O texto abaixo é parte de um artigo que escrevi com minha colega da PUC-RJ Beatriz Brandão para o 40º Encontro da ANPOCS em outubro de 2016. O recorte aqui postado é uma discussão de cunho mais teórico que fizemos no artigo, na verdade um pequeno ensaio entre a ideia de obediência a partir da noção de "governo das almas" em Foucault e a de "vocação" em Weber.
“Aqui
a casa não cobra nada para ficar, cobra só a obediência”[1]
O
jovem fica ali parado diante do portão do cenóbio, por dez dias ele precisa
resistir, dez dias ele provará que não quer ser um monge por um motivo
qualquer. Nos primeiros dias ele será ignorado, depois desprezado e finalmente
injuriado, ele sentirá o desprezo dos outros monges, que lhe lembrarão
sistematicamente o quanto ele é desnecessário. Após dez dias, aquele que ali
permanecer, aquele que suportou a humilhação, a repulsa, a abjeção, será aceito
como postulante, então será ali mesmo desapossado de suas vestimentas,
renunciará à riqueza e vestirá a roupa do convento, deixando para trás o velho
homem juntamente com todos os velhos hábitos. A próxima fase de sua preparação,
o jovem ficará por um ano na entrada da propriedade, em cômodos reservados para
acolhimento de estrangeiros, ele ainda não pode entrar no monastério, estará
sendo preparado por alguém que será nomeado para dirigi-lo. Ao final de um ano
então, caso ele consiga se adequar as regras, ele finalmente será admitido no
monastério, outra vez um monge mais velho se encarregará de guia-lo juntamente
com mais nove jovens, dez almas que serão governadas.[2]
A
história acima foi contada por Foucault em uma aula no Collège de France em 19
de março de 1980. O curso ministrado pelo filósofo naquele ano recebeu o título
de “Do governo dos vivos”. Ao longo dos
anos anteriores Foucault vinha numa trajetória de tentar entender a noção de
governo, nos anos de 1977 e 1978 ele se debruçou sobre a ideia de governo entre
os gregos e procurou demonstrar como que com o cristianismo essa ideia passará
por um deslocamento, se entre os gregos e romanos governar significava muito
mais conduzir a polis, governar a cidade, com o advento do cristianismo essa
noção pôde se aplicar na condução dos homens. Ele verifica um tipo de poder
pastoral, que tinha por objetivo dirigir a consciência, de dirigir a alma. Esse
tipo de poder pastoral teria sua origem no Oriente não cristão, como no caso do
Faraó egípcio que era visto como um grande pastor, “o Rá, que velas quando
todos os homens dormem, que procuras o que é benefício para teu rebanho”. Em
todo caso, será com o advento do cristianismo que o governo se ocupará mais da
multiplicidade do que do território. É neste sentido, que a figura do pastor é
aqui emblemática, uma vez que ele se preocupa com o rebanho ao mesmo tempo que
a vida de cada ovelha lhe é imprescindível, (FOUCAULT, 1978).
Enquanto o homem grego era conduzido
ao pressuposto socrático do “conhece-te a ti mesmo (gnōthi seauton)”, no cristianismo o homem é conduzido a negar a si
próprio. O ascetismo cristão tem por princípio fundamental que a renúncia de si
constitui o momento essencial para acender à outra vida e alcançar a salvação.
(FOUCAULT, 1982, p.304). A renúncia de
si para os monges cenobitas, significava negar todas as vontades do corpo,
todos os desejos da alma, mas, ia além de somente abdicar de si mesmo, pois tratava-se
de abrir mão de seu próprio arbítrio para se submeter ao arbítrio do outro sem
questionar, simplesmente obedecer. O caminho da verdade é um caminho de
submissão e obediência. A obediência no sentido que Cassiano descreveu deveria
ser passiva, uma ordem dada não deve ser questionada, sequer deve-se pensar sua
inutilidade, apenas cumprida. Para que isso ficasse claro aos novatos, era
comum que seus superiores ordenassem a fazer coisas sem qualquer sentido, como
foi o caso do abade Jean que por um ano irrigou um bastão enterrado e ouviu do
seu superior que ele não regara direito. A obediência requer assim que se
queira acima de tudo, fazer a vontade do outro, viver debaixo da permissão do
outro. Cassiano lembra que os “jovens não devem deixar a célula sem que o
preposto permita; mas, ele não deve nem mesmo presumir a autorização”. (FOUCAULT, 1980, p. 110).
