Já se passaram uns dois ou três anos que escrevi um artigo1 sobre o modernismo brasileiro. Neste artigo eu usei a relação entre Oswald de Andrade e Tarsila Amaral com o poeta francês Blaise Cendrars. A intenção era defender que modernismo brasileiro não se deu por uma via de mão única em relação as Vanguardas Europeias, que não se tratou de “nós copiamos eles”, pelo contrário, tratava-se de uma via de mão dupla, havia trocas, muitas trocas entre nossos artistas e os artistas de lá da zouropa. Lembro que iniciei o artigo utilizando-me de um trecho das Crônicas de Malazarte, de Mário de Andrade, como epígrafe. Ei-lo abaixo:
Tenho um ginásio imaginário na cabeça em que os alunos estudam filosofia em Nietzsche, latim em Petrônio, psicologia em Geraldy e Bourget. As tragédias que adepto são de Bataille, Ibsen, Maeterlinck e Suderrmann. Ali se aprende o português em Guerra Junqueiro, em Silvio Romero e na Revista da Língua Portuguesa. Deste jeito, meus alunos se aborrecem de coisas pernósticas, de coisas inutilmente nebulosas e simbólicas, de maus versos, maus romances, e nunca mais quererão escrever mal o português. Mas é um ginásio apenas imaginário. Não tenho inclinação para diretor de consciências, como se vê. Pensas que isso me entristece? Ao contrário! Sou aluno. Inveterado aluno. 2
Esse trecho me serviu para conduzir um tipo de reflexão na época, ao voltar a lê-lo recentemente, comecei a pensar sobre minha condição no sistema educacional. Como Mário, não me vejo em condições de dirigir consciências, mas me pergunto sempre se é possível ser professor sem que isso ocorra. Acabo por concluir que sim, me baseio em Paulo Freire que defendia uma educação não verticalizada, mas horizontalizada, dessacralizada e libertadora. Confesso que não é assim que me sinto dando aulas, nunca encontrei uma escola ou espaço educacional com tamanha possibilidade, estou inserido em uma educação castradora, vivo a “escola da tristeza”, como chamou Clóvis de Barros Filho, onde alunos e alunas estudam para passar, para em seguida enfrentar uma prova com mais de 200 questões, como condição de adentrarem em uma faculdade onde seguirão firmemente uma vida de estudar para passar, e finalmente, quando estiverem no mercado de trabalho, viverão anos trabalhando em função do 5º dia útil do mês.
Seguimos embrenhados em um modelo de educação fabril, preparados desde cedo para tão somente gerar lucros e dividendos ao capital, uma existência destinada a nascer, estudar, trabalhar e morrer. O que me faz recorrer a outro grande educador brasileiro, Rubem Alves, quando este ainda se dedicava a sua teologia libertadora, na obra “Sobre Deuses e Caquis”, criticou a “feiura” da escrita científica, recusando-se a escrever a partir de um sujeito impessoal. Alves, traz a crítica à educação na arte de Orozco,
O que me faz lembrar de um mural de Orozco, pintor mexicano que passou anos ensinando a sua arte num college norte-americano, e foi certamente em virtude daquilo que ele via acontecendo com os moços que pintou A Formatura’: o professor, alto, magro, cadavérico, verde,/entrega ao seu discípulo,/ sua imagem,/ também alto, magro, cadavérico, verde,/ a prova final do saber,/ o diploma,/ um feto morto, dentro de um tubo de ensaio.3
Eis uma imagem que me assombra há anos, é ela que me faz resistir e procurar subverter certas lógicas mesmo estando dentro do sistema, contudo, creio que é uma luta trágica, como a de Sísifo. Se for este o caso, creio que é melhor assim, que simplesmente conformar. Não nasci para a conformação, nunca me senti um ativista ou um revolucionário, vivo minhas próprias revoluções, sou um subversivo, um profanador daquilo que tentam consagrar em mim.
