segunda-feira, janeiro 09, 2017

“Quando todos mandam quem obedece?”: drogas, crime e fé na análise de um centro de recuperação.

O texto abaixo é parte de um artigo que escrevi com minha colega da PUC-RJ Beatriz Brandão para o 40º Encontro da ANPOCS em outubro de 2016. O recorte aqui postado é uma discussão de cunho mais teórico que fizemos no artigo, na verdade um pequeno ensaio entre a ideia de obediência a partir da noção de "governo das almas" em Foucault e a de "vocação" em Weber. 

“Aqui a casa não cobra nada para ficar, cobra só a obediência”[1]

O jovem fica ali parado diante do portão do cenóbio, por dez dias ele precisa resistir, dez dias ele provará que não quer ser um monge por um motivo qualquer. Nos primeiros dias ele será ignorado, depois desprezado e finalmente injuriado, ele sentirá o desprezo dos outros monges, que lhe lembrarão sistematicamente o quanto ele é desnecessário. Após dez dias, aquele que ali permanecer, aquele que suportou a humilhação, a repulsa, a abjeção, será aceito como postulante, então será ali mesmo desapossado de suas vestimentas, renunciará à riqueza e vestirá a roupa do convento, deixando para trás o velho homem juntamente com todos os velhos hábitos. A próxima fase de sua preparação, o jovem ficará por um ano na entrada da propriedade, em cômodos reservados para acolhimento de estrangeiros, ele ainda não pode entrar no monastério, estará sendo preparado por alguém que será nomeado para dirigi-lo. Ao final de um ano então, caso ele consiga se adequar as regras, ele finalmente será admitido no monastério, outra vez um monge mais velho se encarregará de guia-lo juntamente com mais nove jovens, dez almas que serão governadas.[2]
A história acima foi contada por Foucault em uma aula no Collège de France em 19 de março de 1980. O curso ministrado pelo filósofo naquele ano recebeu o título de “Do governo dos vivos”.  Ao longo dos anos anteriores Foucault vinha numa trajetória de tentar entender a noção de governo, nos anos de 1977 e 1978 ele se debruçou sobre a ideia de governo entre os gregos e procurou demonstrar como que com o cristianismo essa ideia passará por um deslocamento, se entre os gregos e romanos governar significava muito mais conduzir a polis, governar a cidade, com o advento do cristianismo essa noção pôde se aplicar na condução dos homens. Ele verifica um tipo de poder pastoral, que tinha por objetivo dirigir a consciência, de dirigir a alma. Esse tipo de poder pastoral teria sua origem no Oriente não cristão, como no caso do Faraó egípcio que era visto como um grande pastor, “o Rá, que velas quando todos os homens dormem, que procuras o que é benefício para teu rebanho”. Em todo caso, será com o advento do cristianismo que o governo se ocupará mais da multiplicidade do que do território. É neste sentido, que a figura do pastor é aqui emblemática, uma vez que ele se preocupa com o rebanho ao mesmo tempo que a vida de cada ovelha lhe é imprescindível, (FOUCAULT, 1978).     
            Enquanto o homem grego era conduzido ao pressuposto socrático do “conhece-te a ti mesmo (gnōthi seauton)”, no cristianismo o homem é conduzido a negar a si próprio. O ascetismo cristão tem por princípio fundamental que a renúncia de si constitui o momento essencial para acender à outra vida e alcançar a salvação. (FOUCAULT, 1982, p.304).  A renúncia de si para os monges cenobitas, significava negar todas as vontades do corpo, todos os desejos da alma, mas, ia além de somente abdicar de si mesmo, pois tratava-se de abrir mão de seu próprio arbítrio para se submeter ao arbítrio do outro sem questionar, simplesmente obedecer. O caminho da verdade é um caminho de submissão e obediência. A obediência no sentido que Cassiano descreveu deveria ser passiva, uma ordem dada não deve ser questionada, sequer deve-se pensar sua inutilidade, apenas cumprida. Para que isso ficasse claro aos novatos, era comum que seus superiores ordenassem a fazer coisas sem qualquer sentido, como foi o caso do abade Jean que por um ano irrigou um bastão enterrado e ouviu do seu superior que ele não regara direito. A obediência requer assim que se queira acima de tudo, fazer a vontade do outro, viver debaixo da permissão do outro. Cassiano lembra que os “jovens não devem deixar a célula sem que o preposto permita; mas, ele não deve nem mesmo presumir a autorização”.  (FOUCAULT, 1980, p. 110).
O poder pastoral suscitou uma série de disputas ao longo da história, tais disputas, escreveu Foucault, de Wyclif a Wesley, tinham por objetivo saber quem teria o direito efetivo de governar os homens. Nas reformas religiosas na Europa do século XVI o que se vê é uma batalha pelo pastorado, não uma batalha doutrinal, que resultou no fortalecimento do poder pastoral, dividido em dois mundos, o protestante, cujo pastorado se exerceu de modo mais meticuloso ao mesmo tempo flexível hierarquicamente e o mundo da contrarreforma, cujo o pastorado permanecera altamente controlado e hierarquizado. (FOUCAULT, 1978, p. 198). 
