover o grupo de ataque (naval e aéreo) USS Gerald Ford para o mar do Caribe, que ele esteja reeditando a "diplomacia canhoneira" ou o "Corolário Roosevelt". Por outro lado, devemos reconhecer que o lema "Fale baixo e carregue um grande porrete", não combina com Trump; ele grita e exige. Talvez, seja esta a razão pela qual sua administração tenha cortado os investimentos para a USAID, revoluções coloridas não são seu estilo. Seu egocentrismo megalomaníaco é incompatível com a lógica dos democratas, ele assassina e diz que está assassinando, abro aspas: "Acho que vamos apenas matar as pessoas que estão trazendo drogas para o nosso país. Certo? Vamos matá-las."  Quer dizer, ele não se importa de cometer crime internacional à luz do dia. 

O que há de diferença categórica entre o Big Stick de Roosevelt e o de Trump é o contexto histórico, enquanto Roosevelt procurava com seu porrete garantir uma hegemonia política e econômica na América, afastando as potências imperialistas europeias. Trump busca retomar uma suposta hegemonia que teria sido perdida para a China. E é aí que tudo muda, pois a China não é nem de longe uma potência imperialista ocidental. Os impérios ocidentais da primeira metade do século XX eram colonizadores neoclássicos, ocuparam os povos não ocidentais sob a justificativa pseudocientífica da obrigação moral de levar a civilização, era o "fardo do homem branco", como escreveu Rudyard Kipling em 1898. A China por sua vez, chega com oportunidades de ganhos, de incremento tecnológico e desenvolvimento. É claro que ela se beneficia grandemente com isto, seu projeto é criar um grande corredor de negócios por todo o mundo absolutamente independente do chamado ocidente coletivo, o que não impede de ligar o ocidente as suas rotas. É bom lembrar que o gigante asiático hoje é o maior parceiro (ou um dos maiores) comercial de boa parte dos países da América do Sul. 

Essa condição única, isto é, a capacidade competitiva da China, que vem resultando em uma certa interdependência do chamado Sul Global em relação ao sistema monetário ocidental, requer uma estratégia de longo prazo por parte dos EUA e seus aliados da UE e OTAN. Se o jogo tarifário de Trump, ou seja, se suas imposições por tarifas estiverem associadas a um protecionismo que visa a longo prazo a reindustrialização dos EUA — parece que ninguém tem certeza se está ou não — isto poderia, em um futuro distante, reintroduzir o país no jogo das grandes competições (embora não há garantias claras que isso possa acontecer). O que percebemos, entretanto, é que o planejamento a longo prazo não é uma característica dos ocidentais, suas oligarquias preferem, mediante as crises cíclicas de seu sistema econômico, realizar golpes e sabotagens, promover guerras e sacrificar ainda mais suas próprias populações. 

O que Trump quer então com a Venezuela e Colômbia? Todos sabem que o argumento de combate ao narcotráfico é uma desculpa velha. Sabemos que os verdadeiros narcotraficantes não residem na América Latina, eles possuem mansões em Miami, no Havaí, ou em alguma outra ilha atlântica. Eu diria então, que a questão tem relação com a dominação energética. Lembremos que a operação que os EUA vêm produzindo na Europa, via OTAN, com a guerra por procuração da Ucrânia, tem sido até aqui, substituir o fornecimento energético europeu que até então era provido pela Rússia. O caso da sabotagem que resultou na explosão do gasoduto que transportava gás natural da Rússia para a Alemanha pelo Mar Báltico (Nord Stream 1 - em 2022), é um exemplo, há muitos outros. Não digo com isso que todo interesse dos EUA com a guerra da Ucrânia e Rússia se resuma a isto (Já escrevi aqui a esse respeito).

Há muitas análises que discutem as dificuldades e desafios da produção de petróleo dos EUA — Veja as de Stanislav Krapivnik —, apesar de ser o maior produtor do mundo (Texas, Costa do Golfo, Alaska), trata-se de um petróleo com baixo teor de enxofre (light sweet), só que suas refinarias são projetadas para processar petróleo pesado e com alto teor de enxofre (heavy sour), além disso, a infraestrutura de oleodutos para distribuir internamente o petróleo doméstico é deficiente, o que faz da importação um negócio mais rentável. Por outro lado, o BRICS atualmente, concentra em torno de 44% do petróleo mundial. Vejamos, a Rússia é segundo maior produtor do planeta, o Irã (quarto maior produtor) acabou de encontrar uma nova e abundante reserva em Pazan, já o Brasil está prestes a potencializar sua produção no Amazonas e a Venezuela segue possuindo as maiores reservas do mundo. A China, por sua vez, vem comprando todo esse petróleo, ao mesmo tempo em que desenvolve o maior projeto mundial de energias alternativas. Portanto, não se enganem, mais que os petrodólares venezuelanos, o que os EUA estão fazendo é desafiando a China e a Rússia, grandes parceiros do chavismo. Não esqueçamos da fala de Pete Hegseth, Secretário de Defesa (agora de Guerra) em abril deste ano, ao dizer que os Estados Unidos irá "recuperar o nosso quintal".

Trump irá invadir a Venezuela ou vai manter uma reedição da "diplomacia canhoneira" visando trocar o regime Maduro? Sigo acreditando na segunda hipótese. Os custos operacionais, sociais e políticos de uma invasão serão enormes para os EUA. Se Trump tiver sucesso na troca de regime, se a nova prêmio Nobel da paz, Maria Corina Machado assumisse o governo venezuelano, o grande capital estadunidense teria acesso a outras riquezas no país, como as minas de ouro, diamante e outros minerais como lítio e coltan. O problema é que o chavismo aprendeu a lição com os sucessivos golpes liderados pelos EUA nas Américas — como foi o caso do Chile sob o governo de Salvador Allende, derrubado pelos próprios generais comandados por Augusto Pinochet — na Venezuela, o exército é chavista/bolivariano, mas não só, a sociedade venezuelana, em sua maioria, também é. Assim, uma invasão por terra na Venezuela, pode representar um Vietnã na América do Sul para os EUA. 

Há ainda, o risco de arrastar a Colômbia para o conflito, caso ocorra, não temos como saber se as organizações paramilitares como o Exército de Libertação Nacional (ELN) e grupos dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) seriam arrastados para as fronteiras com a Venezuela e de que lado lutariam, isto porque, tais grupos não são monolíticos, há grupos dissidentes com interesses diversos. Mas é bom lembrar que Gustavo Petro e Nicolás Maduro estão em consonância. 

Aguardemos. 



domingo, outubro 12, 2025

A SOCIEDADE ENVENENADA: PARA ALÉM DO METANOL.

 A escolha deste título tem relação com uma série de autores que procuram fazer um diagnóstico do seu tempo, desde a obra do francês Guy Debord "A sociedade do Espetáculo" (1967), quando este percebeu que o advento da televisão e da propaganda alterou as formas de relações sociais, que as experiências da vida haviam sido substituídas por uma profusão de imagens e representações, o "parecer ser" se tornara mais importante do que ser. 

Alguns anos depois foi a vez do sociólogo alemão, Ulrich Beck, que escrever sua "Sociedade de Risco: rumos futuros de nossa modernidade"(1986), logo após o chamado acidente nuclear de Chernobyl. Beck constatou que os perigos aos quais a sociedade estava sujeita não eram mais os das catástrofes naturais, mas sim fabricados de forma industrial, exteriorizados economicamente, individualizados no plano jurídico, legitimados no plano das ciências exatas e minimizados no plano político. 

Desde então uma série de autores recorreram ao título "Sociedade do (a)" para tecer seus diagnósticos, a ideia é que se trata de um problema que abrange todo o tecido social, uma questão que foi inserida de alguma maneira no cerne de nossa forma de existencial, mas é claro que tais análises correm o risco de um tipo de universalismo perigoso. No entanto, tratam-se de grande contribuições. Refiro-me por exemplo, a obras como a de Gilles Deleuze, "A sociedade de Controle" (1992), em que o filósofo francês se dá conta de que a "sociedade disciplinar" (de Foucault), estava sucumbindo, de modo que o poder não operava mais pela vigilância via instituições (escola, prisões), mas sim pela trilhas deixadas pelos indivíduos no mundo digital: algoritmos, máquinas computacionais e redes se tonam os principais meios de controle, os dados são utilizados para influenciar comportamentos e decisões. Por outra ótica, Manuel Castells, "A sociedade em Rede" (1996), trata do advento da internet propiciou a descentralização da comunicação. 

Mas foi o filósofo coreano, Byung-Chul Han, que mais abusou desse formato de análise, em sua "Sociedade da Transparência" (2012), o autor utilizou diversas outras categorias para expressar a sociedade contemporânea, a cada capítulo encontra-se uma, por exemplo, no capítulo 1º trata da "sociedade positiva", seguido de sociedade da exposição, sociedade da evidência, sociedade pornográfica, sociedade da aceleração, sociedade da intimidade, sociedade da informação, sociedade do desencobrimento, até culminar no capítulo final, sociedade do controle. Porém, foi com sua "Sociedade do Cansaço" (2014), que Byung-Chul Han tornou-se mais conhecido no Brasil. Uma análise em que o autor observa a passagem do sujeito da obediência (Foucault), para o sujeito do desempenho, enquanto no primeiro caso nossa subjetividade era forjada por uma autoridade externa, no segundo caso, nos forjamos de dentro para fora, via um mecanismo de autopunição ou autocobrança, pior: autoexploração.

Sem me alongar mais sobre estas referências, penso que nos falta um “diagnóstikós” (em grego: capaz de distinguir, de discernir) sobre as sequelas que vão além da subjetividade neoliberal, embora não sejam desconectadas delas, mas que se manifestam no corpo. Esse corpo neoliberal, é um corpo envenenado por diversas formas. Os grandes oligopólios possuem licença para nos envenenar. Envenenam nosso ar, nossa água e nossa alimentação. 