O
poder pastoral suscitou uma série de disputas ao longo da história, tais
disputas, escreveu Foucault, de Wyclif a Wesley, tinham por objetivo saber quem
teria o direito efetivo de governar os homens. Nas reformas religiosas na
Europa do século XVI o que se vê é uma batalha pelo pastorado, não uma batalha
doutrinal, que resultou no fortalecimento do poder pastoral, dividido em dois
mundos, o protestante, cujo pastorado se exerceu de modo mais meticuloso ao
mesmo tempo flexível hierarquicamente e o mundo da contrarreforma, cujo o
pastorado permanecera altamente controlado e hierarquizado. (FOUCAULT, 1978, p.
198).
Quanto
a análise de Foucault sobre o pastorado protestante, pode-se dizer que esta é
conciliatória com aquela feita por Max Weber anteriormente, para quem a Reforma
Protestante não implicou na eliminação do controle da Igreja sobre a vida
quotidiana, mas na emergência de uma nova forma de controle. A Reforma
significou o repúdio a um controle frouxo, quase imperceptível, em favor de uma
regulamentação da conduta dos homens. (WEBER, 1905, p.12). Hennis, ao estudar
Weber, diz Colin Gordon (1987), afirmou que a ética protestante associada ao “espírito
do capitalismo” resultou numa condução metódica da vida, sobretudo, aquela
implementada pelo calvinismo. Todavia, não é somente no calvinismo que o
espírito capitalista encontrará um lugar ao sol, Weber dedica o capítulo três
de “A ética protestante e o espírito capitalista” a discutir a concepção de
vocação em Lutero, afirmando que tal concepção encontra-se centralizada no
dogma das religiões protestantes, preceitos éticos estes rejeitados pelo
catolicismo que convivia ao modo praecepta
et concilia (regra dos planos). A concepção de vocação em Lutero, segundo
Weber, apresentou como única forma de vida aceitável por Deus, aquela do
cumprimento das obrigações impostas aos indivíduos pela sua posição no mundo,
condenando o monasticismo a uma vida ditada pelo demônio. (WEBER, 1905. p.
34;35).
O
pastorado pós a reforma não se ocupou mais de dirigir os homens a uma vida
asceta, mas direcioná-los para uma vida produtiva. Weber vai retomar o apóstolo
Paulo para demonstrar que a comunidade cristã do Novo Testamento via as
atividades mundanas com indiferença devido suas esperanças escatológicas. No
calvinismo, porém, tais esperanças são mantidas, mas ao invés de manifestarem
no ascetismo, o eleito está no mundo para refletir a glória de Deus, o mundo
existe para a glorificação de Deus, assim a obediência consiste, não na
reclusão ao mundo e sim na melhoria deste. (WEBER, 1905. p. 47). A parábola do
servo fiel (ou prudente em algumas traduções bíblicas) é resgatada pelos
reformadores, este é o servo a quem o Senhor confiará todos os seus bens e
zelará por eles e os multiplicará, já o servo infiel é aquele que na ausência
de seu Senhor espancará seus companheiros e se prestará a comer e embriagar-se.
(Mateus 24:45-51/Lucas 12:41-46). A vida precisa ser santificada, o que
significa ocupar-se apenas com aquelas coisas que são da vontade de Deus, a
vida do santo deve ser direcionada para o fim transcendental, isto é, a
salvação. Justamente por isso ela será racionalizada nesse mundo e totalmente
dominada pelo objetivo de aumentar a glória de Deus sobre a terra. (WEBER,
1905. p.52).
As
descontinuidades históricas ocasionadas pela reforma no modo de como se deve
governar, no modo como os homens devem ser conduzidos, não significam ao final
uma ruptura com o ascetismo, mas sim um deslocamento para a vida asceta. Se em
Cassiano o ascetismo é a renúncia do mundo em prol de uma vida de disciplina,
obediência e oração, no protestantismo o que se renuncia é o isolamento do
mundo. A riqueza e o lucro são condenáveis somente quando adquiridos para o
proveito próprio, para o gozo e o descanso, uma vez que “o repouso dos santos
se encontra em outro mundo”. Atitudes
como diversão ou até mesmo dormir mais do que oito horas por dia são
condenáveis moralmente, porque o tempo é precioso para Deus. O poder pastoral
no pietismo, no puritanismo, dirige o homem a ser zeloso, um zelo que implicava
em seguir mortificando os desejos vis da carne, em nome da honra de servir em
Deus no mundo refletindo sua grandeza. Isso só seria possível por meio de uma
vida próspera, querer ser pobre, seria o mesmo que querer ser doente, trabalhar
e prosperar é demonstrar a manifestação de Deus. (WEBER, 1905. p. 75-77).
