quinta-feira, janeiro 26, 2017

TERIA SIDO O BRASIL RESPONSÁVEL PELA PROIBIÇÃO DA MACONHA?

Ao que me parece, um grande mal entendido, acabou colocando na conta do Dr. Pernambuco Filho e o Dr. Adalto Botelho (autores de Vícios Sociaes e Elegantes - 1924), a proibição da maconha. Segundo alguns autores, esses senhores apresentaram na conferência sobre o ópio em Genebra em 1924 um pedido formal para que o Comitê Internacional do Ópio proibisse a cannabis. Abaixo alguns esclarecimentos de como o processo da proibição da maconha se deu, de acordo com as minhas leituras das fontes. 

Há na historiografia muitas controvérsias sobre qual delegação foi responsável pela inclusão do cânhamo na pauta das conferências em 1924. Alguns autores chegaram a afirmar que a proibição da maconha em âmbito internacional deve-se ao representante brasileiro em Genebra o Dr. Pernambuco Filho[1]. Há também quem defenda que tal ato tenha sido obra da delegação britânica, como é o caso de Antônio Escohotado[2] e quem acredite que teria sido a delegação egípcia a responsável, como tentativa de frear o consumo do haxixe (rezina da canabis).[3]Westel Woodbury Willoughby (1867-1945) em 1925 no Opium as na international problem: the Geneva Conferences, afirma que o primeiro governo a se manifestar oficialmente sobre o problema do cânhamo foi a “União da África do Sul” que em 1923 teria enviado a Liga das Nações uma sugestão para que o haxixe fosse considerada como uma droga viciante de caráter narcótica. O Comitê Consultivo considerou que o assunto deveria ser estudado e que os outros governos deveriam apresentar também suas posições, emitindo a seguinte resolução: 

Com referência à proposta do Governo da União de África do Sul de que cânhamo indiano deve ser tratado como uma das drogas formadoras de hábito, o Comité Consultivo recomenda ao Conselho que, em primeira instância, os Governos devem ser convidados a fornecer informações à Liga sobre a produção, utilização e tráfico da substância presente em seus territórios, juntamente com a suas observações sobre a proposta do Governo da União de África do Sul. O Comité recomenda ainda que a questão deve ser considerada na sessão anual do Comitê Assessor a ser realizada em 1925.[4]

O documento[5] confirma a participação efetiva do Egito nas reuniões em Genebra, um memorando produzido pela delegação que era presidida pelo Sr. El Guindy, apresentava o uso do haxixe naquele país como responsável pelos casos de “demências”, cujas incidências em homens eram três vezes maiores que em mulheres, conforme o documento, isso seria o contrário do que ocorria na Europa. O Egito recebeu apoio imediato da China, o representante dos EUA, Sr. Porter, afirmou que era o momento para se praticar um pouco de reciprocidade, já que as outras nações estavam pedindo a estes (Egito e Turquia), apoio contra o ópio e a coca[6]. Uma declaração que mais pareceu uma convocação ao apoio da inserção da cannabis na lista. A delegação da Índia disse que não havia se preparado para o debate, mas até o final da Conferência emitiram nota dizendo que governo indiano estaria disposto a controlar as exportações da Indian hemp, para outros países apenas com certificados para fins medicinais.[7] França e Holanda se opuseram assim como o representante britânico Sr. Malcolm Delevingne, este último alegou que devido ao despreparo das delegações para discutir o assunto, seria “impossível se chegar a um acordo nesta Conferência”.[8] Mas ao final da Conferência editou a seguinte resolução:

A utilização do cânhamo indiano e suas preparações derivadas só podem ser autorizadas para fins médicos e científicos. A resina crua (haxixe), no entanto, que é extraída da planta fêmea da cannabis sativa, juntamente com as diversas preparações (haxixe chira, esrar, diamba, etc), de que forma a base, não sendo presentemente utilizada para fins médicos e apenas sendo susceptíveis de utilização para fins prejudiciais, da mesma maneira como outros narcóticos, não podem ser produzidas, vendidas, comercializadas, etc, sob nenhuma circunstância.[9]