O recém caso do metanol nas bebidas alcóolicas e a frase do governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas — "No dia que começarem a falsificar Coca-Cola, eu vou me preocupar"— me incentivou a escrever esse "diagnóstico". Não necessariamente pela incessibilidade do político (que almeja ser presidente), ou pelo caso bizarro de falsificações generalizado de bebidas alcóolicas, mas pela naturalização da Coca-Cola como uma bebida que precisaria ser alterada de alguma forma para fazer mal ao corpo humano. A bebida "refrigerante", é em si mesma um veneno que há décadas contribui para um dos maiores desastres de saúde mundial que é a diabetes (tipo 2). 

Nossos corpos são invadidos por toda sorte de venenos diariamente, muito além do ar que respiramos (IQAR - Dióxido de Enxofre, Dióxido de Nitrogênio, Ozônio e Monóxido de Carbono), nós ingerimos alimentos legalmente envenenados. Nossa vasta agricultura, regada a pesticidas — que a bancada rural decidiu chamar de "defensivos" — também conhecidos como agrotóxicos, chegam a quase 3 mil tipos no Brasil. A indústria de ultraprocessados — dentre as quais encontram-se as gigantes Nestlé, PepsiCo, Coca-Cola e JBS — é outro exemplo de como somos envenenados em grande escala diariamente. A alimentação de ultraprocessados está associada a doenças metabólicas, cardiovasculares, certos tipos de câncer e até doenças mentais. 

Não comemos alimentos ou bebemos líquidos que não estejam contaminados por conservantes como ácido benzoico e seus sais, ácido sórbico e seus sais, nitratos e nitritos, dióxido de enxofre, ácido propiônico e seus sais, parabenos, dentre outros. Pior, algumas empresas, como na crise econômica durante a pandemia, aproveitaram para vender alguns alimentos "similares" aos originais, como a bebida láctea (a base de soro de leite - para substituir o creme de leite), o composto lácteo (para substituir o leite em pó - com menos gordura e proteínas), o óleo composto (uma mistura de óleos vegetais - vendida no lugar do azeite) e o chamado café fake (à base de café, mas que pode conter cascas e impurezas do grão).

Mas a tendência a enganar o consumidor não se restringe aos tempos pandêmicos, somos induzidos a comprar linguiça calabresa, mas acabamos levando linguiça "tipo calabresa" — uma linguiça que contém misturas de outras carnes e até proteína de soja — os presuntos, queijos que compramos de empresas como Sadia, Perdigão e Seara, estão muito longe de serem o que dizem ser. Assim como a calabresa, nossa mussarela também é "tipo mussarela", o que significa que é cheia de corantes, aromatizantes, estabilizantes e aditivos. Não se trata de fraude, é prática com aval das agências reguladoras. 

Outra grande envenenadora do mundo é a indústria farmacêutica, sim, a indústria que deveria nos curar, nos envenena. Não se trata de retomar o paradigma de Paracelso (o médico suíço-alemão do séc. XVI) de que "Todas as substâncias são venenos, não existe nada que não seja veneno. Somente a dose correta diferencia o veneno do remédio." É claro que o sol é fonte de saúde, mas em excesso pode nos matar. Não se trata disso, mas sim que a indústria farmacêutica nos envenena deliberadamente inventando uma gama de "doenças" e "transtornos" sobre os quais ela detém o monopólio da cura. 

A produção do adoecimento é um fenômeno inerente ao capitalismo, ao invés de se alterar o modo de produzir, o modelo desenvolve formas de mantê-lo a todo vapor, somos a sociedade do fast-food que não cessa de trabalhar para que os 1% mais ricos possam maximizar seus lucros. Enquanto brincam em seus bancos de investimentos, eles nos envenenam e quando adoecemos, nos medicam. Um ciclo de exploração, adoecimento e morte. 

Tal ciclo vem atingindo as faixas etárias mais baixas — poupadas há pelo menos umas duas décadas atrás — nossas crianças e adolescentes entraram na esteira da linha de produção de modo acelerado. Qualquer professor do ensino básico consegue observar a multiplicação do adoecimento — TEA, TOD, TDAH, TAG — a medicalização da infância e adolescência é a solução proposta para apaziguar o modo como estamos transferindo aos nossos filhos e netos a nossa própria doença: performar incessantemente. Da mesma forma, qualquer profissional da saúde atento percebeu o aumento de transtornos no DMS-5 em relação ao DSM-4 (como o transtorno de acumulação compulsiva, o transtorno de escoriação e o transtorno disfórico pré-menstrual), além destes, há ainda outra novidade, que alguns críticos chamaram de medicalização do luto — uma orientação que permite diagnosticar indivíduos com depressão estando estes de luto a menos de dois meses.

Por último, não menos perigoso, devemos considerar o papel da indústria de cosméticos, usamos cremes que fazem mal a pele, shampoo que fazem mal ao cabelo, creme dental que prejudicam os dentes, isso parece loucura? E é loucura, mas é assim que funciona o mundo do lucro acima de todos e tudo. Portanto, não se trata de adulterações que ocorrem a revelia das regulações — embora estas também existam — se trata de uma prática imposta à sociedade pelos oligopólios e conglomerados dos mais diversificados ramos, que é regulada por organismo reguladores que foram criados e estão a serviço destas mesmas empresas. 








quinta-feira, agosto 14, 2025

TRUMP E PUTIN NO ALASKA: PAZ OU FIM DO MUNDO?

Amanhã Trump e Putin irão se encontrar no Alaska. Analistas de diversas áreas buscam (desesperadamente) dar o "furo" antecipado. O que quer Trump? O que ele espera de Putin? Pior, como Putin, depois de ser tantas vezes ameaçado e enganado, ainda espera algo de Trump? Amanhã será selado o fim definitivo do conflito na Europa, uma longa trégua, ou adentraremos de vez em um cataclisma militar-nuclear?

Comentarei rapidamente sobre os possíveis interesses de Trump, pois há correntes interpretativas contraditórias. Me inspiro aqui, a algumas reflexões debatidas por Pascal Lottaz, professor da Universidade de Waseda (Japão), especialista em estudos de neutralidade nas relações internacionais, mas baseio minha análise em uma variedade de fontes.

A primeira aposta se baseia na perspectiva que Trump seguirá a agenda do Deep State (o chamado Estado Profundo estadunidense), isto é, que a vontade dos grupos de poder que realmente definem os rumos da política externa e interna dos EUA prevalecerá. Nesta visão, o projeto é desmantelar a Rússia, balcanizá-la, para isto, uma série de golpes são desferidos, Ucrânia, Moldávia, Transnístria e mesmo o acordo de paz entre a Arménia e o Azerbaijão serviriam a tal propósito. Associado aos ataques, algumas pausas são necessárias, acordos como os de Minsk (Bielorrússia), entre 2014 e 2015, serviriam para reagrupar e surpreender a Rússia com novos ataques.

A segunda hipótese é a de que Trump não tem alternativas se não a de ceder a Putin, a Ucrânia não suportaria muito mais tempo, quanto mais o tempo passar, mais a Rússia adentrará o território Ucraniano e pacificará os territórios conquistados. Por outro lado, ainda que os líderes europeus vociferem "até o último ucraniano!", os ucranianos não estão dispostos a morrer pela ganância dos senhores da guerra. Neste caso, Trump cederia a Putin, retirando as sansões internacionais à Rússia, aceitaria a perda dos territórios ucranianos (Luhansk, Donetsk, Zaporíjia e Kherson - além da Criméia), em troca de vantagens em negócios bilaterais no Ártico e minerais raros no território russo.

A terceira e última possibilidade é aquela que defende que Trump quer de fato a paz. Esta corrente propõe que Trump realmente almeja receber um Nobel da paz. Seu discurso é de fato neste sentido, ele teria interrompido a guerra entre Israel e Irã, Paquistão e Índia, Arménia e Azerbaijão, Camboja e Tailândia. Neste caso, Trump sairia como o pacificador que teria posto fim a guerra de Biden e cumpriria uma de suas promessas de campanha.

As três interpretações possuem problemas sérios, comecemos pela terceira, a do Trump pacificador. Esta poderia ser associada a qualquer uma das duas anteriores. Se houver um acordo que resulte no fim da guerra, independente da real intensão de Trump, ele se autoproclamará como o pacificador. A questão aqui é sua participação direta no genocídio em Gaza ao lado do governo de Netanyahu. Esperemos que o comitê Norueguês do Nobel descarte tal possibilidade.

A primeira interpretação ignora um jogo de poder mais complexo, embora possamos concordar com a existência de um Deep State nos EUA, ele não é um bloco homogêneo, há disputas profundas entre os grandes grupos de poder (as famílias bilionárias da costa leste, o complexo militar-industrial), assim como a presença de novos atores no jogo (Big Techs). Os think tanks estadunidenses, disputam entre eles, oportunidades de negócios variados, alguns destes, por exemplo, se beneficiariam fortemente com o fim das sanções contra a Rússia.

Por fim, a segunda interpretação, de que Trump estaria encurralado e jogaria um jogo em que buscaria o maior benefício para os EUA para compensar os bilhões de dólares derramados na OTAN e Ucrânia, por isso cederia às exigências de Putin, também carece de alguns elementos realistas. Por exemplo, como ele faria isso sem parecer ter perdido o jogo para Putin?

Sem contar que as três interpretações não consideram os outros atores, o primeiro e principal deles é o próprio Putin. Afinal por que o presidente russo concordou com o encontro? Sabemos que ele recebeu recentemente o enviado de Trump, Steve Witkoff, mas muito pouco sabemos sobre o que foi conversado. Putin, por sua vez, já declarou abertamente que não se pode confiar nos EUA, independente do presidente no poder, "eles nunca respeitaram os acordos". Engana-se quem acha que Putin é ingênuo e que estaria indo para uma armadilha no gelo. O que fez Putin concordar então com o encontro? Não sei, talvez demonstrar sua disposição ao diálogo ou talvez tenha recebido algo concreto da parte dos EUA.