Tudo
que pode desviar o homem desse caminho, tudo que pode fazer dele um servo
infiel, e aqui vemos incluído o vício, deve ser contido. Não é por outra razão
que se verifica no advento do proibicionismo no século XIX nos EUA, dentre
outros fatores, o recrudescimento dos ideais puritanos, isto é, o reavivamento
do fundamentalismo religioso, que denunciava a degradação moral e a desordem
promovidas pelos saloons. Recebendo
apoio de vários setores da indústria e de empresários, do movimento
proibicionista viu-se surgir o partido proibicionista. Assim a proibição do
álcool nos EUA em 1920, teve como base a ideia de degradação somada a da
improdutividade, ou seja, a junção da ética protestante e o espírito
capitalista. (CARVALHO, 2013, p.26).
Ao voltar ao objeto desse artigo podemos aqui
entender os centros de recuperação (CRs) como espaços cuja ética protestante e
o espírito capitalista de Weber se fez presente uma vez que tal espaço se
apresenta como solução para recolocar o indivíduo de volta ao mundo como
sujeito produtivo. Na lógica protestante o “drogado” seria percebido como um
asceta que renunciou ao mundo abstendo-se de suas obrigações para com este. A
recuperação implica em retomar sua vocação na terra como a mais absoluta
vontade de Deus, a ética protestante coloca assim o ócio, a preguiça e tudo o
mais que provoque a improdutividade como antinatural quando não, de ordem
demoníaca. O princípio da vocação colocada na reforma protestante insere o
homem na produtividade, na prosperidade e no labor.
Mas
pelo menos uma coisa é indiscutivelmente nova: a valorização do cumprimento do
dever nos afazeres seculares como a mais alta forma que a atividade ética do
indivíduo pudesse assumir. E foi o que trouxe inevitavelmente um significado
religioso às atividades seculares do dia a dia e fixou de início o significado
de vocação como tal. O conceito de vocação foi, pois, introduzido no dogma
central de todas as denominações protestantes e descartado pela divisão
católica de preceitos éticos em praecepta et consilia. O único modo de vida
aceitável por Deus não era o superar a moralidade mundana pelo ascetismo
monástico, mas unicamente o cumprimento das obrigações impostas ao indivíduo
pela sua posição no mundo. Esta era sua vocação. (WEBER, 1905. p. 34)
Ao
retornar as narrativas deixadas por Cassiano que foram retomadas por Foucault
no curso “do governo dos vivos” em 1980, encontramos mais uma ilustração
interessante, sobre um monge que por cinquenta anos absteve-se radicalmente da
vida mundana. Em certa fase de sua santidade ele acreditou que poderia se jogar
num poço e que os anjos do Senhor o salvaria antes mesmo que chegasse ao fim do
poço. O monge não morreu mas sofreu lesões e fraturas graves. Cassiano
utiliza-se do exemplo apenas com um objetivo, para dizer que o sacrifício não é
bom quando não está submetido a uma situação de obediência.
É
aqui que possivelmente encontramos as continuidades históricas entre o
ascetismo cristão monástico e o ascetismo pós reforma. Se pudemos verificar o
deslocamento do modo de conduzir os homens, da direção em que serão governados.
Se pudemos até aqui ver que o ascetismo protestante visa a renúncia dos desejos
e aos prazeres da carne, sem negar ao mundo. O que resta de comum nestes dois
modelos de pastorado? A obediência. O interno em um CR de disciplina
pentecostal é conduzido a uma vida de obediência, não há caminhos alternativos
para mudança de vida, só existe um caminho possível. Se na história de Cassiano
a crença de que Deus enviaria seus anjos para evitar que o monge se chocasse
com o fundo do poço, o governado em recuperação em um CR é levado a crer que
chegou ao fundo do poço devido a seus pecados, por “dar ouvidos” ao diabo, por
se entregar aos prazeres do mundo e só Deus pode lhe retirar do fundo do poço.
Para isso, é necessária uma vida de total abdicação do mundo, uma mudança
radical do comportamento e uma submissão ao seu pastor que o guiará ao caminho
da cura e da recuperação.
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