sexta-feira, janeiro 13, 2017

A HISTÓRIA DOCUMENTADA E O GOLPE DE 1964

Em tempos que por meio das redes sociais a circulação de "verdades históricas" circulam tão mais rápido, fazendo com que a velha máxima de que uma mentira contada mil vezes se torna verdade, faz-se necessário apelar para a tradição histórica. O velho e bom rigor acadêmico que procura preservar acima de tudo a fonte histórica. Sim claro, em nome desse rigor muitos exageros ocorreram, tentativas de transformar a história numa disciplina serial matemática, positivista, totalizante, mãe das ciências sociais e humanas.
Hoje sabemos que esse rigor acadêmico ganhou outros sentidos, vimos a história se fragmentar em inúmeras possibilidades, dialogando com uma grande diversidade de disciplinas e abandonando definitivamente a inexorabilidade, mas a história ainda é a história. Ainda que a busca pela verdade pura tenha deixado de ser o precioso objetivo a alcançar, as fontes documentais ainda são as bases que sustentam a história. É claro que a própria noção de documento já não é mais aquela do historicismo, assim como, a própria noção de fonte.
A história não é, e nunca será uma ciência exata, sua riqueza reside justamente nas possibilidades de se interpretar fatos históricos. Há uma beleza singular na subjetividade do olhar do historiador, na luta incessante pela representação do passado, na análise minuciosa de cada fonte.
Como exemplo concreto trago aqui a recente história de interrupção de nossa democracia, mais conhecido como regime militar (ou Estado de Exceção), período esse que perdurou longos 21 anos (1964-1985). Apesar de se tratar de uma época recente na perspectiva de tempo histórico, ainda que muitas fontes tenham sido destruídas, outras perdidas e várias impedidas de serem acessadas por força da lei, podemos dizer que sem dúvida há uma significativa historiografia sobre esse período.
Na última década pode-se verificar uma profusão de publicações sobre esses 21 anos e inúmeras revisões na historiografia. Isso tudo foi possível principalmente pela luta por acesso aos arquivos até então proibidos.  Há atualmente arquivos públicos espalhados pelo Brasil com milhares de documentação sobre o período, há também uma expressiva quantidade de material digitalizado disponível pra pesquisa como, por exemplo, “Arquivos da Ditadura” documentação reunida por Élio Gaspari (http://arquivosdaditadura.com.br), ou os “Acervos sobre a Ditadura Militar” do Arquivo Nacional (http://www.arquivonacional.gov.br/acervos-mais-consultados-titulo/acervos-da-ditadura-militar.html), finalmente diversos acervos online sobre a memória desse período (disponibilizarei no final do texto), alguns públicos e outros de entidades sociais.
Se por um lado podemos verificar o crescimento das pesquisas no Brasil e na América Latina sobre os Estados de Exceção implantados no bojo do mundo bipolar, por outro, percebemos também um substancial volume de sites e páginas nas redes sociais evocando uma outra história, boa parte destes, baseiam-se em poucas publicações de uma direita ultraortodoxa que ainda rezam a cartilha da Doutrina de Segurança Nacional.
Enquanto movimentos como o Escola Sem Partido tentam ganhar espaço midiático acusando professores de “doutrinadores”, esses mesmos defensores alimentam sites e blogs com informações infundadas, sem materialidade.  Um grande ícone dessa geração de jovens cooptados pelo ideal liberal conservador, Olavo de Carvalho, o “Filósofo” e guru dessa gente que ainda vive o medo da ameaça comunista, chegou a caçoar da prova documental, uma gravação entre o embaixador dos EUA Lincoln Gordon e o Presidente John F. Kennedy em 7 de outubro de 1963, onde ambos discutem as possíveis estratégias sobre o que fazer com o Brasil, até que Kennedy questiona Gordon: “Você vê a situação indo para onde deveria, acha aconselhável que façamos uma intervenção militar?”. Em outro momento, o nobre guru afirma que os jornalistas brasileiros, uma boa parte da imprensa foi associada a KGB, sem mostrar qualquer prova, apenas citou um texto do Noblat que ironicamente escreveu ter trabalhado para a agência de inteligência da Rússia.
Em tempos como esse, cabe a nós, professores e pesquisadores, usar o máximo desses canais para desconstruir esse jogo midiático que busca desqualificar a história e a historiografia sem qualquer fonte documental.  Os slogans vão ganhando espaços por serem fáceis de se assimilar, tais como:  - “Mas só perseguiram quem era bandido.”  -  “A intervenção militar nos livrou de uma dominação comunista”  - “Os governos militares desse período foram moderados”. Tais slogans ganharam ainda mais espaço no período que antecedeu o impeachment da Presidenta Dilma, os adeptos da chamada “intervenção constitucional” foram úteis aos maquinadores do golpe que colocou o PMDB na presidência.


Alguns acervos digitais de História de Memória:
Acervo sobre o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS/SP) comporta a documentação produzida entre 1924, ano de sua criação, e 1983, ano de extinção, pelo principal órgão articulador da polícia política paulista.
Arquivos da ditadura: Acervo pessoal de Elio Gaspari. Entre bilhetes, despachos, discursos, manuscritos, diários de conversas travadas pela cúpula e telegramas do governo americano, seu arquivo pessoal reúne mais de 15 mil itens sobre a ditadura. São registros que se iniciam nos anos anteriores ao golpe de 1964 e seguem até os estertores do regime. Entre eles, há 10 mil provenientes do arquivo do general Golbery do Couto e Silva, como suas apreciações e análises conjunturais redigidas em três momentos distintos, de 1960 a 1968.
Memórias reveladas: O Centro tem por objetivo geral tornar-se um pólo difusor de informações contidas nos registros documentais sobre as lutas políticas no Brasil nas décadas de 1960 a 1980. Nele, fontes primárias e secundárias são gerenciadas e colocadas à disposição do público, incentivando a realização de estudos, pesquisas e reflexões sobre o período.
Documentos Revelados é resultado de anos de garimpagem nos arquivos estaduais e arquivo da Delegacia da Polícia Frderal de Foz do Iguaçu, de vasculhar  caixas e pastas AZ, repletas de mandados de prisão, informes,radiogramas, ofícios recebidos e expedidos, dossiês,relatórios e outros tipos de documentos produzidos pela burocracia policial. Reconheço que esta busca é tardia, pois no Brasil,ao contrário do Chile, Argentina e Paraguai, os arquivos da repressão estão sendo abertos fora dotempo apropriado.

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