Os outros atores, certamente são a Ucrânia (novamente ignorada nas negociações) e a potências europeias, em especial as lideranças da UE. Até aqui, ambos têm demonstrado uma disposição incondicional para desmantelar a Rússia. Se esses atores, são de fato, indispensáveis no tabuleiro bélico saberemos mais em breve. Trump pode muito bem substituir Zelensky e colocar um outro fantoche no governo, mas o que a UE ganharia com o acordo entre Putin e Trump?

Da minha parte, sigo defendendo que os EUA não cessarão suas guerras eternas, que a balcanização da Rússia é um projeto real, que empurrar a UE para assumir tal projeto, daria aos EUA condições de atacar a China. Logo, as negociações amanhã no Alaska, ainda que haja elementos concretos que atendam os interesses de Putin, o presidente Russo sabe que será momentâneo. Se esse tempo de paz, caso se concretize, permitirá aos EUA (e seus aliados-vassalos europeus) recalibrar seu poderio bélico para retomar os ataques no futuro próximo, ou, se dará a Putin condições de reforçar suas fronteiras e ampliar sua política econômica-militar com a China, não sabemos.

Jonatas Carvalho.








sexta-feira, julho 25, 2025

O REI ESTÁ NU: TARIFAS, SANSÕES E OUTROS CAMINHOS PARA A TERCEIRA GUERRA MUNDIAL.

 Um relevante trabalho dos historiadores é investigar não o que é dito, mas o que não é dito (ou escrito). O "não dito" é aquilo que não está implícito nos discursos, isto porque, o que se quer é apontar para outro lugar, assim, quando os olhares do público são conduzidos para este outro lugar pelo o que é dito, o "não dito" opera por diversas formas sobre onde se quer operar. Por exemplo, as diversas situações em que os EUA chamaram a atenção do mundo sobre algum "vazamento top secret", sobre "OVNIs", com direito à militares do Pentágono dando explicações e entrevistas, e as redes de notícias mostram em "primeira mão", imagens "obtidas", em que um suposto objeto voador não identificado aparece; é para lá que nossos olhos são conduzidos. A produção desse desvio do olhar, tem, evidentemente, um objetivo claro: reduzir, minimizar ao máximo, um tipo de escândalo que teria potencial para desgastar fortemente a imagem do governo, do presidente, das empresas...etc. 

O "não dito", está em todo lugar, nos documentos oficiais e extraoficiais, nas declarações dos governos, nos memorandos das empresas, e recentemente, claro, no "X" (Twitter). Foi assim que golpes de estado, massacres e guerras tiveram início, meio e fim. A questão para nós historiadores, não é exatamente o que é nomeado ou como se nomeou algo, mas o que essa nomeação esconde, oculta, ou tenta evitar que se mire sobre os reais interesses. 

O Sr. Trump sabe muito bem fazer esse jogo. Exatamente por isso, quando ele diz que vai taxar o Brasil porque nosso país está realizando uma "caça as bruxas", que Jair Bolsonaro é seu amigo e foi ótimo para o Brasil, certamente não devemos desconsiderar tais motivações, mas buscar compreender porque ele utilizou tal retórica e não outra. O objetivo de Trump é claro, trata-se de desviar a intenção e o foco. Bolsonaro é o OVNI, isto é, o lugar da contenda, os grupos políticos entram em cena, se digladiam contra e a favor, os jornais não param de noticiar, "novas revelações" emergem, adicionando mais "lenha na fogueira", enquanto o caos se instala, o "não dito" opera silenciosamente. 

Tem sido assim há muito e muito tempo, mas para ficar em eventos mais recentes, posso lembrar-vos de que a "Guerra Rússia X Ucrânia" (que não é exatamente um conflito entre Rússia X Ucrânia) não tem ralação com a Ucrânia, assim como o extermínio dos Palestinos impetrado por Israel, não é sobre os Palestinos (ainda que estes paguem o preço com as próprias vidas), e, certamente os ataques desferidos contra instalações nucleares iranianas não são sobre o Irã produzir bombas nucleares. 

Que raios quer então Trump com seu "tarifaço"? A resposta (especulações) a esta questão tem sido respondida desde o primeiro anúncio de tarifas à China, até agora, no entanto, nenhuma resposta encerrou suficientemente às intenções "por trás das tarifas". Manipulação da bolsa de valores? A vingança das big techs? As articulações dos BRICS?  Terras raras? 

Uma avaliação mais ampla, consideraria vários cenários. A crise da economia neoliberal ocidental escancara sua moralidade torpe e cruel. O ocidente sempre se comportou desta forma, mas agora existem meios de comunicação fora de ocidente que conseguem demonstrar sua vileza: o rei está nu. O livre comércio e a sociedade baseada em regras, uma ideologia (o dito) que esconde a verdadeira fonte da riqueza do Ocidente Coletivo: colonização e a espoliação (o não dito). Não foi com base em trocas comerciais que as nações europeias construíram seus palácios, templos e museus. Foi com navios de guerra.  

A ideia da autodeterminação dos povos, que deu origem à conferência de Bandung (Indonésia - 1955), finalmente começa se concretizar — não sem lutas e mortes — Ásia e África se tornam cada vez menos dependente da Europa e dos EUA, os BRICS (atualmente formado por onze países), são a consolidação deste projeto cujas bases são: China, Rússia, Índia, África do Sul e o Brasil.  

O que fará o Ocidente para frear os avanços e a autonomia do Sul Global? Uma Terceira Guerra Mundial. Será? Vejamos o seguinte, as chamadas guerras longas, impetradas pelo Ocidente, estão em curso há décadas, porém a estratégia mudou com a ascensão do BRICS. A Europa se prepara para um guerra direta contra o Rússia por volta de 2030 — não sou eu que afirmo isso, alguns analistas de geopolítica têm discutido este tema — o conflito contra a Ucrânia, serve assim, para desgastar os Russos, conhecer suas táticas para no futuro a OTAN entrar diretamente na guerra. A "saída" (ou o distanciamento) dos  EUA do conflito, obrigando a UE a ampliar para 5% os recursos de seus PIBs em engenharia bélica — que por sinal será comprada de empresas estadunidense — é a preparação para o front oriental. Esta estratégia irá impulsionar a indústria armamentista estadunidense e dar-lhe condições de se preparar contra a China — o front asiático. 

 Criador: halalstock  Crédito: AI-generated image created by halalsto

Alguns movimentos civis no Indo-Pacífico, já estão atuando para evitar o pior, como por exemplo, a Pacific Peace Network, que criou um grande manifesto pedindo aos países para declararem neutralidade em meio as hostilidades e uma possível guerra entre os EUA e a China. Dentre os itens do manifesto está a recusa em ceder "seus territórios ou águas soberanas sejam usados em tal guerra, incluindo a coleta e retransmissão de inteligência militar, vendas de armas e hospedagem de tropas e instalações de combate".  

As guerras no Oeste da Ásia (ainda conhecido como oriente médio), cujo "proxy" principal — guerra por procuração —  é Israel, visam enfraquecer as relações que Rússia e China vinham construindo na região, especialmente com o Irã. O projeto anunciado por Netanyahu da criação de um "Novo Oriente Médio", o chamado "Acordo de Abraão", e que conta com o apoio de países como os Emirados Árabes Unidos e Bahrein, requer a eliminação das oposições, a dominação do Líbano e da Síria, assim como os ataques ao Irã teriam por objetivo avançar o acordo. Enfraquecer ou mesmo impedir que Rússia e China utilize se beneficie não apenas com as rotas comerciais, mas principalmente que ampliem sua influência  no Oeste de Ásia é fundamental  para o Ocidente Coletivo.

Juntam-se a estes conflitos outras zonas de tensão, das quais podemos destacar os problemas no sul do Cáucaso, em especial as relações belicosas entre a Armênia e o Azerbaijão, e as instabilidades na Geórgia. Os recentes confrontos entre a Índia e Paquistão em razão da disputa pela Caxemira. E o mais recente conflito, desta vez no sudeste da Ásia, entre a Tailândia e o Camboja em razão do Triângulo da Esmeralda. Tanto os EUA, quanto a China apelaram pela interrupção do conflito, enquanto o primeiro é aliado da Tailândia, o segundo é do Camboja.  

Restam-nos as Áfricas e  as Américas. Comecemos pelas Áfricas — assim mesmo no plural — o domínio ocidental cada vez mais enfraquecido, mais ameaçado, irá, certamente, fazer de algumas regiões africanas mais suscetíveis à instabilidades e guerras. Mas as novas lideranças africanas estão fazendo renascer o Pan-africanismo, um exemplo claro é a criação da Aliança dos Estados do Sahel (AES) em 2023, que envolvem países como o Mali, Níger e Burkina Faso. Os Estados do Sahel se uniram contra a influência da França na Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). Para se ter uma ideia, "oito dos quinze Estados da Cedeao ainda usam o franco (CFA), moeda controlada pelo Banco Central Francês, que retém 50% das reservas internacionais desses países e cobra taxas de gestão" (Veja artigo de Marcelo Leal). Ocorre que os países da AES foram recebidos pela cúpula do BRICS no Rio de Janeiro, não como membros, mas como parceiros, com direito a uma linha de crédito de quinhentos milhões de dólares que irá vir do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB). Esta é uma das situações que vem deixando o Ocidente pânico, a influência da Rússia e, sobretudo, da China no continente Africano vem aumentando significativamente, os chineses tem investimentos em infraestrutura em mais de trinta e cinco países por lá (Veja mais aqui). 