Mas eu não estaria sendo totalmente verdadeiro sobre o que pretendo revelar, delimitando minha inspiração apenas em Mário de Andrade, Rubem Alves ou Orozco. Pois a ideia me preencheu mesmo a mente foi lendo “Glauber Rocha, esse vulcão”, de João Carlos Teixeira Gomes. Uma história fascinante sobre um brasileiro que foi muito mais que um dos principais nomes no Cinema Novo. Deixarei para tratar da minha “nova” relação com Glauber em outro momento. O fato é que sua história me fez pensar e sonhar com um projeto educacional, um Instituto de Humanidades Subversivas. Sei muito bem como esse conceito soa entre nós brasileiros, a máquina de propaganda da ditadura transformou em subversivo todos aqueles que se voltavam contra o sistema, convertendo-a de sentido pejorativo. Por isso devemos muito a Hélio Oiticica, com a sua bandeira antipropaganda “Seja Marginal, Seja Herói” (1968), subvertendo a noção de marginal e de herói em uma só frase. A obra foi uma homenagem ao “Cara de Cavalo”, um morador do Morro da Mangueira, morto pela polícia. E se o marginal é aquele que vive à margem da moralidade estabelecida, o subversivo é quem busca sua própria moralidade, questionando a moral em vigor, procurando viver uma outra ética.
O Instituto de Humanidades Subversivas teria por objetivo propor reflexões que propiciem aos indivíduos uma ética que subverta àquela dita dominante. Desta forma, como Mário de Andrade, eu comecei a pensar em um conjunto de conhecimentos e saberes que poderíamos compartilhar nesse espaço. Para começar, as bases teóricas metodológicas do nosso IHS estariam ancoradas no pensamento (seja ele latino-americano, africano ou periférico de alguma forma) anticolonial. Pensaremos por meio de novas epistemologias, não aquelas que nasceram para justificar a supremacia do sujeito da razão iluminista. Isso não excluirá algum pensamento Ocidental, creio que sejam importantes os estudos de uma “filosofia da suspeita”4, uma contra-história da filosofia5, em que se recupera os pensamentos vencidos, derrotados, não por serem inferiores, mas porque contrariaram interesses dominantes. Mas faremos isso sem dar ao pensamento ocidental a primazia da palavra. Um espaço onde o ocidente não seja tratado como o berço da racionalidade, teremos cartazes espalhados com dizeres: “A medicina não nasceu na Grécia de Hipócrates”, a “Filosofia não é filha de Sócrates, Platão e Aristóteles”, “Homero não é o pai da Literatura”, “Heródoto não inaugurou a História”, “A música não é filha das Musas”, “O teatro não nasceu com Ésquilo e Sófocles”.
Discutiremos a filosofia e a ética das escolas de pensamento africanas, asiáticas e americanas, de modo que seja possível superar ou sobrepor ao epistemicídio impetrado pelo pensamento ocidental. Estudaremos Filosofia, História, Sociologia e Antropologia em Cheikh Anta Diop, Valentin Mudimbe, Théophile Obenga e Mogobe Ramose. Aprenderemos ontologia e epistemologia nas escolas Hindus (como o Pramana) e Jainistas, passando pelas escolas Sânquias (como o pensamento dualista de que o universo consiste em duas realidades, purusha (consciência) e prakriti (matéria), e a filosofia realista Nyâya.
Sobre o conjunto de conhecimentos e saberes americanos, adentraremos na anticolonialidade da história (ou como está na moda, decolonialidade), mas antes mesmo de chegarmos aos principais nomes da “desconstrução” das epistemologias colonialistas, devemos nos aventurar no pensamento americano anterior às vozes que vêm da outra margem, como propôs a escritora chicana Glória Anzaldúa6. Investiremos nos saberes e conhecimentos do Abya Yala (que significa Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento), do Povo Kuna, mas também tantos outros povos que por aqui viviam e se distinguiam em maias, chibchas, mixtecas, zapotecas, ashuars, huaraonis, guaranis, tupinikins, kaiapós, aymaras, ashaninkas, kaxinawas, tikunas, terenas, quéchuas, karajás, krenaks, araucanos/mapuches, yanomamis, xavantes, além de tantos outros. É preciso deixar claro que o Europeu é o invasor, não se trata mais de aceitar pacificamente conceitos como “expansão marítima”, ou “descobrimentos”. São invasões!