Quanto a análise de Foucault sobre o pastorado protestante, pode-se dizer que esta é conciliatória com aquela feita por Max Weber anteriormente, para quem a Reforma Protestante não implicou na eliminação do controle da Igreja sobre a vida quotidiana, mas na emergência de uma nova forma de controle. A Reforma significou o repúdio a um controle frouxo, quase imperceptível, em favor de uma regulamentação da conduta dos homens. (WEBER, 1905, p.12). Hennis, ao estudar Weber, diz Colin Gordon (1987), afirmou que a ética protestante associada ao “espírito do capitalismo” resultou numa condução metódica da vida, sobretudo, aquela implementada pelo calvinismo. Todavia, não é somente no calvinismo que o espírito capitalista encontrará um lugar ao sol, Weber dedica o capítulo três de “A ética protestante e o espírito capitalista” a discutir a concepção de vocação em Lutero, afirmando que tal concepção encontra-se centralizada no dogma das religiões protestantes, preceitos éticos estes rejeitados pelo catolicismo que convivia ao modo praecepta et concilia (regra dos planos). A concepção de vocação em Lutero, segundo Weber, apresentou como única forma de vida aceitável por Deus, aquela do cumprimento das obrigações impostas aos indivíduos pela sua posição no mundo, condenando o monasticismo a uma vida ditada pelo demônio. (WEBER, 1905. p. 34;35).
O pastorado pós a reforma não se ocupou mais de dirigir os homens a uma vida asceta, mas direcioná-los para uma vida produtiva. Weber vai retomar o apóstolo Paulo para demonstrar que a comunidade cristã do Novo Testamento via as atividades mundanas com indiferença devido suas esperanças escatológicas. No calvinismo, porém, tais esperanças são mantidas, mas ao invés de manifestarem no ascetismo, o eleito está no mundo para refletir a glória de Deus, o mundo existe para a glorificação de Deus, assim a obediência consiste, não na reclusão ao mundo e sim na melhoria deste. (WEBER, 1905. p. 47). A parábola do servo fiel (ou prudente em algumas traduções bíblicas) é resgatada pelos reformadores, este é o servo a quem o Senhor confiará todos os seus bens e zelará por eles e os multiplicará, já o servo infiel é aquele que na ausência de seu Senhor espancará seus companheiros e se prestará a comer e embriagar-se. (Mateus 24:45-51/Lucas 12:41-46). A vida precisa ser santificada, o que significa ocupar-se apenas com aquelas coisas que são da vontade de Deus, a vida do santo deve ser direcionada para o fim transcendental, isto é, a salvação. Justamente por isso ela será racionalizada nesse mundo e totalmente dominada pelo objetivo de aumentar a glória de Deus sobre a terra. (WEBER, 1905. p.52).
As descontinuidades históricas ocasionadas pela reforma no modo de como se deve governar, no modo como os homens devem ser conduzidos, não significam ao final uma ruptura com o ascetismo, mas sim um deslocamento para a vida asceta. Se em Cassiano o ascetismo é a renúncia do mundo em prol de uma vida de disciplina, obediência e oração, no protestantismo o que se renuncia é o isolamento do mundo. A riqueza e o lucro são condenáveis somente quando adquiridos para o proveito próprio, para o gozo e o descanso, uma vez que “o repouso dos santos se encontra em outro mundo”.  Atitudes como diversão ou até mesmo dormir mais do que oito horas por dia são condenáveis moralmente, porque o tempo é precioso para Deus. O poder pastoral no pietismo, no puritanismo, dirige o homem a ser zeloso, um zelo que implicava em seguir mortificando os desejos vis da carne, em nome da honra de servir em Deus no mundo refletindo sua grandeza. Isso só seria possível por meio de uma vida próspera, querer ser pobre, seria o mesmo que querer ser doente, trabalhar e prosperar é demonstrar a manifestação de Deus. (WEBER, 1905. p. 75-77).
Tudo que pode desviar o homem desse caminho, tudo que pode fazer dele um servo infiel, e aqui vemos incluído o vício, deve ser contido. Não é por outra razão que se verifica no advento do proibicionismo no século XIX nos EUA, dentre outros fatores, o recrudescimento dos ideais puritanos, isto é, o reavivamento do fundamentalismo religioso, que denunciava a degradação moral e a desordem promovidas pelos saloons. Recebendo apoio de vários setores da indústria e de empresários, do movimento proibicionista viu-se surgir o partido proibicionista. Assim a proibição do álcool nos EUA em 1920, teve como base a ideia de degradação somada a da improdutividade, ou seja, a junção da ética protestante e o espírito capitalista. (CARVALHO, 2013, p.26). 
 Ao voltar ao objeto desse artigo podemos aqui entender os centros de recuperação (CRs) como espaços cuja ética protestante e o espírito capitalista de Weber se fez presente uma vez que tal espaço se apresenta como solução para recolocar o indivíduo de volta ao mundo como sujeito produtivo. Na lógica protestante o “drogado” seria percebido como um asceta que renunciou ao mundo abstendo-se de suas obrigações para com este. A recuperação implica em retomar sua vocação na terra como a mais absoluta vontade de Deus, a ética protestante coloca assim o ócio, a preguiça e tudo o mais que provoque a improdutividade como antinatural quando não, de ordem demoníaca. O princípio da vocação colocada na reforma protestante insere o homem na produtividade, na prosperidade e no labor.
Mas pelo menos uma coisa é indiscutivelmente nova: a valorização do cumprimento do dever nos afazeres seculares como a mais alta forma que a atividade ética do indivíduo pudesse assumir. E foi o que trouxe inevitavelmente um significado religioso às atividades seculares do dia a dia e fixou de início o significado de vocação como tal. O conceito de vocação foi, pois, introduzido no dogma central de todas as denominações protestantes e descartado pela divisão católica de preceitos éticos em praecepta et consilia. O único modo de vida aceitável por Deus não era o superar a moralidade mundana pelo ascetismo monástico, mas unicamente o cumprimento das obrigações impostas ao indivíduo pela sua posição no mundo. Esta era sua vocação. (WEBER, 1905. p. 34)