Os conflitos no Sudão (região do Sahel) e na Somália, além claro, do Congo existem para que a instabilidade impeça o fortalecimento de lideranças nacionalistas capazes de romper os laços com o Ocidente Coletivo ao mesmo tempo em que dificultam o acesso da Rússia e da China nestas regiões. Por último, justificam interferências e intervenções por parte do Ocidente, "ajuda humanitária" e outras atividades que as ONGs ligadas a USAID no continente Africano.

Nas Américas, parece que a bola da vez é o Brasil, mas ele não é o único. Os países americanos sofrem interferência dos EUA há pelo menos um século. Mas foi no período da Guerra Fria que as intervenções diretas vieram, com as ditaduras civil-militares que se espelharam pela América Latina e Brasil, até a Operação Condor em 1975. Ao longo desse período os EUA encontraram outra forma de intervir nos seus vizinhos de baixo, a chamada "guerra as drogas" virou um prato cheio para que as administrações estadunidenses passassem a operar de dentro dos países americanos. 

O Brasil, contudo, virou um grande alvo dos EUA. O real motivo? Sempre será econômico. Foi assim com Vargas — que se recusou a internacionalizar a Petrobrás — , foi assim com Dilma — pelo mesmo motivo. Hoje, na medida que o Brasil busca por mais autonomia, que expande seu mercado aos países do Sul Global através do BRICS, novamente sofre duras interferências do grande capital ocidental. A mensagem aqui é: vocês não podem fazer comércio com quem bem querem, vocês precisam da nossa permissão, se tentarem, vamos arrasá-los como já fizemos no passado. O que muda são os métodos, em 1964 foi um golpe civil-militar, em 2014 foi a operação Lava Jato, hoje são tarifas e sansões. 

Só em 2023, o Brasil assinou quinze acordos bilaterais com a China, ao todo são mais de trinta e cinco acordos em vigor. Um desse acordos visam um estudo de viabilidade para criar uma ferrovia de conectaria Chancay no Peru à Ilhéus (Bahia - Nordeste brasileiro). O projeto — Ferrovia Bioceânica — um grande corredor intermodal que ampliaria as possibilidades de relações comerciais na América do Sul (Pacífico-sul e Atlântico-sul) com o restante do Sul Global, escapando assim, das rotas controladas pelo Ocidente Coletivo.

Quando Trump ataca o Brasil, na prática, ele quer é atacar a China. Os EUA farão tudo o que estiver ao seu alcance para minar o projeto expansionista chinês. A Iniciativa Cinturão e Rota — Nova Rota da Seda — conecta mais de 150 países, destes, 20 são latino-americanos. O Panamá foi obrigado por Trump a renunciar a Inciativa. A Colômbia de Gustavo Petro, aderiu em maio a Iniciativa Cinturão e Rota. Por lá a vida de Petro não está nada fácil, com direito a ataques por parte de Marco Rubio. O encontro pela democracia em Santiago (Chile) nesta semana é uma tentativa das lideranças  progressistas (na ausência de uma nomenclatura melhor) de deter os avanços neoconservadores (neocons).  

Podemos chamar todos esses movimentos tensionados ou já em conflito aberto que teatro de preparação para uma grande guerra. Se como historiador sou tomado pela ética profissional a não fazer previsões, também como historiador sou levado, pela observação da própria história da humanidade, a reconhecer que existe uma grande chance de experimentarmos um novo conflito mundial, não com as mesmas características dos dois últimos, mas com potencial destrutivo ainda maior. Espero estar errado, torço para que sim. Por que então escrever tudo isso? Para me somar a outros tantos que visualizam tal possibilidade e poder compartilhar com aqueles que não conseguem perceber tais movimentos. 

Talvez ocorra na próxima década, não sei, mas o que está em curso hoje já é assustadoramente bizarro. 





quinta-feira, julho 24, 2025

A ECONOMIA DO GENOCÍDIO EM GAZA.

Quantos médicos e outros especialistas serão necessários para compelir o Ocidente na detenção do projeto sionista de genocídio? A médica Tanya Haj-Hassan, do Médicos Sem Fronteiras (MSF), mais recentemente, e muitos outros profissionais que estiveram em Gaza, denunciam o projeto genocida liderado por Netanyahu, mas que vai muito além dele. A coordenadora do MSF, Dra. Amande Bazerolle, denunciou que o cerco a ajuda humanitária tem transformado Gaza numa grande vala comum de corpos palestinos. 

Centenas de crianças com menos de 5 anos de idade morrem de fome a cada semana, mesmo com a presença de caminhões e caminhões de comida a poucos quilômetros dali. As organizações de ajuda humanitárias foram trocadas por apenas uma: a Fundação Humanitária de Gaza (GHF), liderada por ex agentes da Cia e mercenários estadunidenses. A GHF vem apoiando o pleno de extermínio, seus agentes atiram sem pestanejar nos palestinos famintos e desesperados que se acumulam em torno do pouco alimento que é distribuído. 

A relatora especial da ONU, Francesca Albanese vem afirmando o que já defendíamos a muito tempo, o bloqueio econômico é o único jeito de deter os sionistas que controlam o estado de Israel. Isso não significa que se deve abandonar outras iniciativas. Diversas organizações lideradas por judeus no mundo estão crescendo, como Judeus pela Paz e pela Justiça (JPJ), Israelenses pela Pressão Internacional (IPI) e Vozes Judaicas pela Libertação. Ações como a encabeçada pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça em Haia — que o Brasil só aderiu agora, apesar de Lula vir contribuindo com a denúncia de genocídio em Gaza há muito tempo — já contam com apoio de mais de 70 países. Apesar da dura repressão nos países ocidentais — nas democracias liberais — as manifestações populares contra o genocídio em Gaza seguem crescendo no mundo.

Voltando ao relatório de Francesca Albanese, não é difícil compreender porque o genocídio não é interrompido: ele é altamente lucrativo. São centenas de empresas, de várias partes do mundo e dos mais diversos ramos de negócios. Muito além do setor bélico e industrial, há negócios de tecnologia como biometria, robótica, bancos de dados, entre outros. Aqui enquadram-se empresas como Microsoft, IBM, Google, Amazon... Há ainda aquelas que fornecem, por exemplo, equipamentos pesados de construção e implementos agrícolas, como as enormes retroescavadeiras utilizadas para derrubar as casas dos palestinos e outras máquinas, caminhões que possibilitarão a construção de outro assentamento ilegal — Neste caso temos empresas como HD Hyundai da Coreia do Sul e o Volvo Group da Suécia, dentre muitas outras. Não menos importante, as plataformas de aluguel Booking e Airbnb que contribuem com anúncios de venda e aluguel de casas, condomínios, hotéis construídos em áreas invadidas por Israel. (O relatório chama-se "Da economia de ocupação à economia de genocídio" e pode ser encontrado aqui

Por fim, o petróleo brasileiro, independente de ter sido vendido pela Petrobrás, ou alguma estrangeira que explora os nossos poços de petróleo, alimenta a máquina de extermínio em Israel, do mesmo modo que o carvão colombiano e da Bright Dairy & Food chinesa. Cito esses exemplos, porque trata-se de três países cujos líderes veem criticando duramente Israel, mas o empresariado destes mesmos países seguem contribuindo com o genocídio. É preciso parar o sionismo e só com um bloqueio total, político-econômico isso será possível. Enquanto isso não ocorrer os sionistas continuaram a limpeza étnica. Ontem, por sinal, o congresso israelense — Knesset — aprovou a "soberania israelense" sobre a Cisjordânia ocupada, um novo genocídio em andamento. 

quinta-feira, julho 17, 2025

Poema para João Vicente.

João Vicente, este é o primeiro texto que escrevo para você, o primeiro de muitos que espero escrever. Passar uma semana inteira ao seu lado é simplesmente restaurador. Escolhi escrever este primeiro texto em forma de poesia, porque não consigo ver outra coisa em você: tu és poesia em substância e forma.

Você é a alegria pura, integral,

raiz da própria felicidade. 

Seu sorriso é um raio que neutraliza qualquer dissabor, 

a ternura do seu olhar nos paralisa em êxtase.

A energia que flui por teu corpo pequenino, 

cansa o adulto angustiado e faz rejuvenescer a criança em nós.

Na tua companhia, o dia flui como as águas de um rio intocado. 

Você é ser que é, ser no mundo, 

que impacta nosso mundo e nos transforma. 

Expressão maior de uma manhã de sol, dos cantos dos pássaros, 

das popas (borboletas) coloridas, do bater veloz das asas dos colibris. 

Tu és presente, potência de existir, 

que nos impele um futuro marcado de nostalgia. 

Diante de ti a vida se expande em esplendor e vigor.

Ao teu lado o tempo desponta em riso e graça. 

A minha velhice se esvai,

emerge um outro ser, 

onde o sol se põe por entre as montanhas verdes, 

onde a noite  enluarada silencia toda a apreensão. 

João Vicente (Vincentius, vincere), aquele que venceu, 

que mobilizou o imobilizado, 

que arrancou a razão, fria, calculista e 

nos inundou com a força vital do amor. 

Inundado, escrevo esses versos.

Desmobilizado, me rendo ao teu encanto. 


Vovô Jonão. 


 

sexta-feira, julho 04, 2025

O "COMBO DA MAMATA": MUITO ALÉM DO CONGRESSO.

Não é segredo: as hashtags #congressodamamata e #congressoinimigodopovo viralizaram. As informações que circulam por meio delas são que 70% dos congressistas são contrários ao fim da escala 6x1, 53% são contra a redução dos supersalários no Judiciário e 46% opõem-se à taxação de super-ricos. Na semana passada, o Congresso já havia vetado projetos do governo no setor elétrico, cujo resultado direto será o aumento da conta de luz (bandeira vermelha ininterrupta). Para completar, após vetar o decreto do governo sobre o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), o Congresso votou pelo aumento do número de deputados, de 513 para 531, o que representará mais R$ 100 milhões por ano no orçamento da União. Nada mais antipovo que isso!