É importante entender que a colonialidade não se dá apenas pela força dos canhões e baionetas, a colonização implica em uma dominação total, que estabelece sistemas de verdades, moldando a linguagem, a memória e o conhecimento. É por isso que nos livros didáticos lemos sobre a “Expansão do Império Romano”, revelando as proezas dos imperadores augustos, mas no capítulo seguinte nos deparamos com “As Invasões dos Povos Germânicos” (em alguns livros ainda são chamados de Bárbaros). Do mesmo modo, as guerras impetradas contra os Mouros na Península Ibérica são denominadas de “Reconquista” e a dominação do continente africano e asiático pelos europeus ao longo do século XIX ganhou uma conotação poética escrita pelo inglês Rudyard Kipling, denominado de The White Man's Burden (O fardo do homem branco).
Esse tipo de dominação (da linguagem, memória e conhecimento), só pode ser combatida pela construção de outras linguagens, memórias e conhecimento. Embora ainda encontremos poucos que se dedicam nesta tarefa árdua, temos já um conjunto suficientemente satisfatório para pensar as Américas por racionalidades disruptivas capazes de subverter o pensamento dominante. Poderemos conhecer nossa história por meio de obras do sociólogo peruano Aníbal Quijano, do antropólogo colombiano Arturo Escobar, dos argentinos Enrique Dussel (filósofo), Walter Mignolo (filósofo), María Lugones (socióloga) e Zulma Palermo (Pedagoga). Sem deixar de referenciar aqueles desbravadores desse pensamento, grandes referências da desconstrução, como é o caso do psiquiatra martinicano Frantz Fanon, autor de Pele Negra, Máscaras Brancas (1952) e Os Condenados da Terra (1961), além do judeu-lituano Emmanuel Levinas, o filósofo da alteridade.
Em literatura leremos Jorge Luiz Borges, Gabriel Garcia Marquez, sem esquecer de José Lins do Rego, Guimarães Rosa e Jorge Amado. Leremos ainda as obras das nordestinas pioneiras da literatura brasileira da Sociedade das Senhoras Libertadoras, como A Rainha do Ignoto (1889), de Emília Freitas e A divorciada (1902), de Francisca Clotilde. Mergulharemos na poesia de Pablo Neruda e de Gabriela Mistral, retomaremos a poesia marginal da Geração do Mimeógrafo, passando pelos versos de Chacal, Leminski, Torquato Neto e Ana Cristina César. Aprenderemos a geografia e a geopolítica de Milton Santos, a criminologia de Rosa del Olmo e a antropologia de Lélia Gonzales.
Em nosso Instituto de Humanidades Subversivas haverá espaços absolutamente livres para desconstruir aqueles tabus que não são possíveis de serem tratados em outras escolas, como descriminalização das drogas e do aborto, a relação entre o racismo estrutural e o encarceramento das populações pretas e pobres. Seremos uma escola antiproibicionista. Defenderemos os povos originários, a terra, a favela, os sem tetos e a comunidade LGBTQI+. Combateremos o neoliberalismo, o nazifascismo de ontem e suas ramificações contemporâneas. Atacaremos todas as balelas do empreendedorismo neoliberal.
Associaremos estes estudos ao mundo das artes no cinema, na música, no teatro e nas artes visuais. No cinema exploraremos as cinematografias de diretores argentinos, chilenos, mexicanos, discutiremos o Brasil nas filmografias de Glaber Rocha, Eduardo Coutinho, Nelson Pereira dos Santos, Lima Barreto, Gustavo Dahl, Tizuka Yamasaki e Adélia Sampaio. O teatro de Dias Gomes, Augusto Boal, Hilda Hilst e Maria Adelaide Amaral. Nas artes visuais passearemos pelas obras de Lasar Segall, Tarsila Amaral, Carlos Prado, Portinari, Di Cavalcanti, Giorgina Albuquerque, Beatriz Milhazes, Alfredo Volpi, Iberê Camargo, Adriana Varejão, os muralistas mexicanos (Orozco, Diego Rivera, David Siqueiros),além de grafiteiros e grafiteiras de nossos tempos.