Notas: 

[1] Muitas publicações brasileiras basearam-se na obra de CARLINI, E. A. (A história da maconha no Brasil. São Paulo, CEBRID, 2005.), que por sua vez utilizou-se de KENDELL R. (Cannabis condemned: the prescription of Indian hemp. Addiction, 98: 143-51, 2003). Este teria afirmado que: “ o representante brasileiro, Dr. Pernambuco, descreveu a maconha como ‘mais perigosa que o ópio.” (p.9) Veja por exemplo: CAMPOS, Marcelo Araújo, A presença da Cannabis sativa (Linné) e canabinóis na Lista IV da Convenção da ONU, CONAD, 2005; BARROS, André & PERES, Marta. Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas. PERIFERIA, V. III, Nº 2: 2011. Estes últimos chegaram a afirmar com base em tal “informação histórica” que: “esse médico, indiscutivelmente, influenciou a criminalização da maconha em todo o mundo. Em outras palavras, foi baseada nas ideias racistas e escravocratas presentes no discurso de um psiquiatra brasileiro, que a criminalização da maconha viria a ser internacionacionalizada.” (p.14). Na verdade o próprio CARLINI (2005) achou um pouco contraditório tal afirmação (embora tenha alegado que a mesma fora confirmada na obra: Os fumadores de maconha em Pernambuco, arquivos e assistência aos psicopatas, 1934 de José Lucena), citando a obra Maconha (coletânea de trabalhos brasileiros, publicado em 1958), onde o mesmo Dr. Pernambuco Filho afirmara que: “Em centenas de observações clínicas, desde 1915, não há uma só referência de morte em pessoa submetida à privação do elemento intoxicante, no caso a resina canábica. No canabismo não se registra a tremenda e clássica crise de falta, acesso de privação (sevrage), tão bem descrita nos viciados pela morfina, pela heroína e outros entorpecentes, fator este indispensável, na definição oficial de OMS, para que uma droga seja considerada e tida como toxícomanógena.” (p.10). 
[2] Veja ESCOHOTADO (1998, p.701). Para o autor, os ingleses associaram o uso de haxixe às atividades “subversivas”, isto é, o haxixe fora convertido em “símbolo” da resistência ao colonialismo no Egito.
[3]BLANCHARD, Sean &ATHA, J. Matthew. Indian hemp and the dope fiend of old England: a sociopolitical history of cannabis and the British Empire-1840-1928. In. www.druglibrary.org / <http://www.druglibrary.org/schaffer/Library/studies/inhemp/dopefien.htm>acesso em: 13/11/2012.
[4] WILLOUGHBY, W. W. Opium as an international problem: the Geneva Conferences. Baltimore, The Johns Hopkins Press, 1925. p. 374
[5] A obra de Westel Woodbury Willoughby é composta por discursos e memorandos de plenipotenciários de várias delegações em variadas seções da Conferência. O memorando do Sr. El Guindy encontra-se na integra nas pp.374-378.
[6]Idem.p.379

[7] Idem p.380 
[8] Idem. p.381. Aqui verificamos uma possível contradição quanto à afirmação de Antônio Escohotado, sobre a liderança dos ingleses no processo que levou a inclusão da maconha na lista de substâncias reguladas em Genebra de 1924. Todavia, é possível que o autor tenha razão, já que tanto o Egito quanto a África do Sul eram na época protetorados (ou colônias) do império britânico, mesmo com o posicionamento do representante britânico, a Grã-Bretanha ratificou a convenção. O comércio de canabis não era representativo para o governo britânico, o país mais afetado com a regulação seria o Afeganistão que fornecia para a Índia e Pérsia, mas este não estava representado na conferência, a maioria dos países europeus não tinham nada a perder como a regulação da canabis, assim, mesmo sem maiores análises, o cânhamo foi incluído na lista de drogas nocivas na Convenção e Genebra em 1925. 
[9] Idem. p.383.

Extraído do Livro>  CARVALHO, Jonatas. Regulamentação e criminalização das drogas no Brasil: A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes - 1936-1966. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013. 192p.

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