O que falta as hashtags é alcançar a raiz do problema: não há como o Congresso ser pró-povo, uma vez que o povo simplesmente não está representado lá. Em sua maioria quase absoluta, deputados e senadores são oriundos dos grandes setores econômicos. Mais da metade dos "nobres" congressistas está vinculada ao setor agropecuário, o famoso "agro" — estamos falando de 300 (dos 513) deputados que fazem parte da Frente Parlamentar Ruralista. Outros congressistas estão ligados a grandes setores da indústria, do comércio e de serviços. Menos de 15% dos deputados e deputadas vieram das classes populares. Além disso, mais de 240 deputados federais são milionários. Considerando que o número de milionários no Brasil não chega a 1% da população, como isso é possível?

Achou estranho? Pois é. Os milionários, mesmo sendo menos de 1% da população, formam quase metade do Congresso Nacional. Como isso se dá? Simples: no "sistema democrático" brasileiro (nas democracias liberais), é eleito quem pode investir pesado em campanha. Assim, fica fácil: quem não tem dinheiro não é eleito, somente poucas cadeiras (entre 10% e 15%) são preenchidas por representantes eleitos com base em pautas populares. Para se ter uma ideia, até 2015, apenas 10 empresas brasileiras eram responsáveis por financiar as campanhas de mais de 70% dos deputados. Estamos falando aqui de gigantes como: JBS (bancada do bife), Bradesco e Itaú (bancada dos bancos), OAS, Andrade Gutierrez, Odebrecht, UTC e Queiroz Galvão (bancada do concreto) e Ambev (bancada das bebidas). Isso significava que, de cada 10 deputados, 7 eram financiados por elas. Com a proibição do financiamento empresarial, o que o Congresso fez? Aumentou o fundo partidário. Hoje, são quase R$ 5 bilhões de dinheiro público. Assim, os empresários transferiram para o povo o custo de suas próprias campanhas.

Ainda não entendeu? A questão central não é que os políticos são individualmente corruptos e "trocam" apoio por financiamento — esses representam apenas uma parcela. O problema é que o Congresso pertence aos grandes grupos empresariais. Trata-se, portanto, de legislar em causa própria. É isso.

Aliás, essa história sempre foi assim, desde a Primeira República. A elite cafeeira paulista, por exemplo, conseguiu aprovar no Congresso uma lei que impedia a União de ficar com a arrecadação das exportações, que passou a ser encaminhada para os estados. O Convênio de Taubaté, aprovado em 1906, determinava que o governo compraria a produção excedente de café para manter os preços altos. Na prática, os próprios barões do café, que eram deputados, senadores e ministros, incluindo o presidente da república, Rodrigues Alves (de família de grandes proprietários de terra em negócios de café e borracha), usaram o Estado para garantir seus lucros. Eles simplesmente se apropriaram da máquina pública para beneficiar seus negócios. (Essa história é bem mais longa e bizarra, mas vamos parar por aqui).

Jamais houve um momento em nossa história em que as oligarquias brasileiras estiveram fora do poder central ou regional. Não é de hoje que essas famílias poderosas espalham seus descendentes pelos mais diversos ramos do poder. Seus filhos e netos estão hoje disseminados em cargos de confiança nos tribunais de contas e procuradorias; eles comandam sindicatos patronais, entidades como a Febraban, e as FIESPs e FIRJANs Brasil afora. Eles são sócios, literalmente, de grandes grupos de planos de saúde, educação e segurança. Controlam o setor imobiliário dos grandes centros, desabrigando comunidades inteiras — como a Favela do Moinho, em São Paulo — para ampliar seus empreendimentos. Então, meus (poucos) leitores, percebam: nosso problema não se resume ao Congresso, mas a toda a estrutura do Estado brasileiro, que é cooptada pelos grandes grupos financeiro-empresariais.

Outra questão importante, já que a grande imprensa se alvoroçou para contra-atacar em defesa (própria) das grandes fortunas, é que essa pauta precisa alcançar o pequeno empresariado. Alienado pela ideologia liberal do mérito, o pequeno empresário se ressente de pagar impostos demais (e paga mesmo), achando que a culpa é "dos políticos". Mal sabe ele que o grande empresariado, fonte de "inspiração e sucesso", praticamente não paga impostos sobre seus maiores ganhos, pois os recebe como lucros e dividendos isentos. Pior: ao dominarem o Congresso, esses senhores conseguem ir além, beneficiando-se de isenções e desonerações fiscais, só o governo do Tarcísio de Freitas (SP), projeta oferecer - renúncia de receitas tributárias de R$ 85,6 bilhões para 2026. Esse "combo de mamatas" nos Estados e na União, podem chegar na casa dos 800 bilhões ao ano. Toda essa grana é embolsada pelos ricos. O "bolsa milionária".

Mas isso não seria ilegal, imoral, antirrepublicano? Onde está a justiça? Bem, a grande maioria dos juízes, desembargadores e ministros do Supremo reside, metaforicamente, na mesma casa: eles são parte dessa mesma elite. Compõem uma "nobre casta" nacional, formada majoritariamente por pessoas brancas, que vivem de supersalários — a remuneração líquida de desembargadores em São Paulo, por exemplo, chegou à média de R$ 146.470 por mês em 2023 —, que mal dão para comprar ternos italianos e bolsas de 10 mil dólares.


O que restou? Restamos nós: o "povo sem medo".

Nós, os trabalhadores sem terra e sem teto.

Nós, as mulheres solo e nosses guerreires LGBTQIAPN+.

Nós, os movimentos periféricos, os quilombos e os ribeirinhos.

Nós, os povos originários.


Eles são apenas uma minoria poderosa. Eles têm o monopólio legítimo (e ilegítimo) da violência. Mas nós, nós temos uns aos outros. E juntos podemos calá-los e expulsá-los de cima do nosso dinheiro, do nosso Congresso e da nossa República.



Jonatas Carvalho - Historiador - Doutor em Sociologia e Direito.



terça-feira, junho 17, 2025

O IRÃ DA VEZ ou A VEZ DO IRÃ.

Todo historiador que preza seu ofício sabe que qualquer elaboração sobre o conflito entre sionistas e persas, em pleno fogo cruzado, configuraria uma análise pouco precisa. Basta pensar nas avaliações dos "analistas" na ocasião da eclosão do conflito entre Rússia e Ucrânia. Quanta bobagem foi proferida.

Isso não quer dizer que seja impossível fazer uma leitura minimamente razoável da situação. Mas sempre estaremos no campo das possibilidades e projeções, em especial quando se trata de futuros desdobramentos. Mesmo aqueles que avaliam as "causas", neste momento, correm o risco de se equivocar.

Para começo de conversa, toda análise que pauta o conflito a partir do "acordo" interrompido entre Irã e EUA — isto é, que o ataque sionista tinha como único objetivo "interromper" ou "forçar" os persas a assinarem o acordo — pode estar ignorando um cenário mais amplo. A história pode ser muito mais complexa e tem rastros mais longínquos.

Se tivermos que demarcar uma temporalidade, eu diria que poderíamos iniciar com a invasão de Gaza, em 2023, onde, certamente, um dos objetivos era enfraquecer o Hamas. Mas havia outras razões, entre elas a descoberta de reservatórios de petróleo e gás na Área C da Cisjordânia e na costa mediterrânea de Gaza, com estimativas iniciais de 122 trilhões de metros cúbicos de gás e 1,7 bilhão de barris de petróleo recuperável.


Em um cenário projetado, os sionistas invadiriam o Líbano em 2024 para enfraquecer o Hezbollah e, em seguida, fariam um ataque ao Irã, cuja resposta seria apenas de dissuasão. No final de 2024, com apoio da CIA, o governo de Assad, aliado do Irã, seria deposto na Síria. Finalmente, enquanto davam seguimento à limpeza étnica em Gaza, em novembro de 2024, seria a vez de os sionistas atacarem o Iêmen, buscando desmobilizar os Houthis.

Então, se olharmos esses movimentos, podemos pensá-los como uma preparação de médio prazo: primeiro, era preciso enfraquecer os grupos de apoio ao Irã para, depois, atacar o coração da resistência ao projeto sionista. Fica então a questão: qual o momento certo para atacar o Irã? Provavelmente em meio aos impasses nas negociações com os EUA de Trump. Era preciso retomar as negociações, impor um acordo inegociável, para que Israel pudesse alegar um "ataque preventivo" e cometer mais meia dúzia de crimes de guerra.

Uma possibilidade mais abrangente, que deve ser seriamente considerada para explicar o ataque, é a seguinte: o Irã tornou-se membro dos BRICS em agosto de 2023. Em maio deste ano, um trem de carga partiu da cidade chinesa de Xian e chegou ao porto seco de Aprin, perto de Teerã; a Iniciativa Cinturão e Rota reduziu de 30 para 15 dias o comércio entre Irã e China. Enfraquecer o Irã e substituir o governo dos Aiatolás pode, portanto, significar a interrupção do projeto chinês de ligar o leste da Ásia à Europa passando pelo Irã e pela Turquia. Sempre vale lembrar que o Irã possui a terceira maior produção de petróleo e gás do mundo e, em 2024, a National Iranian Oil Co. (NIOC) descobriu uma reserva de petróleo na província do Khuzestão avaliada em US$ 7,3 bilhões.

É preciso dizer que o Irã, embora seja majoritariamente persa (pouco mais da metade da população), sua composição social é multiétnica e multicultural: azeris (turcos), curdos, lurs, árabes, balúchis, armênios, assírios, georgianos e judeus. A comunidade judaica no Irã, aliás, é uma das mais antigas do mundo e uma das maiores no Oeste da Ásia, depois de Israel. Em Teerã, há pelo menos 12 sinagogas em atividade, e um pouco mais de 50 em todo o país.