Ao retornar as narrativas deixadas por Cassiano que foram retomadas por Foucault no curso “do governo dos vivos” em 1980, encontramos mais uma ilustração interessante, sobre um monge que por cinquenta anos absteve-se radicalmente da vida mundana. Em certa fase de sua santidade ele acreditou que poderia se jogar num poço e que os anjos do Senhor o salvaria antes mesmo que chegasse ao fim do poço. O monge não morreu mas sofreu lesões e fraturas graves. Cassiano utiliza-se do exemplo apenas com um objetivo, para dizer que o sacrifício não é bom quando não está submetido a uma situação de obediência.
É aqui que possivelmente encontramos as continuidades históricas entre o ascetismo cristão monástico e o ascetismo pós reforma. Se pudemos verificar o deslocamento do modo de conduzir os homens, da direção em que serão governados. Se pudemos até aqui ver que o ascetismo protestante visa a renúncia dos desejos e aos prazeres da carne, sem negar ao mundo. O que resta de comum nestes dois modelos de pastorado? A obediência. O interno em um CR de disciplina pentecostal é conduzido a uma vida de obediência, não há caminhos alternativos para mudança de vida, só existe um caminho possível. Se na história de Cassiano a crença de que Deus enviaria seus anjos para evitar que o monge se chocasse com o fundo do poço, o governado em recuperação em um CR é levado a crer que chegou ao fundo do poço devido a seus pecados, por “dar ouvidos” ao diabo, por se entregar aos prazeres do mundo e só Deus pode lhe retirar do fundo do poço. Para isso, é necessária uma vida de total abdicação do mundo, uma mudança radical do comportamento e uma submissão ao seu pastor que o guiará ao caminho da cura e da recuperação.   


[1] Fala de um dos hóspedes no culto de comemoração do aniversário da igreja.
[2]  Aula de 19/03/1980. Foucault inicia a aula relatando as narrativas de João Cassiano sobre as instituições cenobitas.

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