Proporemos uma consciência sociopolítica que seja “sacialista e intergalática”, copiando as palavras de Bruno Simões Gonçalves7. Sim o Saci será um dos nossos símbolos mais importantes em nosso Instituto. Vale lembrar que Macunaíma o anti-herói de Mário de Andrade, se transmuta em Saci e, por fim, na constelação Ursa Maior. Uma consciência sacialista ressignifica o modo de ver o mundo, desnaturalizando o que foi naturalizado, mistificando o que foi desmistificado. O Saci-Pererê é um exemplo da transformacionalidade e de pluriversalidade. O negrinho travesso de uma só perna, vulgarizado na obra de Monteiro Lobato, tem uma origem mais complexa que nos foi contada, recebeu vários nomes indígenas, como: Jaxy Jaterê, Mati-taperê, Xaxim-Tarerê, Yasy-yateré. Saci é ameríndio-africano8. Na mitologia Guarani o Jaxy Jaterê (fragmento de Lua), é o protetor das floreta e dos animais que vivem nela. Mas há muitas versões sobre o menino ameríndio, tanto no que diz respeito ao seu temperamento e conduta, quanto as suas características físicas. Já o Saci negro, também guarda algumas aproximações com os chamados tricksters, que seriam deuses ou deusas com um potencial para infringir regras e normas. O escritor Ale Santos, autor de Rastros de Resistências (2019), escreveu que se trata de um arquétipo representado em várias mitologias africanas, em Gana ele é representado por Anansi, e em Yorubá por Exu.
Sem dar por encerrado minha proposta, pois a ideia é que ela siga sempre aberta a modificações. Concluo essa etapa tratando de nossa base bibliográfica, que será equilibrada entre autores e autoras, negros(as), brancos(as), pardos(as), latinos(as), das mais diversas orientações sexuais. Não teremos alunos x professores, diretores, coordenadores pedagógicos, nosso projeto pedagógico será gerado no debate público, onde todos e todas terão o direito de propor a inserção de um diálogo-tema. No IHS não haverá espaço para mestres, porque como Mário de Andrade, seremos todos inveterados alunos e alunas.
Alguns que lerão estas linhas poderão dizer: - Mas esses conhecimentos já estão presentes nos Centro Acadêmicos das Universidades Públicas! É verdade, estão. Ótimo que estejam, espero que tais espaços cresçam ainda mais. Mas quem conhece as escolas privadas sabem bem o quanto afastadas estas estão desses tipos de reflexões, salvo raríssimas exceções. Ultimamente, professores têm sido coibidos e em alguns casos proibidos de falar em política. Colegas de trabalho perderam o emprego por abordarem temas como sexualidade, eleições, drogas, entre outros. Não estou pensando na gurizada que terá condições de estudar em uma Universidade Pública, porque sabemos estes são um grupo ainda seleto. Penso em um modelo de escola voltado para a galerinha que hoje se encontra no ensino médio, um público que estuda em escolas como as que eu passei como professor, escolas com um currículo engessado, conteudista, voltadas para preparar as turmas tão somente para passar nos vestibulares. Modelos educacionais que fazem perpetuar o sistema de reprodução das desigualdades sociais com ideologias liberais-colonialistas.
Se isso é um projeto? Gostaria muito que fosse, por ora, é apenas um livre sonhar.
1O artigo virou capítulo de livro, uma coletânea de ensaios escritos por alunos da pós-graduação da UFF, em especial na área de sociologia e direito, organizado por nossa cara professora Carmem Felgueiras, aprovado pela FAPERJ, publicado em 2022 pela Editora Anagrama, sob o título de Contrapontos, Ensaios sobre interpretações do Brasil. O meu artigo ocupa o capítulo 2 da obra com o título: O viajante aprendiz – Mário de Andrade, a expansão do Modernismo e a integração do Brasil.
2ANDRADE, Mario. Chronicas de Malazarte II. In: Revista América Brasileira n. 23, p.318. Rio de Janeiro, novembro de 1923. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/158089/646
3ALVES, Rubem. Sobre deuses e caquis, em: Da Esperança, Papirus, Campinas: 1987.
4RICOEUR, Paul, Ricoeur, chamará de Hermenêutica da Suspeita em sua obra Freud e Filosofia (1965), ao buscar confluências nos pensamentos de Marx, Nietzsche e Freud.
5Ao modo como pensou Michel Onfray.
6Anzaldúa que desenvolveu em 1987 a noção de “Borderlands/La frontera”, reconceituando o conceito de mestiço.
7Autor da tese: Nos caminhos da dupla consciência: Socialismo Indu-Americano, libertação e descolonização da América Latina, PUC, 2014.
8ROSA, Rogério Reus Gonçalves da. Jaxy e Jaxy Jaterê: o ponto de vista Guarani e de outros povos ameríndios sobre a origem da lua, as constelações e o saci-pererê (primeira parte). Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 1-46, jan./abr. 2022.
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