Essa convivência pacífica histórica ajuda a compreender que o problema do Irã não é contra os judeus, mas com o projeto sionista. Ao olharmos os arranjos fronteiriços, pode-se verificar que os Estados-nação no entorno de Israel foram severamente enfraquecidos ao longo das últimas décadas: Líbano, Síria e Iraque. A Jordânia, passiva e silenciada desde que perdeu a Cisjordânia para Israel em 1967, possui uma monarquia constitucional de fachada, pois seu rei, Abdullah II, nomeia e troca o primeiro-ministro quando acha necessário.

Se esta conflagração iniciada pelos sionistas (com aval do império) fará do Irã  a bola da vez, ou, se a reação iraniana configurará no Irã da vez, ainda não sabemos. O que sabemos e podemos afirmar com certeza é que não há projeto mais imoral no mundo atual que o projeto sionista. 


sexta-feira, maio 02, 2025

MUITO MAIS QUE UMA GUERRA TARIFÁRIA OU UMA NOVA PAZ ARMADA.

Em seu livro de memórias O Mundo de Ontem (1934–42), Stefan Zweig escreveu o seguinte: “Quando tento encontrar uma fórmula simples para o período no qual cresci, antes da Primeira Guerra Mundial, espero traduzir sua plenitude chamando-o de Época de Ouro da Segurança”. A obra de Zweig, dentre muitas outras resgatadas por David Fromkin em O Último Verão Europeu, serviu ao historiador para demonstrar que, pouco antes de a Primeira Guerra eclodir e se desenvolver em um dos mais traumáticos eventos mundiais, o mundo vivia em paz — pelo menos, essa seria a sensação capturada entre os europeus. Até o início do verão de 1914, prevalecia, entre as lideranças políticas e econômicas, a crença na impossibilidade de um conflito armado entre as grandes potências. Os movimentos militares, entretanto, davam outros indícios. Justamente essa junção entre a chamada corrida armamentista e o ambiente da “época de ouro da segurança” resultou no que ficou conhecido como a “paz armada”.

O termo “paz armada”, notabilizado a partir da obra Paz e Guerra entre as Nações (1962), do historiador e diplomata francês Raymond Aron, conviveu com outro: o de “paz precária”, da historiadora Barbara Tuchman, em The Guns of August (1962). Em ambos os casos, a ideia era a de que a paz estava garantida pela elevação dos gastos em armamentos entre as potências europeias.

A “época de ouro da segurança” de Zweig, compartilhada por outras personagens da História, no entanto, não correspondia à realidade mundial; poderíamos dizer que se tratava de um “sentimento europeu”. O mundo, entre o final do século XIX e o início da Primeira Guerra, poderia ser muitas coisas, menos um lugar seguro. Se é verdade que, desde a Guerra Franco-Prussiana (1871), não havia ocorrido outro conflito armado entre duas ou mais potências europeias, isso não significa que os conflitos armados tivessem cessado no mundo — pelo contrário. As guerras coloniais seguiam a todo vapor: os britânicos deram início à Guerra Anglo-Zulu (África do Sul) em 1879 e, apesar de derrotas humilhantes como a da Batalha de Isandlwana, os colonizadores anglos venceram. Entre 1881 e 1899, a Guerra Mahdista, no Sudão, contra as tropas anglo-egípcias. A Itália, em 1895, invadiu a Etiópia na tentativa de tomar o território, no que ficou conhecido como Primeira Guerra Ítalo-Etíope (ou Guerra da Abissínia, para os italianos); o conflito terminou com a derrota dos invasores. No lado americano do Atlântico, em 1898, a Espanha travou uma guerra com os EUA, perdendo suas colônias (Cuba, Porto Rico e Filipinas) para os estadunidenses. Na virada do século (1899–1902), deu-se a Guerra dos Bôeres, na qual os britânicos dominaram os colonos holandeses (bôeres) na África do Sul, com direito até à utilização de campos de concentração contra civis bôeres.

Nas regiões da Ásia e Oceania, pelo menos três grandes conflitos merecem destaque: a Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894–1895), momento em que Taiwan foi anexada pelo Japão; a Revolta dos Boxers (1899–1901), uma reação anticolonial chinesa, massacrada pela chamada Aliança das Oito Nações (Áustria-Hungria, Império Britânico, França, Alemanha, Itália, Japão, Rússia e Estados Unidos); e a Guerra Russo-Japonesa (1904–1905), confronto iniciado pelo controle da Manchúria e da Coreia, com vitória japonesa.

O período foi marcado por diversas reações anticoloniais. Destaco aqui: a Guerra de Aceh (1873–1904), uma longa resistência do Sultanato de Aceh (Indonésia) contra os holandeses; a rebelião Maji Maji (1905–1907), em que o povo da então África Oriental Alemã (atual Tanzânia), sofrendo com o trabalho forçado, se rebelou — os alemães massacraram os “revoltosos”; estima-se que mais de cem mil foram assassinados. Por fim, a Guerra do Rif (ou Segunda Guerra Marroquina), iniciada em 1909, entre os espanhóis e os berberes (tribos rifenhas), que só terminaria com a derrota dos berberes, devido ao apoio dos franceses aos espanhóis em 1926.

Não menos importante, na América do Sul, dois conflitos merecem ser lembrados aqui. O primeiro é a Guerra do Pacífico (1879–1884), envolvendo a disputa por minerais no Deserto do Atacama, terminando com o Chile vencendo a aliança boliviana-peruana; o outro foi a Revolução Mexicana (1910–1920), liderada por Emiliano Zapata e Francisco Villa contra a ditadura de Porfírio Díaz.

Como se pode verificar, na longa introdução acima, a chamada “época de ouro da segurança”, esse sentimento compartilhado entre os europeus após a Guerra Franco-Prussiana, reflete a percepção que estes tinham de si mesmos: sua superioridade civilizatória. Os conflitos enumerados acima eram, nesse sentido, vistos como parte do “fardo do homem branco” (Rudyard Kipling – 1899). Todos esses conflitos, impetrados pelos ocidentais fora do terreno europeu, não produziam qualquer sentimento de insegurança. A Europa se extasiava com o liberalismo. David Fromkin cita a admiração de John Maynard Keynes por esse período sem controles comerciais e alfândegas: “você podia entrar com o que quisesse na Grã-Bretanha ou mandar qualquer coisa para fora.” O historiador A. J. P. Taylor (História da Inglaterra – 1914–1945) escreveu que “até 1914, um inglês sensível e obediente à lei podia passar pela vida sem notar a existência do Estado.” Ainda assim, as guerras e massacres por parte das potências ocidentais nunca deixaram de ocorrer.

Algo semelhante foi construído no pós-Guerra Fria (1991) — por sinal, outro título ilusório, atribuído a George Orwell, mas, na verdade, cunhado pelo multimilionário e conselheiro presidencial estadunidense Bernard Baruch —: uma espécie de “sentimento” de paz estava sendo produzido desde a criação da La Colombe, a pomba branca que Pablo Picasso pintou sob encomenda da então recém-criada ONU, na ocasião do Congresso Mundial da Paz, em Paris, em 1949. O fim do “mundo bipolar” — mais um termo que não define o mundo — tinha, em sua propaganda, o fim dos conflitos, ou o fim da história, como sugeriu Fukuyama em 1992. O novo mundo monopolar capitalista, baseado em regras, resultaria na paz duradoura. Mais uma vez, tal discurso não correspondia à realidade.

Só na década de 1990, tivemos pelo menos três grandes conflitos armados: a Guerra do Golfo (1990–1991), em que os EUA expulsam o Iraque do Kuwait; as Guerras da Iugoslávia (1991–2001) — incluindo Bósnia (1992–1995) e Kosovo (1998–1999); e a Primeira Guerra da Chechênia (1994–1996), terminando com a independência da Chechênia diante da Rússia. Na virada para o século XXI, aqueles que imaginaram que, depois de tantos conflitos, os homens finalmente atingiriam a sensatez tiveram uma grande decepção. O onze de setembro inaugurou a chamada “Guerra ao Terror”: já em 2001 teve início a invasão dos EUA ao Afeganistão, uma guerra de vinte anos; em 2003, foi a vez dos estadunidenses invadir o Iraque, e sob a falsa alegação de armas de destruição em massa, massacraram os iraquianos. Na Segunda Guerra da Chechênia (1999–2009), a Rússia, já sob a liderança de Putin, retomou a Chechênia; e, não menos drástica, em 2006, Israel invadiu o Líbano — Robert Fisk, autor de Pity the Nation: Lebanon at War (1990), cobriu por décadas diversos momentos de destruição do Líbano, incluindo uma invasão anterior de Israel, em 1982, como o massacre de Sabra e Shatila.

É certo que, para quem acompanha as emissoras ocidentais, aparentemente, no mundo hoje temos apenas dois problemas: a guerra Rússia x Ucrânia e a guerra tarifária entre EUA e China. O Ocidente, por sua vez, ofusca brutalmente a limpeza étnica do povo palestino. Vimos de relance, recentemente, a derrubada de Bashar al-Assad, mas não sabemos quase nada da guerra civil na Síria, que ocorre desde 2011. Também vem ocorrendo uma guerra civil no Iêmen, iniciada em 2014, agravada pelo apoio da resistência dos Houthis à causa palestina, atacando navios em direção a Israel no Mar Vermelho e no Golfo de Áden.

No continente africano, tivemos uma guerra civil na Etiópia (2020–2022), com mais de 85 mil mortes e centenas de milhares de deslocados — um conflito mal resolvido que pode reacender a qualquer momento. Na região do Sahel, área de influência da França — que inclui dez países: Mauritânia, Senegal, Mali, Burkina Faso, Níger, Nigéria, Chade, Sudão, Eritreia e Etiópia —, mais de 4 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas. Na Somália, a guerra civil (em curso desde 2006) intensificou-se em 2022. E, certamente, um dos mais graves conflitos armados no continente africano: a guerra entre a República Democrática do Congo e o movimento 23 de Março (M23), com forças ruandesas aliadas avançando para Goma e Bukavu. Esse conflito sofre forte interferência das grandes empresas ocidentais, ávidas pelo controle das minas de cobre e cobalto do Congo — sim, a transição energética para carros elétricos está sendo realizada às custas da morte por contaminação de milhares de mulheres e crianças congolesas.

Para além de uma guerra tarifária, enquanto escrevo este ensaio, diversos movimentos são executados em várias partes do mundo na direção de mais e mais belicismo. Os gastos militares em 2024 chegaram perto dos 2,5 trilhões. A União Europeia propôs um plano (ReArm Europe) para ampliar seus “investimentos em defesa”, na ordem de 800 bilhões de euros. A China também ampliou seus gastos em defesa em mais de 7%. Além disso, outros movimentos deliberados em direção a conflitos diretos estão em plena atividade. É o caso da tensão entre a Moldávia e a Transnístria, como parte da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Outra importante zona de tensão (e não é de hoje), a Caxemira, tem levado tropas de duas potências nucleares (Índia e Paquistão) para as fronteiras, à beira de um conflito que pode ser devastador.

Trump discursou recentemente em uma formatura na Universidade do Alabama, afirmando: “Vocês são a primeira turma de formandos da era de ouro da América.” Nunca houve uma época de ouro ou de segurança no mundo. O discurso idílico, evidente, produz seus efeitos, mas, quando se olha com mais atenção, o que vemos são os senhores da guerra, enquanto devoram carnes raras e vinhos caríssimos — que a maioria de nós jamais chegará perto —, com seus talheres de ouro, decidem quais outras partes do mundo poderão fazer emergir um novo conflito armado. O mundo não é a La Colombe, é Guernica. 

Jonatas Carvalho 

Historiador e Doutor em Sociologia e Direito


domingo, abril 20, 2025

A PESTE DE FREUD NA ERA DE OURO DE TRUMP

Entre agosto e setembro de 1909, Sigmund Freud, na companhia de Carl Jung e Sandor Ferenczi, a convite de Granville Stanley Hall, proferiu um ciclo de conferências que ficaram conhecidas como "Cinco Lições da Psicanálise" na Clark University em Worcester, Massachusetts. 

A viagem do Dr. Freud aos EUA já foi foco de muitas pesquisas e interpretações, incluindo o livro (Freud, Jung and Hall the king-marker: the expedition to America, 1909), de Saul Rosenzweig, professor emérito de psicologia e psiquiatria da Universidade de Washington em St. Louis. Ernst Jones, biógrafo de Freud, também menciou a viagem. 

Mas teria sido Lacan, em 1955, a revelar um diálogo entre Freud e Jung, ainda dentro do navio, que ao avistar a estátua da liberdade, Freud teria dito: "Não sabem que estamos lhes trazendo a peste!". Lacan, estava em Viena, a interpretação dominante sobre a frase de mestre dizia que se tratava do caráter subversivo da psicanálise. A psicanálise seria assim uma “peste”, por, ao ir de encontro às convenções morais de então, representaria um perigo. Mas Lacan, tinha concluído que a psicanálise “não foi uma revolução para a América na realidade, a América é que tinha devorado sua doutrina" (CHINALLI,2010).  

Fonte: The New York Times. 
É fato, que mesmo tendo Freud se animado com o convite de Stanley Hall, em sua autobiografia em 1925, escreveu que havia sido a primeira vez que sentira que a psicanálise ganhara algum reconhecimento. Ainda assim, Freud, não só nunca retornou aos EUA, como observava com desconfiança o que se fazia com ela por lá. 

Não é difícil compreender que na terra do “time is money” , do “fast food”  e do behaviorismo, a psicanálise não renderia grandes frutos, caso não passasse por uma mercantilização da prática clínica. Ainda assim, na terra do “Tio Sam”, a psicanálise está afastada dos centros universitários, com raras exceções. Por outro lado, a propaganda sobre medicamentos indicados para os mais diversos “transtornos mentais” compete os espaços (outdoors) públicos ao lado dos hambúrgueres. 

Meu ponto, porém, em relação a “peste” de Freud, é outro. Uma vez que a grande questão da psicanálise é que esta tem em seu fundamento que o homem não é senhor pleno de seus pensamentos e ações. Como escreveu Franklin L Baumer (1977), “o ego (razão), não dirige a vontade e todo o trabalho do espírito.” Neste sentido, a psicanálise é uma “peste” nos EUA porque ela contrasta com o "American Way of Life", a mensagem da psicanálise é que o “Sonho Americano” é impossível, pois não há como satisfazer plenamente o desejo. 

O “tarifaço” de Donald Trump procura de certa forma exatamente isto, restituir o desejo ao máximo. A queda brutal do poder de compra da classe média estadunidense foi acompanhada, evidentemente, pelo crescimento da pobreza. Pior que isto, ao “mande Brazil”, um abismo sócio-econômico vem consumindo o solo das classes, como se fosse um buraco negro. As famílias oligárquicas da Costa Leste estão ainda mais ricas, um pequeno império emergente se destaca (das BigTechs), enquanto o restante, vê a precarização crescer feito uma bola de neve que desce a montanha. 

Ao orientar-se pela perspectiva da "America First", Trump, imagina resgatar o “Sonho Americano”, retomar os altos índices de consumo, mais que isto, instaurar uma "Era de Ouro". Essa intensificação do desejo, o “eu quero, eu posso”, diante da nova reorganização da economia mundial, como os BRICS, em especial a China, o “Tio Sam”, vem se deparando com algo inesperado; o limite. O Sul Global, me parece, irá se encarregar dessa grande lição aos estadunidenses, que é, “vocês não podem tudo!”. Haverá muitos traumas. 

Jônatas Carvalho. 
Historiador - Doutor em Sociologia e Direito. 

Notas: 
Myriam Chinalli. A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Veja também: https://appoa.org.br/correio/edicao/334/psicanalise_da_peste_a_viralizacao/1312 
Uma leitura de uma psicanalista brasileira nos EUA. https://appoa.org.br/correio/edicao/325/notas_de_uma_psicanalista_brasileira_nos_estados_unidos/1169 Franklin L. Baumer. O pensamento europeu moderno, Vol. II, p. 192.  
 

domingo, abril 06, 2025

A DIREITA ECONÔMICA BRASILEIRA E O FIM DE BOLSONARO.

    Neste domingo de frio em São Paulo, o DataFolha publica uma pesquisa que esfria ainda mais a vida política de Bolsonaro. A matéria que chama a atenção para a pesquisa tem o seguinte título: "67% afirmam que Bolsonaro deveria abrir mão da candidatura." No subtítulo, o instituto revela que "Michelle e Tarcísio são os nomes mais citados" entre os possíveis candidatos que o ex-presidente deveria apoiar.

    Uma manchete aparentemente informativa é, na verdade, parte da máquina de propaganda que a direita econômica (por direita econômica, refiro-me aos conglomerados de mídia, agroexportação e especulação financeira) vem produzindo já faz algum tempo. Quando, em fevereiro deste ano, o Fantástico dedicou uma longa matéria expondo "áudios inéditos" sobre a trama do golpe para matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes, eu não tinha mais dúvidas de que Bolsonaro havia sido abandonado.

    Ao longo dos dois últimos anos, a direita econômica esteve lado a lado com Tarcísio de Freitas, com um apoio poucas vezes visto. O governador de São Paulo recebe as benesses d**'O** Folha e d**'O** Estadão diariamente. O PIG (Partido da Imprensa Golpista), para relembrar um velho jornalista, não permite que qualquer mancha de sangue (da corrupção e associações criminosas do governador) chegue aos seus leitores.

Fonte: ICL - (Foto: EVARISTO SA / AFP)
    Nesta semana, duas novas personagens emergiram no cenário para lançar luz sobre a opção por Tarcísio. A primeira, José Dirceu (PT), em um evento sobre o Golpe de 1964, afirmou que a "Elite de São Paulo" já havia abraçado Tarcísio. Do outro lado, o senador Ciro Nogueira (PP), em conversa com representantes da Faria Lima que estavam preocupados com a possibilidade de terem que contribuir mais com o imposto de renda, alegou que "uma candidatura de Tarcísio de Freitas com o apoio de Bolsonaro, inelegível, venceria até no Nordeste".

    Mas, para Tarcísio ascender, é preciso lançar Bolsonaro ao precipício. Na minha avaliação, este é o grande jogo, com muitas peças e movimentações. Enumerarei aqui algumas: um movimento eu já destaquei acima, isto é, trata-se de elevar a imagem de Tarcísio como um político moderado e competente; seus "sucessos" como governador do Estado mais poderoso do Brasil o colocariam como o mais preparado para a presidência. Por outro lado, é necessário abrir candidaturas à direita em outros Estados. O discurso de Caiado, Ratinho Júnior ou mesmo Zema contra Lula e o PT será fundamental para não permitir uma recuperação da aprovação do governo petista. No tempo certo, esses pré-candidatos da direita se uniriam numa aliança pró-Tarcísio.

    Finalmente, um movimento absolutamente fundamental: a aceitação da Primeira Turma do STF em tornar Bolsonaro (e seu staff) réus. Ao longo de 2025, o ex-presidente irá sofrer enormes perdas de popularidade; o PIG trará inúmeras reportagens especiais revelando as imundícies da família do ex-presidente e o pressionará a se render a Tarcísio. Para não haver dúvidas, não estou sugerindo que o STF será usado como uma peça que a Direita Econômica utilizará – ao contrário, estou sugerindo que o Supremo é parte integral do jogo. Não creio que eu precise lembrá-los de que este é o mesmo Supremo que manteve Lula preso e o impediu de disputar uma eleição em que ele liderava nas pesquisas, só porque, na ocasião, esta mesma Direita Econômica havia optado por Bolsonaro e Paulo Guedes.


quinta-feira, janeiro 16, 2025

DITADURAS E RESISTÊNCIAS LATINOAMERICANAS: MEMÓRIA, HISTÓRIA E ARTE.

Eu e minha marida assistimos "Ainda estou aqui", alguns dias antes de Fernanda Torres ser premiada. Faz poucos dias que escrevi aqui um texto refletindo sobre os papéis do 6 e o 8 de janeiro, respectivamente nos EUA e no Brasil. O fato é que os eventos históricos, independente dos atores sociais envolvidos, tornam-se espaços de lutas pela memória que acabará prevalecendo (mesmo que não prevaleça eternamente, ocasionalmente memórias são resignificadas). É assim que surgem os heróis e vilões nacionais (é assim que alguns heróis são convertidos em vilões e vice-versa). Estes são construídos discursivamente, neste sentido, a memória é produzida pelas relações de poder, logo, aqueles que detêm o poder econômico-político, cujas forças controlam os meios de comunicação e produção de conhecimento, tendem a determinar que memórias devem ser memoradas e de que forma elas devem ser memoradas.. É aí que entra a história, o ofício da pesquisa histórica (também sociológica, geográfica, antropológica, arqueológicas entre outras), sua busca pelas fontes documentais, materiais e orais, podem re-significar certas memórias.

Cito um exemplo bem recente e prático, a Folha(SP) publicou em novembro de 2024, uma matéria sobre a retirada de luminárias japonesas no "beco dos aflitos" no bairro da Liberdade. Por tratar-se de um bairro amplamente conhecido como “bairro japonês” — se você "der um google", vai ver que a maioria absoluta das informações sobre o bairro estão ligadas a cultura japonesa, o mesmo ocorre com os bairros Bela Vista e Mooca em relação aos italianos — não faltaram críticas, chegaram a falar em tentativa de apagamento da memória japonesa, um "jornalista" do Gazeta do Povo, falou em discurso da militância do movimento negro. Quando na verdade, e aí a documentação é fundamental, o bairro da Liberdade, não tem esse nome a toa, mas por ser historicamente um bairro negro. A Capela do Aflitos, inaugurada no século XVIII, assim como o cemitério dos Aflitos e o Largos do Enforcados (também conhecido como morro da forca, onde se construiu a igreja de Santa Cruz das Almas dos Enforcados), são alguns exemplos da presença negra na liberdade é anterior a japonesa.O que ocorreu foi uma sobreposição de memória, isto é, a construção de uma memória sobre outra, como escreveu o historiador Paolo Rossi, em Memória e Esquecimento (2010), não esquecemos por apagamento puro e simples, ao contrário, esquecemos por sobreposição, isto é, não é por ausências que ocorrem os apagamentos, mas sim as presenças e novas simbioses.
               Painel: Memorial da Resistência

Não é diferente com nossa história sobre o regime ditatorial, as tentativas de negar duas décadas de supressão de direitos, censura, repressão, sequestros, torturas e assassinatos é uma produção discursiva que procura se sobrepor a memória da ditadura, instaurando novas presenças que ignoram fontes históricas ou as deturpam. Entretanto, tais tentativas são suportadas por um arcabouço frágil, um pequeno gigante de pés de barro, que não aguenta uma hora de debate sem se repetir.


Eu e minha marida estivemos na semana passada na Pina Estação, onde, em caráter permanente foi montado o Memorial da Resistência, um lugar com uma farta documentação sobre os espaços de tortura construídos no Brasil ao longo dos anos da ditadura. É emocionante (pesado) visitar as celas onde nossos presos políticos viveram (ou morreram) grandes sessões de terror. Mas não para por aí, há outra exposição no mesmo espaço, porém itinerantes, chamada Uma Vertigem Visionária — Brasil: Nunca Mais, com curadoria do pesquisador e professor Diego Matos; novamente, uma farta documentação. O Brasil: Nunca Mais, produziu e sistematizou cópias de mais de 1 milhão de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal Militar (STM), revelando a extensão da repressão política do Brasil no período. A documentação foi toda digitalizada e está disponível no site https://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. E se os os duvidosos não ficarem satisfeitos, — digo duvidosos, porque os negacionistas se recusam a enxergar, estão convencidos, e, como escreveu Nietzsche, o convicto é mais perigoso que o mentiroso, pois o primeiro tem a certeza de que está com a verdade, — temos mais uma exposição, tão impactante quantos as outras, trata-se de Memória argentina para o mundo: o Centro Clandestino ESMA. O ESMA (antiga Escola de Mecânica da Marinha), onde atualmente funciona o Museu Sítio de Memória, era um Centro Clandestino de Detenção, Tortura e Extermínio, em Buenos Aires (AR). Dos 30 mil presos e desaparecidos da Ditadura Argentina, entre os anos de 1976 e 1983, cerca de 5 mil foram enviados para a ESMA, o que fez do espaço o maior centro de tortura do país. A documentação apresentada na exposição é impressionante, particularmente, ainda mais tocante são os depoimentos das mulheres por lá presas e torturadas. Ao todo, se colocarmos os documentos em linha, são 5 quilômetros em papéis que revelam a desumanização e a barbárie por parte da ditadura argentina.

Estes espaços seguem sob a mira furiosa daqueles que querem destruir tais memórias, no exato momento em que escrevo este texto, não por coincidência, o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, em péssimas condições de preservação, foi fechado pelo governador Cláudio Castro. O ex-diretor do Arquivo, Victor Travancas, exonerado após denunciar as más condições gerais do arquivo, alertou sobre o comprometimento da conservação da documentação, incluindo uma vasta documentação do período da ditadura no Brasil. Algo semelhante ocorre com a ESMA, o atual presidente Javier Milei, segundo a Folha (SP), pretende enxugar a política de memória na Argentina, quando na verdade o que se pretende é tornar tal espaço cada vez mais inacessível ao público.

O historiador Rodolfo Costa Machado, da PUC-SP, investigou os “arquivos do terror” do Paraguai, tais arquivos foram revelados pelo advogado e ativista Martín Almada, preso político da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989). A mulher de Almada, morreu de infarto em prisão domiciliar, porque os militares ligavam pra ela e a obrigavam a escutar as sessões de tortura do marido. Rodolfo Machado, fez parte da Comissão da Verdade no Brasil, seu grupo de trabalho investigou a documentação sobre a participação do grande empresariado, são muitas, dentre elas podemos citar a Volkswagen, Paranapanema, Folha de São Paulo, Fiat, Aracruz e muitas outras. Mas foi René Armand Dreifuss, em sua robusta obra, “1964: A Conquista do Estado” (1981), que revelou a participação do capital estangeiro nos golpes militares pela América Latina, especialmente, a participação da “ADELA”, acrônimo para Atlantic Community Development Group for Latin America, grupo multibilionário formado em 1962, encabeçado pelo vice-presidente do grupo Rockfeller, reunia cerca de 240 empresas industriais e bancos. No Brasil, os interesses econômicos do “ADELA” estavam representados em think tanks como o Ipes [Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais], o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), ambos ligados à Escola Superior de Guerra (ESG). Mais recentemente, outro historiador, Pedro Henrique Campos, em sua tese “Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar”, demonstra como as conhecidas Queiroz Galvão, Camargo Correa, Andrade Gutierrez e Odebrecht, só tornaram-se grandes conglomerados devido ao apoio aos generais. Outras empresas, por não se alinharem aos generais, como a Panair, a TV Excelsior, os jornais Correio da Manhã e Última Hora, ao contrário, foram fortemente perseguidas até serem entregues aos grupos que apoiavam a ditadura. As empresas investigadas, violaram todas as formas de direitos, perseguiram trabalhadores, torturavam dentro de seus estabelecimentos e fizeram uso do trabalho escravo, como foi o caso da fazenda da Volkswagen no Pará e a Paranapanema, que utilizou mão de obra indígena na construção da Transamazônica. A Volkswagen assinou, em 2020, um acordo na ordem de 36 milhões junto ao Ministério Público de São Paulo. Trata-se do primeiro caso de reparação empresarial em razão da prática de crime de violação de direitos humanos.

A produção acadêmica-científica sobre o período das ditaduras na América Latina cresce anualmente, aos poucos novas documentações vão sendo reveladas. Rodolfo Costa Machado, em sua tese de doutorado (2017-2022), se debruçou nos arquivos dos EUA, especialmente sobre a operação Condor. Ainda há muita documentação escondida, protegida e desaparecida, no entanto, o que está disponível para investigação já soma uma quantidade significativa e inconteste dos absurdos cometidos sob alegação enganosa de combater o comunismo. Mesmo que o governo Lula III, se recuse a dar prosseguimento aos processos iniciados pela CNV, preferindo uma forma de “conciliação por cima”, beneficiando as elites militares e civis, não falta disposição em outras esferas da sociedade para seguir em frente e esclarecer este passado obscurecido. Por exemplo, o Relatório da Comissão da Verdade Indígena, segundo o qual, mais de 8 mil indígenas foram mortos na Ditadura, mais de 30 mil sofreram todo o tipo de violação. A reparação aos indígenas, sequer iniciada, é entre tantos casos, algo que não pode ficar no esquecimento. A decisão de Lula pela conciliação, isto é, não querer mexer na ferida, é uma acinte aos parentes dos mortos e desaparecidos tanto do campo, quanto da cidade.